Sentir em Rede: Artes, Activismo e Redes Digitais

Como é que a experiência estética se inscreve nas novas ecologias da comunicação e informação? Como é que as novas formas de poder e de activismo atravessam a esfera do sentir? A partir destas perguntas lançamos a proposta do especial Sentir em rede: artes, activismo e redes digitais da INTERACT – Revista Online de Arte, Cultura e Tecnologia, voltadas para uma reflexão sobre essas novas formas de sentir em colaboração nas redes digitais.

Esta edição, inicialmente eleita como número #30 da INTERACT, logo se tornou um número duplo, #30-31, a fim de incluir diversas contribuições de teóricos e pensadores da comunicação digital, de académicos e investigadores das questões do activismo e de artistas que usam a internet e as tecnologias digitais para criar obras interventivas e auto-reflexivas.

Como ponto de partida, recorremos ao contributo do filósofo italiano Mario Perniola, do seu livro Do Sentir (Editorial Presença, 1993), no qual considerou que a estética orienta-se não por ter uma relação privilegiada e directa com as artes, mas segundo um campo estratégico que não é cognitivo nem prático, mas do sentir. Segundo a sua visão, o poder que antes estaria concentrado no saber e no agir agora estaria voltado para o sentir, que se abre para novas formas de experimentação com a difusão da cultura digital e das novas redes, compostas por actores e actantes de naturezas diversas.

Os textos, vídeos e demais formatos multimédia reunidos neste número duplo resultam de convites directos das editoras ou de contribuições enviadas e seleccionadas após a abertura de uma chamada para propostas de trabalhos. Autores nacionais e internacionais foram convidados a pensar as redes na dimensão da sua sensibilidade ecológica, a partir de colaborações que superem as grandes separações do pensamento ocidental – entre o humano, a técnica e a natureza – e contemporizem a complexidade dos nossos dias

Escolhemos como imagem de capa para este número duplo uma fotografia da primeira manifestação no mundo usando apenas hologramas, promovida pelo grupo No Somos Delito no Congresso dos Deputados de Espanha, em 2015. A acção net-activista, desenvolvida para contestar a Lei da Mordaça – que tentava criminalizar qualquer forma de protesto – reflecte o espírito do tempo que tentamos retratar nesta edição especial: a perspectiva colaborativa entre humanos e não humanos nas novas formas de acção em rede e suas implicações nos novos modos de sentir.

Tais contributos variados, teóricos e artísticos foram publicados em secções distintas: Entrevista, Ensaio, Interfaces e Laboratório. As publicações saíram de forma seriada, alternando contribuições laboratoriais e ensaísticas dentro de um alinhamento temporal.

Na secção ENTREVISTA, em «Constelações em Rede: Entrevista a José Bragança de Miranda», concedida a Clara Gomes e a Marina Magalhães, um dos principais pensadores da cultura contemporânea em Portugal revela como vem investigando sobre as formas de pensar as novas tecnologias, o digital e as formas de acção que se desenrolam através das redes, propondo – mais do que uma teoria única e centrada – uma forma de reflectir estes fenómenos em constelação, a partir de um conceito benjamiano de inspiração platónica.

Para Bragança de Miranda, as práticas, objectos, enunciados e obras que configuram o net-activismo excedem a lógica conceptual e têm, portanto, de ser pensados não como uma teoria tradicional, mas como uma construção, uma montagem (à maneira do cinema ou da fábrica) ou uma constelação, reunindo o disperso; dentro desta lógica não há método mas sim trajectórias a percorrer.

Em «O sentir em rede: Entrevista a Massimo Di Felice» concedida a Marina Magalhães, o sociólogo italiano autor de Net-activismo, referência na reflexão sobre o net-activismo e sobre as interacções em rede entre seres humanos e não humanos, tratou de diversos temas relacionados com o sentir contemporâneo permeado pelo digital, das experiências estéticas às novas formas de participação em rede e cidadania digital.

Elvira Leite é o exemplo de uma artista plástica e educadora que aderiu ao digital apesar de a sua idade apontar noutro sentido. A entrevista «O Digital é de Ontem» foi realizada no âmbito do projecto Transferência de Sabedoria, contributos para a inscrição científica de legados individuais em contextos de reforma universitária e científica nas Artes e Design, que aponta para a existência de uma considerável quantidade de artistas e designers em idade de jubilação que testemunharam o surgimento das ferramentas digitais e as incorporaram nos seus processos de trabalho, de forma directa ou indirecta.

Na secção ENSAIO, em «Net-Ativismo no Brasil: Análise do Movimento #MariellePresente»: Elisa Cardoso e Tiago Mainieri investigaram, como acção net-activista, a constituição do movimento que surgiu após o assassinato da vereadora Marielle Franco, no Brasil. #MariellePresente é um exemplo de um movimento de reivindicação que nasceu na web e chegou aos espaços físicos. Neste ensaio é feito um mapeamento da conversação em rede que se estabeleceu a partir da mobilização dos internautas na rede social Twitter.

Também Helen Varley Jamieson, performer e artista digital, em «Networked Conversations as Activism»: afirma o potencial das conversações em rede como forma de net-activismo, sustentando que para se atingir a mudança social é necessário, para além da adrenalina da acção de massas, a conversa calma e ponderada. Na sua prática de ciberformance esta artista integra a conversa online como forma de participação do espectador, pondo em causa teorias anteriores da recepção e diluindo a distância entre autor, obra e receptor (de que é exemplo a ciberformance Letters to the Earth cujo vídeo integra a secção LABORATÓRIO.

É precisamente sobre o tema do receptor activo que se debruça Constança Babo em «Novos Média e Novas Formas de Acção na Arte», em que revisitando os conceitos de artivismo, de recepção, de obra aberta e de experiência estética propõe que as artes tecnológicas formam um espectador activo e instalam novos quadros de acção, interacção e participação. Esta investigadora relaciona a arte dos novos média e o activismo, observando como este tipo de arte se instala no espaço físico e virtual, tomando a forma de acção, performance, movimento ou acontecimento.

Em «O cuidar dos Não-Humanos: Indignações Reticulares Diante da Misoginia In-Game em Red Dead Redemption 2» Daniel Abath discute as repercussões das interacções sócio-técnicas provenientes do contacto entre humanos e não-humanos nos jogos de vídeo a partir de uma análise do jogo supracitado, atento às indignações e à pauta de discussão (anti)feminista que ali se mostra construída.

Thiago Novaes, no ensaio  «Produção Multimídia e Software Livre: das Redes Distribuídas à Estética da Multidão» intenta uma análise sobre as novas formas de compartilhamento de bens culturais viabilizados através da Internet, ao mesmo tempo que se dedica à elaboração teórica sobre a diferenciação ontológica de objectos digitais, considerados no âmbito de um novo fenómeno de consumo rumo ao que poderíamos chamar de estética da multidão.

A partir dos movimentos #schoolstrike4climate e #fridaysforfuture, liderados por Greta Thunberg, e das Ocupações Secundaristas Brasileiras (entre 2015 e 2017 mais de mil escolas foram ocupadas no Brasil) Danielle Miranda afirma a potência destituinte como experiência de um sentir em comum. Em «Das Escolas Ocupadas às Sextas-Feiras Sem Aula: Estudantes do Liceu e a Potência Destituinte como Experiência de um Sentir em Comum» aborda os gestos de ocupação desses estudantes não pela ordem negativa, mas interruptiva, reflectindo sobre a constituição de novos modos de sensibilidade, de criatividade e de subjectivação nessas acções activistas articuladas via redes digitais.

Na secção INTERFACES, no texto «Ressignificação, Revolução e Tecnologia – o 25 de Abril», Nuno Correia de Brito fala-nos das estratégias discursivas e de mobilização criadas pelo grupo de alunos da Faculdade de Belas Artes de Lisboa em «Rios ao Carmo», acção que reuniu performance e vídeo-performance em torno de imagens icónicas de Salgueiro Maia.

Diana Almeida, em «Arquivo Digital e Imaginação Política: Case Study» expõe a experiência in progress da construção de um blogue experimental na escola, considerando as estratégias de elaboração deste e o impacto percebido nos alunos, empoderados pela autonomia crítica e criativa que tal projecto representa e, assim, capazes de (re)imaginar a acção política.

No dossier «African-European Narratives» a equipa de Maria Teresa Cruz reuniu histórias de cidadãos europeus sobre as suas relações com a cultura africana, sobre descendência e memória pós-colonial e sobre o intercâmbio cultural entre África e Europa num mapa digital de narrativas contadas em palavras, imagens e sons e num exemplo do que é «sentir em rede».

Na era da pós-convergência da arte dos novos média, Pedro Veiga afirma em «Arte Quântica» que esta tanto se pode tornar em mais uma forma de embelezamento do quotidiano, gerando obras efémeras e decorativas que se transformam em produtos de consumo, como seguir as pisadas daqueles que insistem em questionar a dignidade, utilidade, democraticidade e acessibilidade da arte. No entanto, tal não é fácil num mundo onde o hacking se transforma na norma, e onde a subversão é, imediatamente, institucionalizada.

Na secção LABORATÓRIO, através da vídeo-instalação «Amazonia Insomnia» Hugo Fortes evoca o poder mítico da natureza, invocando os espíritos da floresta numa atmosfera contemplativa de sonho e delírio visual que nos liga aos povos originários e aos seus rituais xamânicos.

Para este artista, a captação electrónica de imagens não implica um distanciamento da natureza, mas sim uma possibilidade de tentar aceder ao invisível, ao incomensurável e ao inapreensível, permitindo que se dê asas à imaginação e se chegue a mundos plenos de sensações que se podem compartilhar em rede.

Igualmente uma reflexão sobre a natureza e a Terra, «Letters to the Earth» é o registo de uma ciberformance levada a cabo por um colectivo liderado por Helen Varley Jamieson na plataforma online UpStage. O objectivo foi participar na acção global com o mesmo nome (inspirada em Extinction Rebellion e na Greve Estudantil pelo Clima), em que mais de mil cartas endereçadas à Terra foram recebidas e lidas por todo o planeta em 49 locais diferentes – físicos e virtuais – no dia 12 de Abril de 2019. A plataforma UpStage permite uma ponte entre o real e o virtual e é utilizada para performances em que as grandes questões da actualidade são colocadas em perspectiva, em acções reflexivas e activistas.

Também o projecto participativo em realidade mista, Senses Places/Lugares Sentidos, põe em evidência a nossa relação com a natureza, o corpo e a tecnologia na era da comunicação digital. Ciberformance que acontece entre espaços físicos e mundos virtuais, utilizando tecnologia apropriada do gaming e da medicina, o projecto é participado por artistas distribuídos pelo planeta. Aqui, em «Entre-Conexões Corporealizadas: Senses Places @ Vivarium 2019» Isabel Valverde, a sua criadora, descreve umas das instâncias do projecto no Festival Vivarium que teve lugar no dia 29 de Março de 2019 nos Maus Hábitos, no Porto e no Odyssey Contemporary Art and Performance Simulator, no Second Life.