Net-ativismo no Brasil: Análise do Movimento #MariellePresente

O presente texto analisa a constituição do movimento que surgiu após o assassinato da vereadora Marielle Franco no Brasil como ação net-ativista. A hashtag “MariellePresente” chegou ao Trending Topics mundial do Twitter e manifestações presenciais tomaram as ruas de várias cidades do Brasil e também de algumas cidades da Europa.

O propósito da pesquisa é mapear a conversação em rede que se estabeleceu a partir da mobilização dos internautas na rede social Twitter. Ao mapear a conversação pretende-se reunir elementos que permitam entender a visibilidade do evento. A repercussão e as proporções em torno desse acontecimento revelam a importância de se compreender as transformações das interações humanas, por meio do processo comunicacional complexo que ultrapassa os limites do ciberespaço, bem como de analisar as maneiras pelas quais a evolução dos meios tecnológicos pode influenciar a formação e propagação dos manifestos net-ativistas. A metodologia utilizada foi a Análise de Redes Sociais (ARS) na perspectiva da conversação em rede. Conclui-se, por meio dos resultados da pesquisa, que as ações de ativismo digital desempenham um relevante papel no contexto da cidadania. A #MariellePresente é um exemplo de movimento de reinvindicação que nasceu na web e chegou aos espaços físicos. Os resultados mostram ainda que a conversação em rede reúne diferentes actantes, que embora com distintos papeis, atuam em sinergia, cada qual com sua relevância.

A interconexão entre os usuários de redes sociais digitais, como o Twitter, evidenciou os movimentos sociais em rede, baseados na ação coletiva. Para Castells esses movimentos “surgem da contradição e dos conflitos de sociedades específicas, e expressam as revoltas e os projetos das pessoas resultantes de sua experiência multidimensional” (2017, p. 108-109). É por meio do panorama da CMC e da conversação em rede que esta pesquisa se desenvolve, na tentativa de compreender uma nova arquitetura comunicacional: o net-ativismo.

 

1. Net-ativismo – as vozes que ecoam na e da Internet

A partir do surgimento da internet e da expansão dos meios tecnológicos, a comunicação digital modificou o fluxo comunicacional, criou espaços para troca de informação e permitiu o alcance, quase inimaginável, de vozes de novos narradores.

Diante desse cenário tecnológico, a Internet possibilitou o surgimento de “uma série de movimentos de ação direta, com práticas sociais e comunicativas específicas, que começou a explicitar, na rede, novas formas de relações e conflitualidade” (DI FELICE, 2017, p. 137). Derivado da ação colaborativa e distribuída, o net-ativismo nasce no ciberespaço e se diferencia de qualquer outro movimento, pois, ultrapassa as barreiras entre a esfera virtual e os espaços territoriais e/ou sociopolíticos. De acordo com Di Felice (2013), essa modalidade de prática social não se limita apenas a um sujeito, mas a vários “actantes”. Essas co-ações resultaram na modificação do ser social e da própria cultura das relações, conforme defende o autor:

O net-ativismo é o conjunto de ações colaborativas que resultam da sinergia de atores de diversas naturezas, pessoas, circuitos informativos, dispositivos, redes sociais digitais, territorialidades informativas, apresenta-se, segundo esta perspectiva, como a constituição de um novo tipo de ecologia (eko-logos) não mais opositiva e separatista, na qual uma dimensão ecossistêmica reúne seus diversos membros em um novo tipo de social, não apenas limitado ao âmbito humano dos “socius”, mas expandido às demais entidades técnicas, informativas, territoriais, de forma reticular e conectiva (DI FELICE, 2013, p. 273).

O autor se distancia da ideia de homem como centro das ações e se aproxima da perspectiva de atuação de diversos atores não humanos, como as tecnologias subjetivas, a internet das coisas, a comunicação dos objetos e o próprio meio ambiente. Na Internet 2.0, não há mais diferenciação entre os ambientes offline e online. O net-ativismo nasce nessa ecologia complexa, reticular e conectiva com capacidade de unir entidades de diversas naturezas, sendo resultado da união e da ação mútua destes atores (DI FELICE, 2013). Em suma, Di Felice (2013) compreende a ação net-ativista como “a sinergia dos conjuntos de actantes passa a modificar o desfecho de uma ação através de suas interações na medida em que se conectam e coagem” (2013, p. 276).

 

2. Para entender o caso #MariellePresente

De acordo com informações da revista online Super Interessante, Marielle Franco era uma ativista negra, vereadora do Partido Socialista e Liberdade – Rio de Janeiro (PSOL-RJ) e foi assassinada aos 38 anos, no dia 14 de março de 2018, no centro do Rio de Janeiro, após sair de um evento com ativistas negras. Ela estava em um veículo com o motorista Anderson Pedro Gomes, de 39 anos. Eles foram atingidos por vários tiros de arma de fogo e faleceram no local. Conforme noticiado pelo site Globo Rio, ela era socióloga formada pela Pontifica Universidade Católica – Rio (PUC-RIO) e mestre em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Marielle foi a quinta vereadora mais votada nas eleições de 2016, com 46,5 mil votos. Trabalhou em organizações da sociedade civil como a Brasil Foundation e o Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM). Coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), ao lado de Marcelo Freixo (deputado estadual pelo PSOL-RJ).

A tragédia aconteceu durante a intervenção militar, movimento em relação ao qual Franco era contra, e exatamente no período em que a parlamentar era relatora da comissão do conselho criado para fiscalizar as operações policiais. A vereadora participava na frente de luta do movimento negro e era autora de denúncias recentes de violência policial contra os moradores de favelas no Rio. Até à data de março de 2019 as investigações apontam para que o crime foi premeditado e se tratou de uma execução encomendada.

Figura 1 – Marielle Franco Fonte: Reprodução/Instagram @mariellefranco

 

Conforme publicado pelo site Correio Braziliense, antes que o fato pudesse ser noticiado pela mídia, pessoas comuns usaram o Whatsapp, aplicativo de troca de mensagens instantâneas, para falar do assunto. Quinze horas após o homicídio, a hashtag mais citada no Trending Topics mundial do Twitter era #marielle. A rede digital registrou 289 mil tweets sobre a parlamentar. Entre as principais hashtags utilizadas em referência ao crime estavam #mariellepresente, #nãofoiassalto e #mariellevive. A repercussão foi tamanha que diversos veículos de comunicação internacionais como The Guardian (Inglaterra) e o New York Times (Estados Unidos) noticiaram o caso.

No dia 15 de março, as ruas do Brasil foram tomadas por milhares de manifestantes indignados com o genocídio do povo negro e das mulheres, que se organizaram e se estruturaram por meio da conversação em rede. Os maiores protestos ocorreram na Avenida Paulista, em São Paulo; em frente à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro; e, no centro de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Também houve outros movimentos: no Largo de São Bernardo, em Amazonas; em Salvador, na Bahia; na Praça Zumbi dos Palmares, em Brasília; em Espírito Santo, no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul; Paraná, Pará, Pernambuco, Piauí, Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Sergipe.

Figura 2 – Protesto organizado por mulheres em frente à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), no Rio de Janeiro (RJ). Fonte: Julia Gabriela/Futura Press/ Estadão Conteúdo

 

Figura 3 – Manifestantes protestam na Avenida Paulista contra o assassinato da vereadora Marielle Franco. Fonte: Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo

Todas as capitais desses estados participaram do movimento. O que tiveram em comum? Além da reivindicação por justiça, os participantes de todas as localidades marcaram encontros presenciais através das redes sociais digitais. Castells pontua que o movimento em rede é “um espaço público híbrido, constituído por redes sociais digitais e por uma recém-comunidade urbana […], tanto como ferramenta de autoreflexão quanto como afirmação do poder do povo. A falta de poder transformou-se em empoderamento” (CASTELLS, 2017, p. 45).

Foi com base nessa forma de pensar a sinergia entre sociedade, rede e ação net-ativista que realizamos esta pesquisa com intuito de mapear a conversação no Twitter com o uso da hashtag #MariellePresente e buscar compreender a visibilidade do evento.

 

3. A visibilidade e a conversação em #MariellePresente

Na tentativa de compreender o mapeamento da conversação mediada no Twitter com o uso da hashtag #MariellePresente e a visibilidade do evento, a presente pesquisa é qualitativa.

Por se tratar de uma pesquisa no âmbito do ciberespaço, o instrumento de coleta utilizado foi o software NodeXL versão 1.0.1.399 que trabalha com a elaboração de mapas de conversação. No caso do Twitter é possível fazer uma busca por hashtag. Para essa pesquisa, a hashtag utilizada foi #MariellePresente. A escolha ocorreu devido à hashtag ter chegado aos Trending Topics mundial, após a morte da vereadora, no dia 15 de março de 2018; esta continua sendo utilizada por diversos usuários. Foram coletados 834 tweets de 789 atores diferentes, através do filtro “tweets publicados nos dias 15 e 16 de março de 2018”. A amostra foi reduzida se comparada com o verdadeiro engajamento nas redes, todavia se justifica, pois, o software possibilita apenas a busca de dois mil tweets na versão gratuita.

O método de análise foi a Análise de Redes Sociais (ARS) a partir do ângulo da conversação em rede, mais especificamente, no Twitter. Essa perspectiva “concentra-se no desenho da estrutura desses rastros e no cálculo de diversas variáreis quantificáveis da rede” (RECUERO, 2014, p. 175). Recuero determina três métricas a ser analisadas dentro do grau de centralidade de um grafo de mapeamento de rede: 1) o grau de conexão: é a quantidade de nós de uma determinada conexão. Se divide em indegree, quantidade de conexões estabelecidas e outdegree, quantidade de conexões enviadas; 2) grau de intermediação: refere-se à posição do nó na rede (betweeness). Quanto maior o nó, maior a conexão com outros grupos; e, 3) grau de proximidade: quão próximo um nó está do outro (closeness) (RECUERO, 2014, p. 175). Esses elementos foram relevantes para a análise do mapa de conversação coletado pelo NodeXL, contextualizado pela hashtag #MariellePresente.

 

4. O que o mapeamento da #MariellePresente nos diz?

Para mapear as conversações do nosso objeto, fizemos uma busca pela hashtag #mariellepresente com o NodeXL no Twitter. O filtro utilizado foi “tweets publicados nos dias 15 e 16 de março de 2018”. Coletamos 834 tweets com menção da hashtag e 789 nós. Iniciamos a análise pelo grau de conexão e mapeamos o indegree, “quantidade de menções e replies, que indicam respostas de outros usuários a si” (RECUERO, 2014, p. 188), obtivemos o seguinte mapa:

Figura 4 – Mapa Indegree. Fonte: dos autores

Observa-se 11 nós que são mais citados que os outros (quanto maior o desenho do nó expresso no grafo, maior o engajamento na conversação). Ao centro do grafo temos o nó @ivanvalente que mais recebeu citações, ou seja, um dos deputados federais do PSOL-SP, o mesmo partido da Marielle Franco. Ele possui mais de 86 mil seguidores no Twitter e recebeu 299 menções, o que é considerado por Recuero (2014) como fator de influência no mapa pela popularidade e/ou reputação. Em segundo lugar temos @blogfeministas, perfil oficial do site Blogueiras Feministas, com mais de 47 mil seguidores e 144 menções seguidos de @cartacapital, @oglobo e @globo_rio, com 46, 38 e 18 menções, respectivamente. Estes últimos se tratam de perfis oficiais de veículos de comunicação, que expressam sua indignação em relação ao assassinato de Franco.

Já em relação ao outdegree, segundo fator de análise do grau de conexão, observamos o mapa com pontos menores:

Figura 5 – Mapa Outdegree. Fonte: dos autores

Os pontos verdes no grafo representam o outdegree. Aqui, os tamanhos dos nós (12) não são tão expressivos se comparados com o anterior. Para Recuero (2014), quanto maior o desenho do nó, maior sua representação no mapa. Os atores apresentados aqui nem sempre são os mesmos do indegree, como por exemplo no caso de @lavajatonews, perfil independente de informações gerais sobre a operação Lava Jato e outras denúncias de corrupção. Todos os outros onze nós são de pessoas comuns, que vivem no anonimato. Esse tipo de ator-rede não possui tantas citações, mas ele faz parte do dinamismo da rede, “cuja visibilidade decorre de outros nós, que os citam enquanto desenvolvem posicionamentos, críticas e observações a respeito do contexto” (RECUERO, 2014, p. 192). Ou seja, esses nós auxiliam na “manutenção e criação de contextos da conversação em rede” (RECUERO, 2014, p. 192).

Quanto ao grau de intermediação chegamos ao seguinte mapa:

Figura 6 – Mapa Betweeness. Fonte: dos autores

O grau betweeness ou grau de intermediação indica os nós (14) que mais conectam outros grupos diferentes do seu posicionamento na rede, mesmo que eles não sejam os participantes mais ativos da conversação. Recuero pontua que “sem esses atores e sua participação, que inclui diferentes grupos na conversação, boa parte da conversa tornar-se-ia inviável para os demais” (2014, p. 185). Assim, esses nós são responsáveis pela mediação da comunicação entre os atores, “por exemplo, um nó com um grande valor de intermediação pode conectar grupos que estão mais distantes entre si, mas pode ter uma proximidade muito grande dos outros nós” (p. 193). Di Felice (2017) nos lembra que em uma ecologia comunicativa da colaboração todos os atores do processo comunicativo contribuem para a construção do ambiente interativo, de maneira a substituir o conceito tradicional emissor – receptor por uma infinidade de interações entre usuários, redes, dados e dispositivos de conexão.

Por fim, chegamos à análise do grau de proximidade ou closeness:

Figura 7 – Mapa Closeness. Fonte: dos autores

Recuero (2014, p. 186) define essa métrica como instrumento de observação de nós que possuem menor participação, mas são imprescindíveis para a propagação da conversação. Aqui identificamos atores como @jeanwyllys_real, deputado federal filiado ao PSOL-RJ e @homofobianao, perfil contra a homofobia. O perfil da própria Marielle Franco @mariellefranco, que segue atualizado por uma equipe de assessoramento. Além de perfis de veículos de comunicação já citados como @oglobo, @globonews e @cartacapital. Dos 789 nós, 75 representam, no mesmo grau de importância, a proximidade desta conversação.

Esses dados nos mostram a potencialidade da conversação em rede na difusão das práticas comunicativas e informativas da contemporaneidade. Se trata de uma “complexidade maior, marcada por uma dimensão informativa que antecede as interações agregadoras e que estabelece uma particular dimensão conectiva capaz de alterar as próprias substâncias dos membros da rede” (DI FELICE, 2017, p. 196). Precisamos pensar em uma dimensão comunicativa para além da simples troca de informações.

 

5. E, por fim: “Quem mandou matar Marielle?”

A sociedade do século XXI vive um momento histórico de grandes transformações: com o advento da internet a população descobriu uma nova forma de obter informação com mais agilidade e rapidez. Tornou-se parte do cotidiano a troca de conteúdos em tempo real, o uso de smartphones, tablets e wearables, a conexão banda larga ilimitada e o Big Data. Estar conectado 24 horas por dia metamorfoseou a vida social do ser humano, modificou nosso “modus operandi” e causou também uma série de transformações nas interações humanas.

As redes sociais digitais possibilitaram o surgimento de uma nova arquitetura informacional, um tipo particular de ato que conecta indivíduos em dispositivos, banco de dados e territorialidades. O caso #MariellePresente é um exemplo de movimento de reinvindicação que nasceu na web e chegou aos espaços físicos. Os resultados que obtivemos mostraram que a conversação em rede reúne diferentes actantes com papéis diferentes. Alguns participam mais, outros menos. Alguns possuem milhares de seguidores no Twitter e outros não chegam a uma centena. Mas todos atuam em sinergia, com o mesmo peso e relevância.

A hashtag, o objeto de estudo desta proposta, simboliza a emergência de um movimento social que só existe em decorrência do diálogo e interações permitidos pelas redes digitais da internet 2.0. O conteúdo dos tweets possui força para conectar atores de diversas cidades e até países. É importante salientar que até a conclusão desta pesquisa as investigações policiais não avançaram na descoberta dos reais culpados do assassinato de Marielle e Anderson. Todavia, o movimento não tem como obrigação chegar a um resultado concreto para ser considerado como ação net-ativista. Sua condição está firmada na imprevisibilidade e incerteza. As próprias interações determinam os caminhos a percorrer.

Referências

CASTELLS, Manuel. (2017) Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Zahar.

DI FELICE, M. (2013) Net-ativismo e ecologia da ação em contextos reticulares. In: Contemporânea: Revista de Comunicação e Cultura (on-line). Salvador, v. 11, n. 02, p. 267-283. Disponível em http://www.portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/viewFile/8235/6497.

Acesso em 03. Jun. 2018.

DI FELICE, M. (2017) Net-ativismo: da ação social para o ato conectivo. 1. ed. São Paulo: Paulus.

DI FELICE, M.; PEREIRA, E.; ROZA, E. (orgs). (2017) Net-ativismo: redes digitais e novas práticas de participação. Campinas: Papirus.

LEMOS, A. (2002) Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina.

RECUERO, Raquel. A conversação em rede: comunicação mediada por computadores e redes sociais na internet. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014.

 

NOTA: O presente texto é uma versão adaptada do artigo originalmente apresentado no 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (INTERCOM) ocorrido em Joinville, no Brasil, em setembro de 2018.