INTRODUÇÃO
A arte dos novos média, principalmente dos digitais, inaugura inéditos quadros de participação e interacção, de recepção e de experiência estética, ao nível físico e online. Tratam-se de obras desenvolvidas tanto no contexto expositivo, museológico e institucional, como no virtual, concebidas com particular consideração pelo seu receptor, que é tão espectador quanto utilizador.
Tais formas de arte apresentam-se menos enquanto objectos fixos e concluídos e mais como performances, movimentos e acontecimentos. Deste modo, proporcionam renovadas formas de comunicação, discurso e acção, a partir das quais se permite estudar e analisar os modos de participação do público da arte em relação e comparação com outros públicos.
Reconhecendo que o cruzamento entre a criação artística e a sociedade tem sido principalmente identificado pelas artes ativistas, com os novos média surge uma arte interactiva e relacional cujos reflexos e manifestações também são sociais e políticos. Neste sentido, revela-se importante refletir sobre o contacto entre os objectos artísticos e o espectador, por via das exposições da arte e da sua circulação em rede, bem como repensar os conceitos de espectador, público activo e artivismo.
OS ESPECTADORES ACTIVOS
Uma das evoluções técnicas que mais alterou a relação entre a obra de arte e o espectador, bem como as análises e teorias da arte, foi a reprodutibilidade. A possibilidade de reprodução e de cópia de qualquer objecto e imagem a partir da fotografia teve repercussões estruturais na esfera artística, instalando uma multiplicação imagética e consecutivamente também criativa. A capacidade de qualquer indivíduo, por meio de tecnologia, produzir imagens desmistificou o lugar do artista, problematizando conceitos basilares da arte, tais como autoria, criatividade e génio (Benjamin, 1931).
Ao mesmo tempo, as artes interpelaram, cada vez mais, a sociedade e os próprios média convidaram o público a integrar o desenvolvimento de algumas produções artísticas. Como Benjamin (1931) defendeu, a percepção transformou-se em crítica, principalmente a partir da indústria cinematográfica que incita, de modo permanente, a opinião do espectador. Desenvolveu-se uma espécie de crítica de massas e os novos média entraram na comunicação pública sugerindo públicos cada vez mais activos ao invés de passivos. Assim, foi-se divulgando e reforçando, até à actualidade, a transição da ideia de um público observador para participante (Loureiro, 2011).
Hoje, com os novos média electrónicos surgem outros enquadramentos de digitalização e de virtualização que instituem novas situações, plataformas e possibilidades de participação do indivíduo na esfera social. Desenvolve-se um activismo em rede, no qual as plataformas digitais, principalmente a internet ou as redes sociais, funcionam enquanto ferramentas de acção, individual, partilhada ou conectada, caso das petições online via Facebook. É, de facto, nas redes, no fluxo de dados móveis e maleáveis que surge uma linguagem de ligações e colaborações, de espectadores e co-produtores de conteúdos, onde todos os utilizadores se encontram num mesmo plano de acção. As plataformas das redes sociais e das ligações electrónicas são, assim, lugares de relação social, de partilha e de exposição de informações, gostos e interesses. Nessa dinâmica, a comunicação é compreendida como acção e participação, sendo constante e continuamente potenciada e estimulada pelas novas tecnologias e redes digitais, que funcionam enquanto instrumentos de interacção entre os indivíduos, mas também entre estes e os mass media.
Tais novas formas de acção em rede funcionam tanto para os média da informação como para os da arte. O universo digital fornece uma inédita possibilidade de circulação da arte, a sua ininterrupta divulgação, tornando-a mais acessível e próxima do público. Com efeito, as redes digitais têm sido recorrentemente utilizadas enquanto plataformas expositivas das obras, não só das mais tecnológicas e virtuais, como de todas as restantes, por meio da possibilidade de conversão de quaisquer objectos em dados digitais. A reprodução e a republicação das obras ocorre numa lógica de símbolos pré-definidos de computação automática, tanto visuais como sonoros e textuais (Couchot, 2015).
Compreende-se, assim, que, no online, há uma ininterrupta transacção entre a produção e a circulação de textos, imagens e sons, estabelecendo-se novas possibilidades de recepção da arte e de relação com o espectador que são determinadas por este último. O digital permite a iniciativa e a escolha por parte do espectador, tornando-o mais ativo e decisor (leitor-decisor). Como Claire Bishop (2012) refere, assiste-se à afirmação de um público participante e co-produtor que surge, a par do artista contemporâneo, cada vez mais produtor de situações e de momentos do que de objectos fixos e imutáveis. Então, por um lado, a arte liberta-se do domínio dos museus e, por outro lado, o espectador afasta-se da condição em que tem sido colocado, de consumidor numa lógica mercantil (Bourriaud, 1998).
Paralelamente, na exposição física das obras, principalmente das mais tecnológicas, participativas e interativas, sugere-se e requer-se a acção do espectador. Como tal, em ambos os casos, físico e virtual, é o espectador que activa o objecto artístico, assim podendo relacioná-lo com o cidadão que, por via da sua participação, produz um acontecimento, como por exemplo, no caso das manifestações. Também, como Louis Quéré (2015) refere, nas dinâmicas de experiência criadas e sustentadas pelos média, os públicos são compreendidos como participantes com um mesmo foco de atenção, esta última que não é somente cognitiva, mas também é sensorial, visual e auditiva, à semelhança da lógica da experiência estética da obra de arte que abrange esses vários âmbitos.
Hans Robert Jauss (1978) já havia proposto a substituição da anterior estética da representação pela lógica da recepção, identificando uma relação aberta entre a produção e a recepção da obra. Distinguiu, na obra, a sua acção, ou seja, o efeito que ela produz determinado pelo texto ou conteúdo que a compõe, da sua recepção, estabelecida pelo seu destinatário. Ora, pode compreender-se como a maioria da criação artística das últimas décadas não consiste, somente, na concepção e construção de um objecto, mas que também incorpora a exposição e a experiência como fases do processo de criação e produção. Consecutivamente, pode compreender-se como as novas práticas artísticas concebem modelos e quadros artísticos cuja experiência é cada vez mais activa.
ACTIVISMO E ACÇÃO NAS ARTES
A relação entre a arte e a sociedade intensificou-se sobretudo a partir da 2ª Guerra Mundial, tempo caracterizado por uma complexidade artística e consequentemente estética, e por um carácter cada vez mais experimentalista e de difícil definição. A necessidade dos artistas expressarem a sua opinião, e darem visibilidade a determinadas condições sociais e políticas, conduziu à constituição de uma arte activista. Esta última fora, inicialmente, compreendida como um movimento a partir do qual se convocam e exploram problemáticas com pertinência e lugar na discussão pública, tais como a guerra, a pobreza e a opressão.
Nesse âmbito, formaram-se grupos de artistas dos quais se destaca o Fluxus, que se notabiliza pelo modo como relacionou a criação artística e a realidade social e pela sua problematização do próprio sistema da arte, principalmente do controlo deste por parte dos poderes dominantes (instituições culturais, mercado, capitalismo). Integrado nesse grupo, mas também reconhecido e valorizado individualmente, Joseph Beuys (1921-1986) provou “como a autonomia, a criação independente e o pensamento crítico sobre a sociedade e as instituições são uma possibilidade efectiva” (Carmo Gomes, 2011: 7). Apelidou as suas intervenções de acções, sendo um dos primeiros a instalar esse conceito no circuito artístico e, simultânea e consecutivamente, a sugerir a abertura da ideia de arte. Expressou-se, principalmente, através de performances, identificando que a voz e a acção do corpo são métodos particularmente eficazes de expressão e de diálogo com o público. O artista procurou incluir o cidadão na sua acção para assim o convidar a participar na esfera da arte, não só na prática, mas também a nível reflexivo. Como tal, apesar de Beuys ter sido, inicialmente, movido por questões do foro sociopolítico, também propôs a reestruturação da relação entre o espectador e a arte, a produção artística como meio de relação com o outro, assim como questionou a possibilidade da desestetização da obra.
Estas e outras semelhantes formas de acção podem ser compreendidas como constitutivas de uma arte social, surgindo, frequentemente, a par de movimentos sociais e consistindo em exemplos que ilustram bem como se relacionam e influenciam as duas esferas. Não obstante, recorrendo a Nicolas Bourriaud (1998), pode interpretar-se grande parte da arte contemporânea como um campo fértil de experimentações sociais, com novas formas de ligação e de comunicação entre indivíduos e entre estes e a arte. É a partir desse entendimento que o filósofo sugere uma arte e uma estética relacionais, centradas nas interacções humanas e no contexto social onde ocorrem. Uma forma de activismo da arte pode, então, situar-se na dinâmica participativa, na acção, experiência e processo, mais do que na ideia da própria imagem, conceito ou objecto artístico. Como Bourriaud (1998) refere, a arte, mesmo não se inserindo nos corporativismos divulgados – tais como o feminismo, o anti-racismo ou o ecologismo – opera a partir de uma comunicação aberta com o público, propondo-lhe modos de comportamento.
Reconhece-se, de facto, que mesmo não se apresentando assumidamente enquanto políticas, principalmente quando comparadas com formas de artivismo, várias práticas artísticas contemporâneas têm a capacidade de desenvolver um projecto político (Bishop, 2012; Rancière, 2010). Nesta elaboração colectiva de sentido, a arte funciona enquanto interstício social (Bourriaud, 1998: 15) e o espaço expositivo, quer seja o institucional, museu e galeria, ou o virtual, torna-se um elemento de diálogo entre o artista, o objecto e o espectador, em semelhança ao próprio espaço público. Sendo a esfera pública o lugar da praxis (acção) e da lexis (palavra) bem como da experiência, podem identificar-se, também, semelhanças com o contexto artístico de que aqui se fala.
Surge, assim, uma intensa, contínua e plural discursividade na arte que conduz ao seu entendimento como uma estrutura comunicacional, cada vez mais afastada da sua inicial concepção enquanto produtora de objectos, com o singular propósito de serem observados e contemplados. Verifica-se, portanto, um forte cruzamento entre a arte e a sociedade, tanto na prática e na experiência como na linguagem e nos conceitos que são aplicados a ambas, tais como comunidade, comunidade artística, ou empoderamento do espectador (Bishop, 2012). A partir daqui, reforça-se a importância de situar e contextualizar as configurações da experiência social da arte e de reformular o que se compreende como activismo e acção, da obra, do seu autor e do receptor.
A ACÇÃO DOS NOVOS MÉDIA DIGITAIS
No final do séc. XX, entre os inúmeros desenvolvimentos técnicos revolucionários, surgiram tecnologias audiovisuais de criação de imagens, conteúdos e realidades virtuais. Desde então, mediante as inúmeras possibilidades que a tecnologia ofereceu a diferentes campos e esferas, o domínio do digital e do virtual em relação ao físico e ao real tem vindo a acelerar-se e ampliar-se. Do mesmo modo que a utilização dos novos materiais e técnicas se instalou e invadiu rápida e determinantemente o quotidiano, o mesmo ocorreu na comunidade artística.
Hoje, criam-se obras de arte, imagens, objectos, instrumentos e instalações particularmente imersivos e experienciais, dependentes da acção, da interacção e da participação do espectador. A grande maioria das produções artísticas dos novos média reflectem uma crescente e acentuada vontade de incluir o público na criação artística, trabalhando a recepção e procurando proporcionar uma intensa dinâmica de experiência. Instala-se e afirma-se, cada vez mais, a ideia de obra aberta, conceito desenvolvido por Umberto Eco (1962) que, apesar de não ter sido originariamente trabalhado em relação ao digital, encontra neste um importante caso. A ideia do autor, da abertura da obra de arte, sustenta que um objecto artístico nunca é oferecido, exposto e apresentado de um modo concluído e fechado, mantendo-se, sempre, susceptível de novas, diferentes e múltiplas interpretações, leituras e consumos. A obra de arte tem a capacidade de se transformar e de adquirir vários sentidos e significados consoante os vários contextos em que se insere e os diferentes públicos que a recebem.
É, precisamente, nesse quadro que se encontram, com particular destaque, os novos média, tanto os analógicos que requerem a sua utilização e activação físicas, práticas e instrumentais, como os digitais e virtuais. São obras de arte que interpelam e provocam o indivíduo que as recebe, sendo capazes de estimular os seus vários sentidos em simultâneo, desde a visão à audição, ao tacto e ao olfacto. Dessas, distinguem-se, ainda, mediante o seu intenso e inédito nível de aproximação ao espectador, os objectos artísticos concebidos com programas tecnológicos de computação, principalmente as aplicações fisiológicas. As peças que aqui se reportam apresentam-se enquanto body-focused e permitem a sua conexão física com o corpo do espectador, manifestando-se e reagindo, por exemplo, em concordância com o seu batimento cardíaco ou a sua respiração. Paralelamente, tendo em conta que as exposições de arte têm o potencial de alcançar largos e heterogéneos públicos e sendo a primeira função das aplicações biofeedback, o tratamento médico e a investigação científica, compreende-se como estes momentos artísticos podem contribuir para estudos das interacções homem/computador e homem/ tecnologia. Nesse sentido, a participação do espectador por meio da criação artística detém uma dimensão de contributo social.
Ora, havendo um quadro social de recepção da arte e quadros de experiência, a exposição e a curadoria revelam-se domínios privilegiados nas várias trocas e interacções entre espectador/arte, espectador/artista, público/museu, artista/museu, artista/mundo e, por associação, espectador/mundo. São estas novas relações dos novos média que instalam uma lógica de participação distinta da restante criação artística contemporânea, o que também contribui para acentuar a distância em relação a esta última. A arte dos novos média opera, expõe-se e apresenta-se de um modo nitidamente distinto de tudo o que a antecede, efetuando uma ruptura típica de vanguarda e requerendo novos quadros de observação, estudo e análise.
Poderá, inclusivamente, questionar-se quais as consequências na, até então, dominante hierarquia museu, curador, artista, obra e espectador, tendo em conta que todos estes elementos intervêm, diferentemente, no objecto artístico, no seu estatuto e na sua produção-recepção. Nesse sentido, o artista funde-se com as massas, ou públicos, e cede parte do seu controlo e poder autoral sobre a obra (Groys, 2008), apesar de permanecer o seu produtor. Por sua vez, não se possibilitando chegar a falar de uma democratização da arte, quer os públicos quer os poderes curatoriais e institucionais permitem que se reconsidere uma redistribuição de funções e de poderes no sistema artístico.
REFLEXÃO FINAL
As práticas artísticas dos novos média estabelecem-se na forma de acções, performances, movimentos e acontecimentos, como processos e sistemas. São participativas, interativas e, recorrendo novamente a Bourriaud (1998), demarcadamente relacionais e constituem-se, frequentemente, enquanto plataformas e interfaces de interacção e comunicação entre a arte, o artista e o espectador.
Com processos cada vez mais físicos, perceptivos e sensoriais, proporcionam experiências particularmente participativas e interativas, com elevados níveis de recepção e de engajamento do público. Este último torna-se utilizador e co-produtor, e a sua acção desenrola-se tanto na esfera física e experiencial das exposições e do contacto sensorial e espacial com a obra, como na esfera virtual, em rede.
A partir daí, desta activação do público, reconhecem-se novas formas de comunicação, de diálogo, de experiência e de interacção entre a arte e a sociedade, ou os actores sociais. Nestas propostas de relação e de diálogo com os novos média identificam-se, também, características comuns com os movimentos de activismo artístico. Paralelamente, a arte dos novos média sugere a reestruturação de algumas concepções basilares do sistema da arte, nomeadamente o lugar e a função do museu, do artista e do espectador, provocando repercussões institucionais, sociais, éticas e políticas. Como tal, o presente estudo defende que as renovadas formas de artivismo que irrompem, produzem um alargamento do conceito da arte, aí incluindo as produções artísticas mais activas e experienciais.
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