Uma ocupação é uma interrupção. Em uma ocupação, corpos, espaços e redes digitais se agenciam e dão a ver experiências em fluxo que mobilizam deslocamentos de tempo, espaço e das normas. Do público e do instituinte. Esse ensaio se propõe a tecer articulações sobre experiências sensíveis que emergem nessa suspensão das regras e do normalizado e abrem espaços para potências destituintes e partilhas de um sensível comum a partir de ações recentes de jovens estudantes do liceu. Elegemos para essa reflexão dois casos emblemáticos e transitamos por eles. São eles as Ocupações Secundaristas Brasileiras, movimento protagonizado por estudantes do ensino secundário brasileiro (o liceu) que ocuparam mais de mil instituições de educação em todo país entre 2015 e 2017, e o movimento #schoolstrike4climate ou #fridaysforfuture, liderado por Greta Thunberg, jovem de 16 anos, que não ocupa a sua escola, mas boicota as aulas e ocupa a frente do parlamento sueco, em Estocolmo, todas as sextas-feiras, desde agosto de 2018, em uma greve pelo futuro climático global. Abordamos os gestos de ocupação desses estudantes não pela ordem negativa, mas interruptiva. “Está em jogo a capacidade de desativar e tornar (o sistema) inoperante, sem simplesmente destruí-lo, mas liberando a sua potencialidade para um uso diverso” (AGAMBEN, 2014, p. 272). Nesse campo da suspensão de regras que regulam a experiência normal, entendemos que
uma ocupação é algo impossível que acontece. É uma interrupção que revela a estrutura, um gesto que rompe com o seu contexto. Em uma ocupação, todos os gestos políticos são liberados do seu sentido normal, como o gesto em geral o é na dança, e como a palavra o é na poesia. Uma ocupação é um laboratório de política em que novas formas de vida e participação são inventadas. Ela é um espaço de produção de alternativas. (MAGALHÃES, PAIVA, 2016, p.86).
Das ocupações, portanto, emergem experiências em fluxo que mobilizam deslocamentos de tempo e espaço e do instituinte, que, pensamos, convergem para a partilha do sensível político. Em Rancière (2009, p. 15), “uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas”. A partilha do sensível “faz ver quem pode tomar conta do comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce” (Rancière, 2009, p.16).
Com essas reflexões, elegemos o pensamento agambeniano sobre a potência destituinte (AGAMBEN, 2014a; 2014b) como ponto de partida para interrogar, convocar reflexões sobre a experiência e os processos de subjetivação em jogo nos movimentos de protesto desses jovens adolescente e do quanto eles não só tensionam o regime do dispositivo escolar, mas também apontam para novas ordens de resistência contra os poderes institucionais e as formas cotidianas de assujeitamento – em suma, uma ruptura com o instituinte. Em Agamben (2014a, 2014b), a potência destituinte pode ser concebida como uma potência interruptiva, uma noção que se liga ao meio puro e não ao meio para um fim. Trata-se de pensar as ocupações da dimensão de um poder destituinte que não pretende a conservação ou renovação da ordem, mas a sua destituição.
É toda a dificuldade de uma ruptura: ela (a Ocupação dos Secundaristas) não pode ser lida apenas com as categorias disponíveis antes dela, categorias essas que a ruptura justamente está em vias de colocar em xeque. A melhor maneira de matar um acontecimento dessa ordem é reinseri-lo no encadeamento causal, reduzindo-o aos fatores diversos que o explicariam e o esgotam, ao invés de desdobrar aquilo que eles trazem embutido, ainda que de modo balbuciante ou embrionário, de novo, de inaugural, de fundante. (PELBART, 2016, s.p.)
A origem etimológica do termo “ocupar” remonta ao latim occupare, que remete a significados como “pegar”, “apanhar”, “capturar”, “apoderar-se”, “conquistar (PERISSÉ, 2011, s.p.). Hoje, a utilização do verbo ocupar e do termo “ocupações” no Brasil e em Portugal, países de língua portuguesa, decorre das transformações recentes de significado associado ao termo “occupy” no idioma inglês. Para Alim (2012a, 2012b), o movimento Occupy Wall Street está na principal origem dos novos significados da palavra “occupy/ocupação”. Até há pouco tempo, para o pesquisador, “ocupar” significava operação militar. Hoje, ocupar é sinónimo de luta política progressista. Ainda segundo Alim (2012a, 2012b), na linguagem corrente, países, exércitos, polícias, “ocupavam” territórios, praticamente sempre pela força. Para ele, colonizadores ocuparam e não “descobriram” países. Mas, atualmente, “ocupar” é um termo que está associado a “denunciar injustiças, desigualdades, abusos de poder. E não se trata de apenas impor-se num espaço: hoje, ocupar significa também transformar os espaços” (ALIM, 2012a).
Seja nos dicionários da língua portuguesa ou inglesa, a palavra “ocupação” aparece com o sentido de preencher, de assumir o controle, de “estar na posse de”. Há aqui uma dimensão situacional que não se pode perder de vista também. No caso dos estudantes secundaristas brasileiros, eles “estavam” naquele momento reivindicando o espaço escolar em seu caráter não ontologicamente público, mas público por ação dos sujeitos que, com seus corpos e discursos, física e virtualmente, o ocupam. A jovem sueca Greta Thunberg, com seu cartaz onde se lê “skolstrejk för klimatet” (viralizado globalmente como “school strike for climate”, mas traduzido em inúmeros idiomas num movimento que alcançou proporção mundial) todas as sextas-feiras, sejam de frio, chuva ou neve, ocupa a frente do parlamento e os próprios parlamentos, fóruns, conferências de tantos países que já a convidaram para a ouvir sobre a urgência das mudanças em relação à crise climática, num lembrete que, por fim, acaba numa partilha com o público e se constitui numa ética da convivência.
No Brasil, inicialmente, os estudantes ocuparam 213 escolas no Estado de São Paulo, num movimento que surge motivado pela verticalidade e pela falta de diálogo no projeto de reorganização escolar proposto pelo governador Geraldo Alckmin, em 2015, com grandes prejuízos para a comunidade escolar. Logo, assume muitas outras pautas, que multiplicam-se e não assumem unidade ou projetos específicos. Em 2016, o movimento seguiu-se, atingindo todos os estados brasileiros, reivindicando melhores condições na educação, apoiando greves de professores e denunciando projetos de lei associados à privatização do ensino, a reformas do ensino médio que suprimiam a obrigatoriedade de disciplinas de humanidades – como Filosofia e Sociologia – e também de disciplinas como Artes e Educação Física, além de favorecerem a flexibilização na contratação de profissionais sem licenciatura como professores, o projeto Escola Sem Partido e a Proposta de Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos (PEC-241).
Com a proposta de ajuste fiscal da PEC-241, de congelar gastos públicos primordiais firmados pela Constituição Brasileira de 1988 pelos próximos 20 anos, atingindo diretamente áreas como educação e saúde e afetando os mais pobres do país, o movimento cresceu e também as universidades públicas brasileiras aderiram às ocupações, formando uma onda que se espalhou por mais de 1.190 escolas, institutos e universidades ocupados (UBES, 2016).
Já o movimento School strike, ou FridaysforFuture, inicia em uma atitude pessoal da estudante Greta Thunberg e passa a inspirar dezenas de milhares de estudantes em todo mundo. O que começou como uma greve de uma pessoa, expandiu. De acordo com a organização 350.org, a greve global pelo clima convocada por Greta para 15 de março de 2019, reuniu mais de 1,6 milhões de estudantes em mais de 125 países, que esvaziaram suas salas de aula para ocupar as ruas e exigir das autoridades públicas uma posição sobre os seus futuros.
Nunca houve nada parecido na história. Em nenhuma história. Os filhotes tentam salvar o mundo que os espécimes adultos destroem sistematicamente. Para além dos efeitos concretos sobre o futuro da humanidade, serão necessários muitos anos de estudos para compreender os efeitos desta inversão sobre a forma de compreender o mundo e seu lugar no mundo daqueles que serão adultos amanhã. Mas, para isso, é preciso antes ter amanhã. (…) Meninas como Greta e outras tantas, porque elas são muitas, não querem ocupar o lugar dos adultos. Não é disso que se trata. O que elas querem talvez seja ainda mais difícil. Ao denunciar a infantilização dos governantes, elas reivindicam que os adultos se “adultizem”. (BRUM, 2019).
Ao trazer “o fora” para o centro do político, seja ao ocupar ou ao esvaziar a escola e levar os estudantes para as ruas, os movimentos mencionados destituem a lógica de formação de uma comunidade que busca representatividade ou uma essência identitária e instauram um acontecimento micropolítico da ordem dos desejos. Ruas, parlamentos e salas de aula ganham novos usos, lideranças são enfrentadas, os estudantes desempenham outros papéis. Usos diversos feitos por corpos que reconfiguram suas potências do sentir para o sentir em-comum. Transitar o comum “é situar-se em uma práxis mediante a qual se produz um sujeito transformado, mais que um produto conformado, um sujeito infinito, mais que um objeto determinado” (NANCY, 2008, p. 54).
A ocupação não se refere a nada além de si mesma e não representa nada além de si mesma. Ela quebra com a linguagem como representação e com a política democrática representativa. (…) Em uma ocupação, estão canceladas as distinções entre meio e fim, público e privado, real e ideal, erro e acerto, possível e impossível. (…) A ocupação recusa, em regra, toda razão transcendente à própria ocupação. A ocupação é imanente. Ocupar é, em primeiro lugar, dizer não, mas dentro deste não há a semente de um sim diferente. Ocupar é exercer poder destituinte e, talvez, poder constituinte, no local. (…) As ocupações das escolas mostram as ocupações das escolas. Qualquer tentativa de sequestro desses espaços para os fins da política institucional abandonam o escopo da ocupação. (MAGALHÃES; PAIVA, 2016, p.86, grifo nosso).
É nesse sentido que se inscreve a dimensão de ruptura com as formas de submissão da subjetividade, ainda que movimentos como esses pareçam fugazes em seus objetivos, conquistas e duração, ainda que não invertam completamente as relações de força instituídas, temos já novos arranjos subjetivos sendo produzidos na sociedade. É dessa perspectiva que apontamentos para a produtividade da crítica de Agamben ao paradigma produtivista de nossa sociedade através de suas noções de “uso”, “potência de não” e “inoperosidade/inoperância”. Adotamos tais conceitos para refletir sobre os processos subjetivos que estão sendo expressos nessas ocupações. Partimos da defesa do autor de que uma potência deve ser sempre também uma potência de não-ser ou não-fazer, ao mesmo tempo em que potência não se confunde com ato, não há necessidade ou garantia da primeira converter-se na segunda. Vislumbramos essa potência na recusa da representação das ocupações ou greves pela defesa climática, na sua ruptura com a ordem, no caráter de impulso superior ao de finalidades, de fluxos de movimento e subjetivação coletiva sobressaindo-se a organizações e princípios identitários.
Ocupar é, em primeiro lugar, dizer não. Ou, assim como sugere Agamben, a potência só é possível, só é absoluta, se for potência “de” e “de não” (AGAMBEN, 1993, 2015), “se a tabuinha de escrever puder não ser escrita” (AGAMBEN, 1993, p. 19). Caso contrário, a potência seria sempre potência a existir somente no ato que a realiza, negando a potência de não passar ao ato. Agamben recorre ao personagem Bartleby, do conto Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street (MELVILLE, s.d) para abordar os sentidos dessa potência de não (ser) e abordar a inoperância como dimensão que ultrapassa a passividade. Mais uma vez, a potência de não (e a destituinte) não é da ordem negativa, mas interruptiva. “Em ambos os casos (inoperosidade e potência destituinte) está em jogo a capacidade de desativar e tornar inoperante, sem simplesmente destruí-lo, mas liberando a sua potencialidade para um uso diverso” (AGAMBEN, 2014, p. 272).
No conto, Bartleby é um escrivão em um escritório de Wall Street que, sem razão aparente e sem que se saiba sobre sua história de vida ou crenças motivadoras, passa a responder a qualquer solicitação de seu superior com a fórmula linguística: “I would prefer not to” (MELVILLE, s.d.). “Não é que ele não queira copiar ou que queira não deixar o escritório – somente preferiria não fazê-lo” (AGAMBEN, 1993, p. 26). Para o autor, as variações da fórmula sempre respondida “Preferiria não” e “Prefiro não” não afirmam, nem negam, e, ao não o fazerem, mantêm o personagem em absoluta potência, em uma ausência do trânsito da potência ao ato (AGAMBEN, 1993). “A fórmula, tão agudamente repetida, destrói qualquer possibilidade de construir uma relação entre potência e querer, entre potentia absoluta e potentia ordinata. Essa é a fórmula da potência” (AGAMBEN, 1993, p. 26). Importa em Agamben perceber que Bartleby, ao poder não escrever, pode não, pode a impotência, a inoperosidade.
Nesse sentido é que pensamos que as críticas que apontam para falta de “atos”, projetos ou finalidades das ocupações secundaristas brasileiras deixam escapar a validade do movimento enquanto experiência da pura potência – e tal experiência enquanto possibilidade de linhas de fuga e de novos modos de subjetivação.
Em sua carta, Pelbart (2016) sinaliza a existência de um tendência para buscar medir tais movimentos pela “régua da contabilidade de mercearia ou do jogo de futebol”. “Quanto lucramos?”, “No que deu?”, “Quais forças favoreceu?”, “No final, quem venceu”? (PELBART, 2016, s.p.). Ao nosso ver, mesmo sem responder a todas essas perguntas, o #OcupaEscola, de certo modo, exerceu sua capacidade de inoperância, de não necessidade de trânsito ao ato – ainda que sob muitos aspectos tenha sido simultaneamente destituinte e constituinte. Seu caráter principal permaneceu ligado aos fluxos desejantes de espaços para novas subjetividades políticas e coletivas mais do que a projetos ou soluções de reivindicações. A complexidade vem justamente de que “reivindicações podem ser satisfeitas, mas o desejo obedece a outra lógica – ele tende à expansão, ele se espraia, contagia, prolifera, se multiplica e se reinventa à medida em que se conecta com outros” (PELBART, 2016, s.p.).
A lógica que vemos nas ocupações se conecta também com a abordagem que Agamben oferece – a partir de sua perspectiva arque-genealógica – dos “usos” e de como esses se conectam com a potência de não, e de inoperosidade, enquanto alternativas ao paradigma produtivista – com o qual boa parte dos movimentos de insurgência pós ano de 2011 parece desejar romper. Ao deslocar a questão da ação (e da necessidade de trânsito da potência a ela) aos “usos”, o que autor propõe é pensar não um sujeito que usa um objeto, “mas um sujeito que se constitui apenas através do uso, o ser em relação com o outro. O uso, nesse sentido, é a afectação que um corpo recebe tanto quanto está em relação com outro corpo” (AGAMBEN, 2014b, s.p.).
Não esquecemos a dimensão conectiva, a condição digital e a reticularidade do fazer em rede que caracteriza as formas contemporâneas dos activismos e da política das ruas e atravessa os corpos dos estudantes que tomam escolas de um país ou que erguem seus cartazes contra o aquecimento global pelo mundo. Corpos esses cujas experiências são atravessadas hoje pelas tecnologias da virtualidade, digitalização e conectividade, e conformam nossas experiências políticas e de todo tipo.
“A alma é um nome para a experiência que o corpo é”, nos disse Jean-Luc Nancy. Inscrevemos, portanto, a experiência estética do sentir em rede nessa dimensão de ampliação das margens do político e da pura potência: das ações aos usos, da obra desativada e tornada inoperosa, dos novos usos possíveis. Nesse sentido, concordamos com Stiegler (2018), que aponta que a política é arte de garantir um desejo de futuro comum, uma singularidade como devir-um. Para o autor, esse desejo supõe um fundo estético também comum: estar junto é ser um conjunto sensível – uma comunidade política é, então, uma comunidade do sentir (idem). Se o problema do político consiste em saber como estar juntos, hoje o “viver juntos” é inteiramente atravessado pelas tecnologias da ecologia comunicativa digital.
Acreditamos, com isso, que refletir sobre os usos dos corpos, espaços, discursos que se dão nesses movimentos, originados nos estudantes tão jovens, convergem para deslocamentos subjetivos, para expressões de potências de sim e de não, para um “uso” – do político, da escola, do comum – que se afasta de noção de uso de propriedade justamente porque não se sujeita a ela.
Dessa perspectiva, os movimentos occupy, em todo mundo, talvez constituam o novo paradigma das lutas do presente, descentradas da lógica produtiva e dispostas a abrir zonas de indiscernibilidade entre a potência de ser e fazer, e a potência de não ser e não fazer, de forma a interromper os processos do capital e experimentar estratégias de desterritorialização em relação aos valores da sociedade produtivista. Com a recusa a códigos estabelecidos, à normalização da destruição do planeta, às precariedades que atigem o sistema de ensino, estes estudantes configuram novas sensibilidades e modos de subjetivação singulares. Em alguns casos, suas ocupações – de escolas e ruas – não chegam a “atuar” (o trânsito ao ato) no sentido político produtivista (dos “resultados”), mas, sim, abrem possibilidades de novos “usos” e formas de vida.
Ao experimentarem linhas de potência do não, que desativam a dicotomia ser-agir, a imposição potência-ação e o binômio posse-identidade, movimentos como estes permitem mobilizar alternativas de uma existência potencial, de uma política e uma comunidade “que vêm” e que podem experimentar modos de ser e estar no mundo menos atravessados pelo dever, pela imposição produtiva do ser/fazer que demanda, endivida, enfim, para além da operatividade e da governamentalidade. Daí que a potência destituinte nos defronte com questões vitais e muito contemporâneas, não só relacionadas às condições de sua existência, como à urgência de experimentar e propor alternativas de politização da vida, da “democracia”, do próprio político. Existências que restituam o comum.
Referências
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