Ressignificação, Revolução e Tecnologia – O 25 de Abril


Parece existir uma espécie de um saber criar imagens e significados, numa composição que alimenta, mantém e destrói regimes e modelos políticos. A criatividade e a inovação encontram-se naturalmente em grandes doses na juventude, sendo os jovens muitas vezes os líderes de movimentos revolucionários, onde assistimos à criação de sentidos e processos de ressignificação. O anticapitalismo, o antineoliberalismo, a antiglobalização, misturam-se com manifestações por políticas de identidade em prol dos direitos, por meio de formatos intertextuais e polifónicos por vezes contraditórios e incoerentes.

Desde o Maio de 68 que temos vindo a observar muitos episódios que envolvem movimentos de jovens. Um movimento revolucionário, quanto aos costumes, aos valores, mas acima de tudo em relação ao sentido. Uma revolução opera-se a partir da construção e desconstrução de significado e, consequentemente, da mudança de mentalidades, que dá lugar a novos modelos de organização política e social.

O antagonismo dos movimentos juvenis é eminentemente comunicativo do ponto de vista de sua natureza. Nos últimos trinta anos a juventude tem sido um dos atores centrais em diferentes ondas de mobilização coletiva: refiro-me a formas de ação inteiramente compostas de jovens, assim como à participação de pessoas jovens em mobilizações que também envolveram outras categorias sociais. (Melucci, 1997: 11-12)

As performances dos movimentos sociais podem assumir vários formatos e ações como a constituição de associações e coligações especialmente orientadas para um propósito, reuniões públicas, cortejos solenes, vigílias, marchas, petições, discursos junto dos media e a criação e distribuição de panfletos. Hoje, falamos dos novos media, da internet, de dispositivos móveis, tecnologias que incorporam os processos comunicacionais, usados na comunicação política, em manifestos de protesto ou na mobilização. Moral protest comes in different styles. The standard ones today include large public rallies and marches, occupations of symbolic or strategic sites, provocative verbal and visual rhetoric, and more mainstream lobbying and electioneering (Jasper, 1997: 5).

Entre nós, o 25 de Abril é lembrado como o ponto de viragem do Portugal do Estado Novo para o Portugal da construção democrática. Todas as sociedades precisam do mito para sobreviverem, como já dizia Connerton. Por altura das comemorações dos 40 anos da “Revolução dos Cravos”, uma festa-manifestação ocorreu, na madrugada de 25 de Abril, com a participação de vários grupos da sociedade civil, maioritariamente jovens.

Rios ao Carmo ficou marcada pelo conteúdo que gerou nas redes sociais online, especialmente no Facebook, que contribuiu, grandemente, para o processo e mobilização.O trabalho aqui proposto descreve as estratégias discursivas criadas pelo grupo de alunos da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, apresentadas durante “Rios ao Carmo”, em 2014, que compreende performance e vídeo-performance em torno de imagens icónicas de Salgueiro Maia. “Rios ao Carmo” reuniu na noite de 24 de Abril vários grupos e movimentos sociais, maioritariamente jovens, num formato de manifestação-festa, que culminou numa concentração no Largo do Carmo, em Lisboa. Com reportórios variados, os grupos assumiram o “conflito” latente, manifestando-se contra a ordem instituída ou reclamando direitos, com um modelo de ação diferente daquele que era habitual marcadamente corporativista e de influência marxista-leninista, orientado por uma visão do mundo em constante mudança. Caracterizado pela ação direta dos manifestantes, este novo modelo de atuação e intervenção política é também muito menos formal e hierárquico, mais horizontal, cujos intervenientes se articulam tendo por base a autonomia e a singularidade de cada membro no grupo e a ação coletiva, tendo a criatividade e a tecnologia como estrutura identitária e como Ethos, que marcam o comportamento de uma nova geração de militantes, ou melhor de “ativistas anticapitalistas”. São “novíssimos” movimentos orientados por valores como a diversidade, a descentralização, a interdependência e a interconexão entre as dimensões do particular e do universal. Um novo significado da ação política surge com estes novos movimentos e com ele novas formas de manifestação, misturando e combinando os meios tradicionais com formatos inovadores, repletos de humor e de criatividade.

Nos sistemas contemporâneos os signos tornam-se intercambiáveis: o poder apoia-se de forma crescente nos códigos que regulam o fluxo de informação. A ação coletiva de tipo antagonista é uma forma, a qual, pela sua própria existência, com seus próprios modelos de organização e expressão, transmite uma mensagem para o resto da sociedade. Os objetivos instrumentais típicos de ação política não desaparecem, mas tornam-se pontuais, e em certa medida, substituíveis. (Melucci, 1997: 6)

Existem efeitos criados pelo uso das tecnologias da comunicação, pela sua incorporação na linguagem, e como tal, a ideia de “performatividade da linguagem”, defendida por Austin, é reconfigurada e possibilita a ressignificação por parte dos intervenientes do processo comunicacional, e neste caso, pelos movimentos sociais. Aliás, a proposta de ressignificação e temporalidade aberta dos signos que nos propõe Butler, quando sugere o “orgulho homossexual” enquanto processo de ressignificação, é parte constituinte da identidade e aceitação do grupo.
Em 1994, a insurreição zapatista de Chiapas contra o neoliberalismo transformou o carácter e o formato das manifestações e de como estas são instrumentalizadas por organizações e movimentos sociais, pois constituiu o primeiro caso de que se tem memória, onde as novas tecnologias da informação e da comunicação desempenharam um papel preponderante na sua organização. Igualmente, o caso de Seattle, em 1999, ilustra a dimensão global da ação política e do protesto, tendo por base o uso daquelas tecnologias.Num regime democrático as manifestações constituem um importante dispositivo de regulação e de garantia do pluralismo e liberdade, mas quando utilizadas por organizações e grupos que não os convencionalmente aceites no “jogo político”, podem assumir configurações distintas e algo inesperadas.

ESTUDO DE CASO – “RIOS AO CARMO”
Rios ao Carmo realizou-se dia 24 de Abril de 2014 no âmbito das celebrações dos 40 anos do golpe militar do 25 de Abril de 1974, organizado por vários grupos e movimentos da sociedade civil. O conceito foi assente na analogia de vários afluentes de um mesmo rio, cuja “foz” foi o Largo do Carmo, em Lisboa, o local simbólico onde o capitão Salgueiro Maia obrigou à rendição de Marcello Caetano. Os vários braços do rio representaram diferentes causas e direitos reivindicados por vários e diferentes grupos da sociedade civil, entre novos movimentos sociais e movimentos tradicionais. De acordo com o blogue que o grupo organizador desenvolveu com o propósito de apoiar a divulgação da ação contabilizam-se 24 grupos com ações de mobilização tendo por base páginas de Facebook e a criação de eventos na mesma plataforma de rede social online.

“CURTO E GROSSO 450+ESTUDANTES AO CARMO” reuniu dois grupos de estudantes do ensino superior, um deles formado por estudantes da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, com o apoio da Associação de Estudantes, e outro, de âmbito mais alargado, constituído por estudantes universitários, com o objetivo de se manifestarem sobre o direito e o acesso à educação, acerca dos elevados custos dos cursos artísticos e contra as propinas e condições precárias nas universidades. Os participantes concentraram-se junto à Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, a partir das 17 horas, do dia 24 de abril, de 2014, num processo de mobilização realizado por estudantes ativistas da Associação de Estudantes da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, através dos seus contactos e relações interpessoais com colegas, utilização da página do Facebook e criação de eventos na plataforma, assim como de vídeos que funcionaram como teaser em plataformas como o Youtube.
Tendo por base a imagem de Salgueiro Maia, considerado um símbolo da Revolução de Abril, este grupo desenvolveu a sua estética e estratégia de mobilização, aplicando-a nas máscaras que os participantes usaram durante a manifestação e igualmente em vários vídeos. Os estudantes realizaram trabalhos artísticos sobre a imagem, de forma a recontextualizá-la, a dar-lhe uma dimensão mais atual, mais contemporânea. Nos vídeos, a presença de vários elementos do grupo usando a máscara, como elemento unificador, conferiu um carácter coletivo e uniu-se em torno daquele símbolo, e ainda a criação da frase “Solta o Salgueiro que há em ti!”, que está conotada com anúncios publicitários de produtos de consumo, como o caso de uma marca de chocolate cujo slogan é “Solta a fera que há em ti!”. Uma estética assumidamente crítica ao sistema consumista e capitalista atual. Estes elementos foram usados em vídeo-performance, objetos artísticos, agora com a função de teaser para a mobilização.

A página do grupo Estudantes ao Carmo no Facebook permitiu averiguar alguns dados, como o seu potencial mobilizador, a contar pelo número de contactos realizados, que se situou nos 1860 convites enviados, dos quais 90 referiram que iriam estar presentes. Quanto a conteúdos, foram publicados 44 posts, sendo que 35 compreendem elementos textuais, 21 veiculam imagens e 15 incorporam vídeos. As publicações compreendem aspetos textuais e imagéticos relativos ao 25 de Abril, convites, vídeos, páginas e notícias relativos ao evento “Rios ao Carmo”; convites para encontros na Assembleia da República no dia 25 de Abril; mensagem com hiperligação à página da Guilhotina.info para download de imagens e materiais de divulgação de “Rios ao Carmo”; mensagens alusivas ao Sindicato dos Estivadores; mensagens com informações sobre o ponto de encontro de “Rios ao Carmo”; vídeo com poema e canção de Colette Magny, Les gens de la moyenne; mensagens que remetem para outros grupos “Rios”; hiperligação a vídeo italiano relativo a Portugal antes do 25 de Abril; convite para manifestação junto à Bolsa de Lisboa; hiperligação com vídeo sobre manifestações de estudantes no Quebec em Maio de 2012; hiperligação com vídeo sobre manifestação Melissa Sepúlveda, Marcha en apoyo al paro portuário [STGO]; mensagem com vídeo com imagem e música sobre os estudantes Me gustan los estudantes; mensagem com hiperligação a blogue sobre a história da revolução estudantil internacional; mensagem com hiperligação a blogue com historial do movimento estudantil em Portugal; vídeo sobre manifestação de estudantes em Portugal de 1993; hiperligação a blogue com vídeo com documentário sobre revolução na Universidade após o 25 de Abril; hiperligação a sítio da internet da RTP com vídeo sobre o 25 de Abril nas escolas e universidades; hiperligação a vídeo sobre protesto dos alunos dia 10 de outubro de 2004; hiperligação a sítio da internet da RTP sobre vídeo com reportagem sobre crise académica de 1969; hiperligação a reportagem de 2013 da RTP respeitante aos cortes na educação; hiperligação a artigo do Público sobre a perda de estudantes no ensino superior; hiperligação a artigo do Público sobre o número de estudantes sem dinheiro para estudar no ensino superior.
No dia 24 de abril, o grupo “Curto e Grosso 450+Estudantes ao Carmo” concentrou-se no Largo da Academia Nacional de Belas Artes. Durante a investigação para este estudo de caso realizámos observação participante e entrevistas, cujas notas e material recolhido como imagens e sons poderão ajudar a descrever melhor o contexto. De acordo com o caderno de notas:

O Largo da Academia Nacional de Belas Artes às 20.25h encontrava-se um pouco vazio. Dois jovens, um rapaz e uma rapariga, estavam sentados num banco debaixo de uma árvore. Uma rapariga sentada nos degraus da escada da porta da Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Passados poucos minutos, já eram três jovens no banco debaixo da árvore, um rapaz juntou-se ao grupo. Dois jovens deste grupo colocavam flores (sardinheiras) no cabelo. Às 20.25h passou no local uma carrinha do corpo de intervenção da PSP.
No grupo de três jovens, um dos rapazes tinha uma guitarra e à medida que falavam ele dedilhava melodias no instrumento. Cantaram algumas músicas, algumas delas inglesas do tipo anos 60. Noutro banco, encontravam-se mais quatro jovens. Duas raparigas tinham consigo uma garrafa de vinho. Dois jovens ao passar disseram ir fazer a “queimada” e cumprimentaram outros com “olá, olá” e entraram no edifício da faculdade. Jovens saem da faculdade. Uma rapariga do grupo, com óculos, entra para o edifício da faculdade, ela tinha uma fotocópia do rosto do Salgueiro Maia, como uma máscara, com rasgos nos olhos, para colocar como máscara. No grupo, fala-se de piercings. Ela fez três furos e tem quatro agora. Três jovens acabam de chegar e um rapaz grita pelo Benfica. Chega um rapaz de carro. Outra rapariga passa com uma máscara de Salgueiro Maia.
Às 20.50h, um grupo de jovens comia lentilhas numa caixa de plástico, sentados num dos bancos do largo. Eram vários jovens e alguns eram alunos da Faculdade de Belas Artes. Neste momento foi indicada uma pessoa para responder a questões sobre a ação, pelo que uma jovem apontou com o dedo dizendo, “Ela é que é a culpada”, tratava-se de uma aluna de pintura que pertencia à Associação de Estudantes. A rapariga identificou-se como ativista e que naquele momento estava a meio de uma ação de mobilização de pessoas, disse ser uma ação que potencia a “autonomia das pessoas, cada um pode mobilizar quem quiser, as pessoas, e fazer o seu Rio”. Ela disse também que alguns colegas chegariam depois, porque foram jantar. Entretanto, outros jovens passaram por nós com máscaras do Salgueiro Maia. Ela continuou dizendo que aquele acontecimento “é simbólico, apesar de Abril ter um significado. Hoje é diferente. Tem outro significado este Salgueiro.

Segundo Melucci “quando a democracia for capaz de garantir um espaço para que as vozes juvenis sejam ouvidas, a separação será menos provável e movimentos juvenis poderão tornar-se importantes atores na inovação política e social da sociedade contemporânea.” (Melucci,1997: 13-14)


Imagens: Nuno Correia de Brito, captadas junto ao grupo de estudantes da FBAUL.

Bibliografia

Butler, Judith (1990), Gender Trouble: feminism and the subversion of identity, New York, Routledge.

Butler, Judith (2002), Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”, Buenos Aires, Paidós.

Jasper, James M. (1997), The art of moral protest: culture, biography and creativity in social movements, Chicago, The University of Chicago Press.

Melucci, Alberto (1997), Juventude, tempo e movimentos sociais,Revista Brasileira de Educação, Nº5/Nº6, 5-14