Produção Multimídia e Software Livre: das redes distribuídas à estética da multidão

A INTERNET DAS PESSOAS

O acesso crescente à Internet vem acompanhado de uma mudança cultural muito significativa sobre as modalidades de circulação de bens culturais muito valorizados em nossas sociedades pós-industriais. Estima-se que pelo menos um terço de toda a atividade online seja dedicada a assistir vídeos, e que metade de todo esse consumo se dê em telemóveis. Observemos também que a crescente a quantidade de aplicativos como Periscope, que se oferecem como alternativa para realizar streaming de vídeo em dispositivos móveis, permitiram, apenas em 2016, a criação de 200 milhões de canais de transmissão ao vivo de vídeo. Diante de uma explosão significativa na produção e consumo de vídeos em aparelhos que cabem na palma de nossas mãos, que contradições poderíamos descrever entre o avanço das forças produtivas da cultura digital audiovisual e as relações de produção herdadas do século de tecnologias de comunicação analógicas? O que, afinal, está mudando nos padrões estéticos de consumo entre redes distribuídas de compartilhamento de bens digitais e na forma de produção desses conteúdos, cada vez mais abundantes e presentes no cotidiano das sociedades informatizadas?
Este texto se propõe a discutir a noção de progresso técnico, compartilhada entre as sociedades informatizadas, e relacioná-la à alienação técnica (Simondon, 2008) provocada por um desconhecimento sobre a natureza, sobre o potencial evolutivo dos objetos técnicos. Para tanto, gostaria de associar o consumo de vídeos em telas de tamanho muito inferior às grandes telas – nas quais a resolução de 1080 linhas apresenta uma imagem com “alta-definição” – às ferramentas de produção de vídeos de baixa resolução que, por sua vez, prescindem de computadores de alta performance para serem editados e finalizados “com qualidade”. Assim composto, o presente argumento visa desconstruir uma certa noção de progresso técnico, predominante em um modelo de comunicação analógico, passando a enfrentar mudanças estruturais ocasionadas por uma nova realidade de produção que consideraremos, levando em conta a emergência de um particularíssimo meio digital (Hui, 2016: 26).
A caracterização de uma especificidade para o contexto digital de circulação audiovisual pode ser feita de diferentes maneiras, ao que espero já ter introduzido ao registar o avanço exponencial das forças produtivas deste tipo de bem cultural. O enfoque para compreensão desse fenômeno, no entanto, visa à construção de uma abordagem estética, informada não mais por regras de acesso econômico aos meios de produção, mas co-criada entre redes com amplo acesso à produção de bens culturais digitais. Com isso, interessa-nos perguntar: como se pode conceber, neste novo contexto, a passagem da televisão analógica para digital como uma evolução na “qualidade de imagem”? O sentido proposto para a reflexão aqui apresentada sugere um investimento sobre uma arqueologia de mídia (Ernst, 2018), que implica na descrição de uma temporalidade específica a ser investigada com ferramentas recém criadas dentro do que poderia ser chamada de uma emergente antropologia dos objetos técnicos.

OBJETOS DIGITAIS: O SOFTWARE LIVRE E O SOFTWARE PROPRIETÁRIO

Em seu livro sobre os objetos digitais, Yuk Hui os concebe como “questões pragmáticas de engenharia ou como fenômeno do digital” (2016: 3), destacando suas ontologias como determinantes daquilo que os constituiria como objetos, mais do que seus dados ou metadados: “as ontologias dão à máquina a habilidade de reconhecer e operar o objeto como uma unidade ao invés de dados aleatórios” (2016: 34). No caso do software, parece-nos adequado considerar que a dificuldade em se definir sua ontologia ocorre porque se trata de “um artefato humano que não se enquadra em definições convencionais encontradas no dicionário, pois, além de ser uma entidade de natureza mecânica, é uma entidade descritiva, complexamente hieraquizada, cognitivo-linguística e histórica, concebida através de esforços coletivos durante um considerável período de tempo” (Fernandes, 2003: 29). Ora, se o software possui uma ontologia própria, entre os mais variados objetos digitais, interessa-nos questionar como, dentro do universo do software, poderíamos distinguir diferentes tipos, distintas naturezas sócio-técnicas de software, e buscar entender igualmente como sua relação com o meio digital os define e os constitui.
Na introdução de sua tese sobre o modo de existência dos objetos técnicos, defendida em 1958, Gilbert Simondon (2008) nos chama a atenção para um comportamento humano alienado em relação aos objetos, que enxerga nos mesmos não mais que sua mera utilidade. Se um tal empobrecimento poderia ser diretamente relacionado ao atual agravamento de nossa crise ambiental – considerando o aceleramento dos ciclos de obsolescência programada de eletrônicos, por exemplo – a comparação que aqui se vislumbra é de outra ordem: que diferenças técnicas podem ser estabelecidas entre tipos de software que, supostamente, funcionam da mesma maneira e com um mesmo fim?
Gostaria de argumentar, acompanhando o pensamento de Simondon, que existe um tipo de software que é mais evoluído que outros, não por executar com maior precisão determinados automatismos, mas por ser mais aberto a inovações partidas mesmo da linguagem dos computadores; por manterem uma maior margem de indeterminação (Simondon, 2008) em seu funcionamento. Além disso, se considerarmos como parte integrante do meio digital associado do software livre um conjunto de programadores e usuários que se comunicam permanentemente para promover a evolução do software, parece claro que a cultura técnica que compartilham aproxima produtores de consumidores e não é regida pelo esquecimento presente na compra e venda de mercadorias: eis como surgiu e como continua a existir o movimento do software livre em torno de suas comunidades (uma proposta teórica sobre a economia da dádiva hi-tech foi proposta por Richard Barbrook, 1999).
Assim, enquanto o imaginário social dominante regista que o software mais evoluído corresponde à última versão disponível no mercado, convidando-nos a constantes atualizações de nossas caixas pretas – e alimentando uma crescente alienação técnica sobre produtos dos quais não intuímos ou sabemos como reparar e melhorar –, inúmeras comunidades de desenvolvedores de software livre continuam abertas e propondo novas formas de produzir, licenciar e distribuir software, que, inclusive, pode ser baixado gratuitamente da Internet.
Estabelecidas essas diferenças fundamentais, resta argumentar sobre o que seria da natureza mesma do software, e refletir se e como o software livre é mais ou menos adaptado à realidade de produção de uma massa crescente de pessoas que se apropria das ferramentas digitais para filmar, editar e finalizar conteúdos audiovisuais. Seu objetivo, já o sabemos, visa à circulação de bens culturais na Internet e entre dispositivos móveis, nossos telemóveis de todo dia.
Uma das maneiras de descrever a especificidade do software livre diz respeito, como já registamos, à maneira pela qual ele é construído, entre redes distribuídas e disponível para acesso gratuito. Porém, ainda que o meio digital associado participe na constituição ontológica do sofware livre, a pergunta fundamental de Simondon permanece: “qual a essência, do ponto de vista técnico, deste tipo de software?”.
Afirmar que o software livre é um objeto aberto e o software proprietário um objeto fechado não requereria mais do que a reprodução das definições propostas por Simondon para os respectivos. Porém, para fins da presente argumentação, interessa talvez notar que o software livre, por ser aberto, apresenta-se como o tipo de software mais adaptável à realidade de computadores mais antigos, muitas vezes descartados como lixo, mas que mantêm-se em pleno funcionamento. Dito de outra maneira: a apropriação técnica para produção multimídia não precisa se dar necessariamente sob a gestão de escassez e acesso a recursos – refletindo uma alienação técnica sobre o funcionamento das máquinas – mas, antes, realizar-se a partir de um conhecimento técnico capaz de operar sobre a abundância gerada por um modelo de progresso técnico que descarta computadores e dispositivos, que podem ser apropriados por um contigente de inventores de novas linguagens para bens culturais digitais. Se o potencial de tal apropriação ainda não parece claro, tentemos ainda demonstrá-lo a partir de um exemplo histórico.

A ESTÉTICA DA BOSSA NOVA

A relação entre estética e progresso técnico pode ser verificada de muitas maneiras, tanto na promoção de novas formas quanto na formação de novas sensibilidades. Entre os muitos caminhos que poderíamos percorrer, vejamos, com um exemplo, como abordar a relação entre estética e tecnicidade. De que elementos pode ser composta a invenção de um ritmo musical?
No Brasil, os doutores Marcos Nobre e José Roberto Zan propõem uma abordagem singular sobre a emergência da bossa nova como um ritmo tipicamente brasileiro. Mui resumidamente, os pesquisadores enfatizam uma limitação técnica para a ruptura estética promovida com a bossa nova. Argumentam que, devido a uma condição técnica – a existência de mesas de som nacionais com menos canais que no exterior –, a maneira de compor músicas do maestro Tom Jobim teria sido afetada, resultando naquilo que ficou conhecido como uma simplificação extraordinária, mas que, ao mesmo tempo, trazia uma complexificação para a batida de samba.
Contam-nos os professores que, em 1930, um compositor da época, Almirante, teria levado para o estúdio de gravação, pela primeira vez, tamborins, cuícas, surdos, pandeiros e reco-recos, buscando apropriar a música popular brasileira de novos meios técnicos de gravação disponíveis. Outro compositor famoso à época, Radamés Gnatalli, teria perseguido o mesmo objetivo, apresentando arranjos orquestrais voltados para a gravação de múltiplas fontes de origem sonora. Junto a essas novas composições, que tratavam de tentar acompanhar a disponibilidade dos meios tecnológicos de produção recém inventados, a chegada nos anos de 1950 de discos de jazz dos EUA provocaria ainda mais a criação artística nacional, que se dedicaria a tentar acompanhar essas novas formas de produção musical. Seria a limitação técnica dos estúdios de gravação um obstáculo intransponível?
O músico Tom Jobim daria então uma resposta “genial” ao problema. Nas palavras do maestro:

Por causa da precariedade das gravações de nossos estúdios… A gente tinha vontade de que se ouvissem as vozes que a gente queria que fossem ouvidas (…). Não adiantava aquela massa amorfa de cem violinos. Então veio aquela economia total: uma flautinha, quatro violinos tocando em uníssono, na maior parte das vezes, numa tentativa de fazer chegar ao ouvinte uma idéia.

Além de Tom Jobim, outro expoente do período era João Gilberto, que teria reduzido o já simplificado modo de produção de Jobim ao mínimo. Assim comentaria Baden Powell, outro parceiro de muitas composições dos dois na época:

Eu acho que o João Gilberto fez o seguinte: ficou só com os tamborins da escola de samba, sabe? É o troço mais nítido que você ouve no meio daquilo tudo. E a parte mais embrulhada ele tirou. Pode ser que a ideia dele nunca tenha sido essa, mas o resultado acho que foi: ficou um negócio mais limpo.

CONCLUSÃO

Este brevíssimo ensaio pretende ter contribuído com duas reflexões que nos parecem relevantes no contexto da digitalização dos meios de comunicação: uma dedicada à diferenciação ontológica de objetos digitais; e uma segunda voltada para a relação estética emergida da aceleração e popularização das ferramentas de produção e circulação audiovisual.
A comparação aqui trazida, explorando a ideia de uma simplificação técnica, carece ainda de uma outra diferenciação crucial: enquanto a bossa nova resultou da experiência e proposta de músicos profissionais – sendo hoje consumida como bem cultural universal em vários países do globo –, a produção audiovisual a que se refere o texto tem suas raízes em todo os cantos onde a tecnologia digital avança – podendo se reconfigurar desde um entendimento sobre o potencial dos objetos técnicos descartados como lixo.
Eis a marca distintiva de uma estética surgida de uma relação que não tem seu fundamento em uma cultura, nacional ou territorial, mas se ampara na desterritorialização viabilizada por uma apropriação técnica transfronteiriça e de fácil acesso popular. Se o aproveitamento de equipamentos para criação estética é sugerido a partir de uma cultura técnica não alienada, postulando-se também sobre o que poderia ser uma técnica cultural de produção estética, impulsionada por objetos abertos, o objetivo é dar primazia à relação específica entre o objeto digital e os sujeitos culturais.
Uma tal operação pretende ter permitido a desconstrução da noção de sujeitos culturais por detrás da técnica, ao mesmo tempo em que almeja também reconfigurá-los e reacomodá-los desde uma epistemologia dedicada a relações humano-máquina. Ao incluir no estudo sobre as sociedades um olhar atento para os seres inanimados, queremos entender seu papel além de ampliação do gesto humano, refletindo sobre funções não-humanas na modificação da percepção. Eis o desafio que aqui se vislumbra para o estudo de objetos e redes técnicas, nas sociedades informacionais, no contexto da virada digital.

REFERÊNCIAS

BISCALCHIN, A. S. (2018). Apropriação Social da Informação, Cultura e Tecnologia: Software Livre e Políticas Culturais no Brasil. Tese de Doutoramento em Ciência da Informação. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

ERNST, W. (2018). “Tracing Tempor(e)alities in the Age of Media Mobility” in Media Theory. http://mediatheoryjournal.org/wolfgang-ernst-tracing-temporealities/. (Acesso em 02 jul. 2019).

HUI, Y. (2016). On the existence of digital objects. Minneapolis, Minnesota, EUA: University of Minessota Press.

NOBRE, M. “A Última Ficha Caiu” in Tropico.
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2534,1.shl. (Acesso em 04 jan. 2019).

SIMONDON, G. (2008). El modo de existencia de los objetos técnicos. Buenos Aires: Prometheo.