Objetos encontrados como prática de pesquisa


A vigente proposta editorial para a revista INTERACT – Revista Online de Arte, Cultura e Tecnologia, publicada ao longo do segundo semestre de 2021 e início de 2022, teve como foco de interesse o tema “Objetos encontrados como prática de pesquisa”, contemplando e dando prioridade ao campo artístico, mas igualmente convocando outras áreas do conhecimento científico na área das humanidades.

Num artigo publicado em dezembro de 2020 na revista científica Nature, os investigadores do Instituto Weizman de Ciência em Israel divulgaram dados que apontam para a superação da massa antropogénica – produzida pela humanidade – em relação à biomassa viva – referente a todos os seres vivos – na Terra. Segundo os autores, “Em média, para cada pessoa no globo, é produzida semanalmente uma massa antropogénica superior ao seu peso corporal” (Elhacham, E., Ben-Uri, L., Grozovski, J. et al. [Tradução nossa]). O estudo tem uma margem de erro de aproximadamente seis anos para mais ou para menos, tendo apenas sido considerados objetos produzidos que ainda não foram descartados, ou seja, que ainda não são entendidos como lixo. É perante esta constatação que os autores alertam para o ano de 2020 como um momento de mudança radical na superfície terrestre, oferecendo uma análise quantitativa e simbólica da relação dos elementos produzidos pela humanidade com as entidades vivas na época do Antropoceno.

Parte expressiva dos dicionários da língua portuguesa definem “objeto” como um nome masculino que designa genericamente – portanto sem incluir áreas particulares como a gramática, ótica, direito, psicanálise e filosofia – “tudo o que é exterior ao espírito; coisa; assunto; matéria; causa; motivo (…)” (Priberam online consulta 18.02.2021), “1. qualquer coisa material, 2. Coisa para a qual converge uma ação, emoção ou pensamento (objeto de busca/de desejo/de divergência), 3. Mercadoria, bem de consumo.” (Aulete online consulta 18.02.2021). O dicionário Cambridge da língua inglesa define a palavra “object” como: “a thing that you can see or touch but that is not usually a living animal, plant, or person” (uma coisa que é possível ver ou tocar mas usualmente não é um animal vivo, planta ou pessoa). Na mesma linha, o dicionário da língua francesa Larousse também contempla uma definição de objeto a partir da ideia de produção humana: “Chose solide considérée comme un tout, fabriquée par l’homme et destinée à un certain usage (…)” (Coisa sólida considerada como um todo, fabricada pelo homem e destinada a um determinado uso).

Ressalta-se aqui um caráter ambíguo entre uma abordagem mais ampla à materialidade das coisas e a esfera da manufatura e produção humana como intrínseca à objetualidade. Esse caráter ambíguo tem ecos ao nível da produção de pensamento, pois a distinção binária entre pessoas e coisas, sujeitos e objetos tem sido repensada nos últimos anos por disciplinas como a antropologia, sugerindo agência dos supostos objetos e suas materialidades nas dinâmicas do socius e questionando a própria terminologia. Igualmente, a influência da cibernética, da inteligência artificial, e o esbatimento da distinção entre máquina e organismo vivo, entre sujeitos e imagens/objetos, entre realidade e virtualidade que os meios digitais potenciaram nos últimos anos, reforçam a diluição de uma fronteira categórica entre sujeito e objeto.

Um objeto achado é necessariamente um objeto perdido. E nesse processo de perda, muitas vezes o seu nome próprio e o seu proprietário de origem são esvaziados, criando uma rutura na vida institucional do objeto.

As potencialidades desse “vazio” foram claramente pressentidas pelos movimentos Dada e Surrealista no início do século XX e práticas conceptuais da década de 1970, as quais, navegando pelas mais distintas práticas de apropriação, do ready-made ao found footage, privilegiam o olhar e sentidos prestados ao objet trouvé. Na cena contemporânea, a reflexão sobre o conceito de arquivo e o redimensionamento das coisas e imagens encontradas, adquire expressão em variados contextos de expressão artística, institucionais ou não, então, apontando para uma prática gestual, para formas de ir construindo quotidianos. Em quase todas essas práticas, mobiliza-se a imagem técnica e seu olhar para fazer emergir sentidos poéticos e inusitados nas coisas mais banais, ao mesmo tempo que se profana o seu valor de uso de mercadoria, e o seu destino restrito a objeto de consumo. A fotografia, em particular, foi, no dizer do historiador Mauricio Lissovsky, paradigma para a arte ao longo do século XX, na medida em que gera um objeto ao operar um recorte, uma extração de contexto que gera impacto no campo da arte. Basta pensar no ready-made enquanto expressão artística por ser uma forma de descontextualização de um objeto do seu uso habitual, quotidiano, e portanto, além de reconhecido enquanto objeto (d)e arte pela sua difusão fotográfica, similar ao recorte operado pelo fotográfico no seu modus operandi. Lissovsky expressa-o da seguinte forma: “talvez uma pergunta interessante para pensar a arte [ainda] do século XX seja, quanto a arte se tornou fotográfica mesmo quando não é fotografia?”, reconhecendo que na prática do objet trouvé a arte se dimensiona enquanto gesto de deslocalização.

A propósito da exposição coletiva A Mecânica do Efémero (2021/2022), Gisela Casimiro referia no BUALA que o processo extrativista comprometeu definitivamente “a aura tradicional dos objetos” e, diríamos que aliado aos processos produtivos industrial e informativo, que comprometeu igualmente a aura dos objetos tradicionais. Atentarmos aos objetos e à sua vida é de algum modo situarmo-nos num mundo cujas economias se sustentam num vórtice de produção e consumo de coisas que quase imediatamente se tornam lixo. Essas coisas estão em desequilibrada e catastrófica simbiose com uma suposta natureza, cujos elementos tornam-se, nesse mesmo movimento, eles próprios objetos e não tanto elementos ou mesmo matérias. Os elementos naturais tornam-se fluxos mutantes, “ontologicamente” alterados pelos outros objetos, esses incessantes despojos de uma atividade produtiva e económica acelerada, aos quais praticamente nem sequer é dada a oportunidade de aderir a uma utilidade ou valor estáveis.

A proposta de pensar objetos como prática de pesquisa surge-nos agora, alguns meses após lançarmos o tema para este número da Interact, como sintoma do sufoco que os objetos constituem hoje para nós, como sintoma do incessante deslocamento que estes adquirem perante um sentido mais primário de “relíquia”. E, sobretudo e apesar disso, sintoma da constante necessidade em atribuir(lhes) um determinado valor.

Após um ano em que tanto se falou da produção de arte em NFT e seu valor criptomoeda, da arte digital altamente especulada porque toscamente tornada única pelo código, é a própria ideia de especulação que emerge como o valor desses objetos. Colocamos a seguinte pergunta: se no âmbito desse processo abdicamos de um certo caráter objetual da arte, afinal estamos diante de coisas realmente desmaterializadas, ou estamos mais precisamente num processo de reconfiguração da própria concepção de objeto, mantendo, portanto, velhos processos de singularização e objetificação de novas mercadorias? E além disso, não seria a própria ideia de desmaterialização associada ao digital uma ilusão (pense-se na necessidade do lítio, pelo menos)? Não seria a ideia de uma produção não poluente uma premissa falaciosa (pense-se em todo o lixo eletrónico acumulado pela vertiginosa obsolescência desses materiais)?

Neste número navegamos pelas mais distintas reflexões para cercar o(s) problema(s) que fomos mapeando, e entre entrevistas, propostas artísticas e ensaios críticos observamos a plurivocalidade da temática. Contribuições que pensam a ideia de objeto encontrado como método e como temática, que deixam ver como uma investigação pode ser alterada pelo encontro com um ou mais objetos, ou como um trabalho artístico pode surgir apenas desses achados mais ou menos ocasionais.

Nesse contexto, abrimos a edição com o projeto artístico Arcanos Menores de Daniela Rodrigues, em colaboração com Joana Rosa, no qual o leitor se depara com o arquivo de cartas de baralho perdidas e encontradas pelas autoras. Esse conjunto deu origem a um site, onde o visitante pode aceder a uma leitura divinatória da própria sorte, tal como as cartas de um tarot. Também como propostas artísticas, podemos visionar o filme A Casa é a Viagem da realizadora Bárbara Bergamaschi, e a obra 5′ 00″ de Fernando Fadigas. Ainda que operando com linguagens distintas, filme e peça sonora, ambos os autores fazem uso de procedimentos de colagem, associação e montagem para diferir e deslocar uma profusão de dados visuais e audíveis que nos cercam. Temos igualmente acesso às obras de Marta Machado e Ana Janeiro, problematizando a dimensão do arquivo fotográfico das suas famílias e a possibilidade de ressignificação das imagens. Se essas artistas trazem a reflexão no campo fotográfico a partir da obra, a autora Virgínia Mota debruça-se num álbum de uma família que não é a sua, produzido em meados da década de 1920 e encontrado anos mais tarde pela própria, na Feira da Ladra, para destrinçar a ideia do espanto. Em linha paralela, a investigadora e artista Flora Leite desenvolve um ensaio crítico a partir da sua prática, salientando a dimensão da arquitetura, e dos modos de exibição de um objeto num espaço comercial na cidade de São Paulo a partir da instalação artística Mortinha (2019). Mesmo com abordagens francamente distintas, ambas recorrem ao pensamento de Walter Benjamin para abordar as noções de fascínio, fetiche e arrebatamento promovidas pelo universo das imagens técnicas.

Outro artista que reflete sobre a sua prática de forma analítica é Lucas C. Barros que, ao lado de Fabian Vivar, assina o texto “Superfícies reencantadas: análise prático-teórica da curta-metragem Há Uma Profeta nas Olaias, tenham cuidado!”. Ali é possível navegar numa cartografia imaginada, construída a partir do processo de elaboração dessa curta-metragem, e aceder à rede de arquivos e da história que constituiu a narrativa. Similarmente problematizando o deslocamento no espaço urbano – questão que toca outras contribuições anteriormente citadas como o filme de Bergamaschi e a intervenção artística numa galeria comercial do centro da cidade de São Paulo por Flora Leite – e as contaminações desse percurso, está a análise do filme A arquitetura de peso de Edgar Pêra feita por Teresa Lima. Nesse ensaio, o leitor é lançado numa reflexão sobre o encontro com edificações de grande porte que pautaram a arquitetura portuguesa dos últimos trinta anos e sua contestável monumentalidade física e empreendimento financeiro. Na contramão dessa sumptuosidade está o olhar sobre os pequenos gestos da autora de objetos manufaturados, Rosa Oliveira, no ensaio assinado coletivamente por Zara Pinto-Coelho, Helena Pires e Thatiana Veronez, e a reflexão feita pelo professor e investigador Adriano Mattos sobre a prática de pintura Xakriabá, intitulada “Vadiar, colecionar, arquivar e o cultivo da memória para os Xakriabá: a prática da ‘pintura de Tôa’”. Ali, Mattos investiga como essa etnia indígena constrói de forma singular uma prática de registo e arquivo em permanente erosão e construção daquilo que cerca o território habitado pela comunidade, criando assim particulares formas de transmissão e renovação dos saberes.
Por fim, apresentamos o ensaio da professora e investigadora Camila Arêas, que aponta para o modo como o encontro com um objeto pode modificar as rotas de uma pesquisa, assim como uma entrevista com os integrantes do projeto Cozinha Comum, no Espaço Comum Luiz Estrela em Belo Horizonte (Brasil). Enquanto Arêas analisa as técnicas do “fazer crer” através dos próprios objetos no contexto das práticas religiosas da igreja evangélica, o coletivo reflete sobre a vida dos objetos apropriados para constituir uma cozinha coletiva num espaço ele próprio encontrado, ocupado e em constante devir comunitário.

Foram portanto estas contribuições que concretizaram e pormenorizaram algumas das questões que nortearam este processo editorial, tais como: Quais os questionamentos e sentidos de resistência que emergem de produções que mobilizam imagens e “tralhas” encontradas? O que faz o ato apropriativo ainda ser prática e método para muitos autores? Quais as tensões entre procurar objetos ou ser encontrado por eles? Faz sentido dizer que o gesto artístico é hoje menos um gesto de produção de obras, e mais uma sensibilidade, atenção e pesquisa de coisas que nos interpelam? Que novas perspetivas, novas coisas, derivam desses objetos encontrados?

E tal qual as cartas do tarot, da proposta de Rodrigues em colaboração com Rosa, que lançamos para voltar a baralhar, a questão central que vos devolvemos num movimento porventura repetitivo seria, não tanto “onde residem hoje as relíquias num mundo tão povoado por objetos?”, mas sobretudo “qual a poética da atenção a desenvolver em relação àquilo que não queremos ver, ao anódino, inútil ou descartado?”.

Foto de capa: Ana Gandum, “Coçador de Costas”, da série Inventário / Relíquias, 2020 – ?.