O que se perdeu poderá ser encontrado? Notas sobre a fotografia e o espanto

 

1. O encontro inesperado

Ao deambular pela Feira da Ladra em Lisboa, encontrei um pequeno álbum de fotografias. Não era a primeira vez que me cruzava com um objeto íntimo e anónimo e, apesar das dúvidas que me suscitava, comprei-o certa de que ele me estaria destinado. Trata-se de um caderno de pequenas fotografias com quase cem anos.
Este caderno de cor parda tem na capa um relevo floral, lateral, escuro, a encadernação das folhas é feita por um cordão de seda, de cor indecisa, rematado com um laço. Nunca o desamarrei. O que pretendo é abrir este pequeno álbum para observá-lo como um objecto que me faz pensar sobre o que dura na imagem impressa, numa espécie de mistura de tristeza e espanto que se encontram neste objecto perdido. Perdido e encontrado anonimamente, ele levou-me a deter-me sobre ele. A tristeza surge associada à perda e ao abandono de oitenta e cinco fotografias, à morte que prenunciam. O espanto não sei de onde vem. Para os antigos gregos, thaumazein está ligado ao espanto filosófico que faz pensar, como também ao maravilhamento metafísico, que faz sentir prazer, contemplar, e que encontramos, em Platão ou em Aristóteles. O espanto sugere a desorientação, como também a necessidade de demorar-se a respeito de alguma coisa.
Este objecto surpreendia-me porque se aproximava de questões que andava a burilar há anos sobre infância e anonimidade. Desafiava-me a abri-lo como um objecto óptico e háptico. Este álbum, livro ou caderno de fotografias data de 1923 e acompanha uma menina desde o nascimento até provavelmente a sua ida para a escola primária.
Lembram-nos o célebre texto A pequena história da fotografia quando Walter Benjamin (2006) pensava no assombro das primeiras fotografias, especialmente as anónimas, uma vez que elas mantinham o espanto do surgimento do aparelho fotográfico e das primeiras imagens. Mas, pergunto-me se seria sempre assim, sobretudo quando se trata de retratar a infância. Ao documentar a infância, o fotógrafo não aproximaria inexoravelmente o acto ao fotografado, uma infância perdida a outra assim reencontrada? Este álbum mostra-nos a incorporação da fotografia na vida familiar. Um século de distância o separava de Daguerre. Agora poderia ser experimentada de um modo íntimo, embora a fotografia adquira quase sempre um carácter público, na medida em que ela faz emergir algo na aparência.
Provavelmente este álbum foi revelado, impresso e montado em casa, no mesmo papel que tenho nas mãos. Neste diário documentado aparecem outras crianças com os seus familiares e não sabemos se quem fotografou aparece nas imagens ou se permaneceu deste lado da câmara. Estamos irremediavelmente colocados do mesmo lado e participamos de longe no espanto inicial da fotografia: seguimos um olhar que vai desde a aparição do fenômeno até ao que se revisitará através deste caderno.
A fotografia traz notícias da lonjura e da proximidade dos retratados e um século depois apresenta-nos a anonimidade e a transitoriedade, a distância intransponível entre a desaparição dos retratados e o objecto que os desoculta ao mesmo tempo que marca o processo de desaparição. Espanta a durabilidade material da fotografia diante da brevidade dos corpos retratados. Por sua vez, o retrato sem os retratados torna-se assombroso e sem sentido. Mas que sentido lhes poderia dar a anonimidade? A anonimidade apela aos detalhes. Atenho-me em alguns.
Tudo gira em torno do nascimento de uma menina. Ela sorrirá enquanto a fotografia durar. O sorriso sugere cumplicidade. Os momentos ao ar livre evidenciam uma ligação à natureza. A fotografia acompanha os passeios pelo campo, as idas à praia e à neve. Foram assinaladas três cidades: Potsdam, Stuttgart e Warnemünde. A família viajava, reunia-se com amigos e familiares em piqueniques. As crianças têm o lugar central nas imagens. As actividades pueris mostram-se relevantes na sua simplicidade: brincar com a boneca, coleccionar conchinhas da praia, andar descalço no jardim, apanhar flores, sorrir, chorar, apanhar banhos de sol e mar. Por vezes, a menina chorava e destoava no ambiente pacífico. É possível perceber o carácter inconsolável da fotografia através desse choro.

2. Os alertas da fotografia

Lembro de Kafka, não daquele episódio paradigmático em que ele mesmo era o fotografado quando criança num estúdio repleto de artefactos de época, uma fotografia sobre a qual já me detive (Mota 2015), mas de uma conversa com o escritor seu amigo Gustav Janouch, narrado por este:

Na primavera de 1921, duas máquinas fotográficas automáticas, recentemente inventadas no exterior, foram instaladas em Praga e reproduziram seis ou sete exposições da mesma pessoa em uma mesma cópia. Quando levei uma dessas séries de fotos para Kafka, eu disse, alegre:
– Por umas poucas coroas, qualquer pessoa pode se fazer fotografar de todos os ângulos. O aparelho é um conhece-te a ti mesmo mecânico.
– Você quer dizer um engana-te a ti mesmo – retrucou Kafka, com ligeiro sorriso. Protestei – Como assim? A câmera não pode mentir!
Quem lhe disse? – Kafka inclinou a cabeça na direcção do ombro. – A fotografia concentra o olho no superficial. Por isso obscurece a vida oculta que reluz de leve através do contorno das coisas, como um jogo de luz e sombra. Não se pode captar isso, mesmo com a mais nítida das lentes. É preciso tactear com o sentimento para alcançá-la (…). Essa câmera automática não multiplica os olhos dos homens, apenas oferece a visão de um olho de mosca fantasticamente simplificada. (Janouch 2008)

A conversa tem a mesma idade deste álbum de fotografias. Janouch, impressionado com a novidade da máquina automática, deve ter ficado desiludido com a recepção de Kafka, que rebate o seu entusiasmo alertando-o para o que a fotografia ofusca. Mas Janouch procurou entendê-lo e, por sua vez, Kafka explicitou a sua ressalva: a fotografia ofusca a vida ao simplificá-la através do aparelho que promete uma verdade. Essa verdade não se reduz ao automatismo nem à luz do que os olhos podem ver. Kafka ressalta-o quando diz que é necessário sentimento para alcançar a “vida oculta que reluz de leve no contorno das coisas”.
Esta conversa, que decorreu dois anos antes das primeiras fotografias presentes neste álbum, leva-me a questionar sobre o que ali se terá obscurecido. Sobre a vida que reluz sob os contornos que a ela se sobrepuseram. Para Kafka, as questões vitais não poderiam ser simplificadas e toda a espécie de simplificação suprime a vida. O seu rosto de Jano (da fotografia), como também Walter Benjamin gostava de chamar, mostra-nos que existem no mínimo duas direções simultâneas e isto para nos lembrar que não se vai encontrar um caminho apenas sob o que “está escondido no todo, as partes não as vemos”. Daí a pertinência desse alerta. Há que ter cuidado com “verdades” que simplificam.
Kafka encontrava a complexidade da vida na parábola. Para ele “as palavras dos sábios frequentemente são apenas parábolas”, elas permitem aceder ao inexplicável que compõe a própria vida. Assim, a máquina fotográfica não poderia prometer a verdade, mas a fotografia poderia trespassar a vida e fazer “voltar para trás”, na direcção que orienta muitas das parábolas de Kafka, que procuram dar conta dessa matéria inexplicável.
Neste caderno, a infância tem lugar privilegiado. Obscurecidas nestas imagens estão a ruína, o tédio e o rastro de morte deixado pela Primeira Guerra Mundial, mas talvez se tornam presentes na expressão do rosto dos adultos sobreviventes. A menina, sem o saber, convive com os escombros, o pior do “melhor dos mundos possíveis”. A câmera regista-o.
Kafka advertia para o que reluz, neste caso, uma infância que brota alheia à devastação. Sublinha-se pela fotografia o carácter destrutivo deixado pelos seus precedentes. Por outro lado, na infância os rastos são a novidade encontrada como um todo cujas partes se desconhece. Para a criança as conchas encontradas na areia contêm toda a verdade que ela precisa para brincar numa duração de tempo insondável. Por isso, pode repetir a brincadeira, que será esquecida. Nesse sentido, algo experimentado poderá ser reencontrado?
A fixação fotográfica opera uma espécie de simplificação e aponta para uma perda de experiência para a qual o leitor de Kafka, Walter Benjamin, também alertou. Ambos reencontram na escrita o que se perdeu enquanto uma potência criadora, tal como a criança procura na praia os achados que irão redimir o seu esforço através do espanto.
Sobre o modo como pequenas coisas da infância reaparecem mais tarde, Benjamin descreve:

Quando se sentava à secretária, era como se alguém se tivesse aí instalado para viver. Mas era ele próprio que vivia assim no meio dos escombros, e tudo aquilo que trazia era logo integrado nessa construção, como fazem as crianças. E ainda como as crianças, que encontravam por toda a parte, nos bolsos, na areia, na gaveta, coisas esquecidas que esconderam aí, assim também as coisas se passavam com ele, não só nas idéias, mas também na vida. (Benjamin 2004, 227)

O alerta de Benjamin está presente no título desse trecho que acabamos de ler: “Não te esqueças do melhor”. Kafka e Benjamin aproximam-se: embora frágil, o que reluz pode retornar com o frescor da primeira infância. É o que mantém a primazia deste álbum de fotografias que reúne um conjunto de elementos esquecidos.
A criança procura a luz, então é também mestre das sombras e com elas aprende a esconder-se, a desaparecer e a reaparecer. O jogo de esconde-esconde com as coisas permite encontrá-las diversas vezes com o mesmo fulgor. O que move essa brincadeira? O espanto.
Em Figuras do espanto, Pedro Miguel Frade (1992) dedica-se aos aspectos anteriores ao âmbito estritamente imagético da fotografia. Foi por isso surpreendente ler esta obra, quando iniciei os estudos sobre fotografia. A aparição da imagem invertida pelo viés da lente e o processo de revelação no estúdio é algo que pertence à ordem do inaudito, da experiência da anonimidade. Existe uma certa solidão no estúdio, inerente ao processo fotográfico, que participa do processo do espanto. Atendendo à notável releitura histórica de Frade, Maurício Lissovsky (2011, 107) faz uma aproximação a Figuras do espanto, uma “experiência de busca pelos primeiros espantos provocados pela fotografia, antes que nos habituássemos a ela”; e assim continua:

Pois, para Frade, antes que uma “linguagem” e uma “estética” viessem a dominar os espaços discursivos da fotografia ela era essa “miríade de pequenas verdades” (107). Neste momento fundador, quando ainda não há “protocolos para a freqüentação das fotografias”, o olhar se perde “numa multidão de pequenos trajetos, de seqüências imprevisíveis”. “Nessas imagens tudo se passava como se a grande via do sentido fosse constantemente ameaçada pelos inúmeros caminhos deixados em aberto para que o olhar aí se perdesse nos exercícios insensatos que constituíam o correlato movente de toda essa suculência do minúsculo que a cada momento o excedia e o desafiava.” (104).

Numa “miríade de pequenas verdades” está em questão a importância do olhar indeciso, suas interpelações e perambulações pelo recorte fotográfico, e não constitui uma única verdade, mas um gesto que, ao conter, permite libertar. Talvez, por isso, nos antepassados da fotografia existiam certos protocolos de aproximação, para cada mecanismo perceptivo, cuidados específicos para cada experimento da câmera obscura. Mas, no que tocava o olhar na origem do que chamamos fotografia existia uma liberdade perceptiva diante desses objetos espantosos. Chegou-se até ela através de uma trajetória de sombras, desenhos, caixas e salas obscuras até ao dia em que se tornaria possível “fixar” uma imagem do que não se pode fixar em si mesmo. O nascimento da fotografia vem da observação do movimento. Lissovsky salienta-o a partir do estudo de Frade:

De lá para cá, imagina Frade, nosso olhar “envelheceu”, e as imagens passaram a remeter-se cada vez mais umas às outras. “Tudo se passa”, escreveu ele, “como se ao arrancar das escamas do visível, à dissecção in vivo do seu corpo aparente, tivesse devido corresponder historicamente uma erosão do incrível” (16). É a partir deste mundo em que vivemos – um mundo que, para ele, marchava em ritmo acelerado para a “desrealização” promovida pelos media – que o autor empreendeu seu retorno à admiração perdida. Não por nostalgia ou preciosismo histórico, mas porque mantinha a esperança de que, no futuro, muito depois de esquecidas, as fotografias recobrassem o poder de nos surpreender. Estes espectadores do futuro, sugeria ele, “estarão na condição ideal para recobrarem o espanto face à fotografia que nós parecemos ter perdido e, para eles, essas tramas singulares em que espaço e tempo se entrelaçam num abraço de morte que preserva uma imagem da vida serão de novo um êxtase.” (Lissovsky 2011, 207)

Se Kafka alertava para um olho superficial que obscurece a vida oculta e Benjamin para o hábito, uma memória esquecida que poderá, eventualmente, ser lembrada na literatura como objeto perdido e achado, Frade via um entrelaçamento fotográfico entre a morte e a vida que aponta para a vida através de um êxtase, se quisermos, uma nova figura de espanto.
A percepção de Frade aproximava-se daquilo que ancora a nossa atenção. Este caderno de fotografias, há muito desaparecido na gaveta de um velho sebo, torna-se precioso ao nosso olhar um século depois. O espanto remete para o que se perdeu: a vida retratada no seu quotidiano. E, no entanto, é justamente aí que ocorrem as pequenas grandes descobertas infantis, o espanto nos pequenos gestos, um rasgo de luz após um longo inverno, a coloração das flores após o degelo, a espontaneidade do sorriso, a surpresa do olhar retribuído, o encontro inesperado.
Ainda que se juntem todas as leituras destas fotografias nunca se substituiria o acontecimento, nem o trariam de volta, mas o olhar que o reconhece sim. Aquele olhar perdido de que falava Frade, que observa surpreendentemente um quotidiano e de outro modo ficaria soterrado sob os afazeres diários. E, por último, leva-nos a pensar na infância que retribui o espanto. Não tomar nada como certo, enfrentar certos pressupostos e deter-se no nunca visto tornam-se desafios diante daquelas coisas que por estarem perto deixaram de se fazer notar, tal como neste caderno. Quando Frade antecipa a possibilidade de um êxtase diante da fotografia tem em vista a realização da vida e não a sua desrealização em um mar de imagens, o que este álbum sublinha.

3. O que se perdeu pode ser encontrado?

Diante da desrealização da vida e da dissolução do espanto, o que acontece? Os alertas perseguem o espanto e a dúvida se coloca: o que se perdeu pode ser encontrado? Nos estudos sobre fotografia encontramos uma preocupação com a perda de experiência, associada ao esquecimento, substituído por uma vida mediada por imagens cada vez mais nítidas que as afastam da experiência mágica, e a aproximam de outra, como disse Kafka, “fantasticamente simplificada”. Todavia, a fotografia, como a criança, nasceria no assombro.
Tal preocupação com a ambivalência da fotografia perpassa o conhecido estudo de Susan Sontag (2004, 84), Sobre fotografia, cito-a:

Nosso refugo tornou-se arte. Nosso refugo tornou-se história. As fotos são, é claro, artefatos. Mas seu apelo reside em também parecerem, num mundo atulhado de relíquias fotográficas, ter o status de objetos encontrados – lascas fortuitas do mundo. Assim, tiram partido simultaneamente do prestígio da arte e da magia do real. São nuvens de fantasia e pílulas de informação. A fotografia tornou-se a arte fundamental das sociedades prósperas, perdulárias e inquietas – uma ferramenta indispensável da nova cultura de massa que tomou forma, aqui, após a Guerra Civil, e só conquistou a Europa após a Segunda Guerra Mundial, embora seus valores tenham alcançado uma base sólida entre os ricos já na década de 1850, quando, segundo a descrição melancólica de Baudelaire, “nossa sociedade degradada” tornou-se narcisicamente extasiada pelo “método barato de disseminar a aversão à história” criado por Daguerre.

Sobre os “Objetos de melancolia”, Sontag (2004, 63) lembra o fascínio dos primórdios da fotografia, o prenúncio de morte dado pelo envelhecimento da humanidade, assistido pelas suas construções e artefatos que se transformam em ruínas. Ao mesmo tempo trata-se de um fascínio afetivo, um sentimento oscilante entre o que foi e o que virá, liberto dos grilhões históricos e sociais. Em frente à anonimidade da fotografia, ligado à sensação de perda e à nostalgia de liberdade, ele permitirá vislumbrar que algo se esqueceu e encontrar na vertigem da distância o fulgor infantil? Se não, por que se guardariam esses objetos dolorosos? Seria tão somente para auxiliar a memória no exercício da sua ruína? Sontag relembra que os objetos fotográficos têm autonomia e nesse ensaio cita os gestos surrealistas que o entenderam, distinguindo o movimento surrealista e o surrealismo que constitui a própria vida. Certamente, algo fora do seu contexto espaço-temporal torna-se surrealista e podemos sublinhá-lo como o fez Michael Löwy (2002, 9):

O surrealismo não é, nunca foi e nunca será uma escola literária ou um grupo de artistas, mas propriamente um movimento de revolta do espírito e uma tentativa eminentemente subversiva de re-encantamento do mundo, isto é, de restabelecer, no coração da vida humana, os momentos “encantados” apagados pela civilização burguesa: a poesia, a paixão, o amor-louco, a imaginação, a magia, o mito, o maravilhoso, o sonho, a revolta, a utopia.

O Manifesto Surrealista tem a mesma idade do caderno de fotografias que tenho em mãos. E, ele me faz pensar que o surrealismo da fotografia não se limita a um gesto surrealista, mas reside num caráter gestual mais duradouro e que era considerado distante, situado entre a vida real e a surreal. A fotografia comprova que a vida é surreal e o surrealismo a arte que o atesta.
Sontag faz uma incursão pelas abordagens que os fotógrafos empreendiam em suas buscas, dividindo-as em duas distintas: as científicas e as moralistas, que reproduziam ora a exuberância e os preconceitos de classe, ora uma estética que pretendia se tornar política e procurava o lado oculto. E, reproduziam os mesmos preconceitos sobre a indigência e a perpetuação da distância social, da violência, da pornografia, da negligência, etc.
No mesmo texto, Sontag observa como a fotografia se torna um apetrecho para todo o tipo de turismo fotográfico, desde aquele que vai ao serviço do estado, esperançoso, enunciado pelo trabalho de Lewis Hine que, nomeado fotógrafo oficial da Comissão Nacional do Trabalho Infantil, “com suas fotos de crianças trabalhando em algodoarias, plantações de beterraba e minas de carvão, influencia de fato os legisladores a tornarem ilegal o trabalho infantil”. Estes turistas tentavam de tudo para chegar às “boas fotos” a ponto de interferirem na vida e nos rituais indígenas. Fotografavam os objetos sagrados, obrigavam a posar, alteravam as cerimônias a fim de as retratarem com o olhar exterior, tão característico do olhar colonizador. E, esse tipo de olhar reproduziu-se não raras vezes pelas partes ocultas das cidades, seus esconderijos mais recônditos. Insiste-se ainda numa busca pelos segredos longínquos, no turismo que procura revelar o “lado B” e satisfazer uma curiosidade burguesa entediada pela distância social.
Sontag e Löwy alertam para a face eminentemente revolucionária da fotografia e o seu caráter surrealista. Se, como observa Sontag (2004), outrora, o descontentamento com a realidade se expressava como um “anseio por outro mundo” e, na modernidade, o mesmo motivo levava ao “anseio de reproduzir este mundo”, talvez na contemporaneidade – que deriva de um tsunami de anseios -, se busque reencontrar o irrepresentável do mundo diante de si, o que a fotografia indicia sem fixar. A sua rigidez devolveria um estado de atenção ao movimento, mínimo que seja. Por mais fotografias que possamos reproduzir, o cosmos movimenta-se, permanecendo igual a si mesmo.
Uma centelha reacende após o fogo. Não deixarei de pensar sobre aquela família, como em tantas outras sobreviventes da Primeira Guerra Mundial que mantinham viva a memória da guerra e sem o saber preparavam-se para um dos episódios mais desastrosos que a humanidade pôde engendrar. Oprimidos ou opressores tornaram-se anônimos e não se fixam a uma só narrativa: alertam sobre os perigos. O espanto advém de um movimento vital. O total desconhecimento da origem desta família não pode dá-la como morta, tampouco abandoná-la. Torna-se visível a corda bamba do funâmbulo, diante do descaso de uma loja de apetrechos usados em um mercado de pulgas, em uma cidade turística. O que fazer diante desses objetos?

4. O desafio do que se encontra

É de Sontag a expressão “lascas fortuitas do mundo”. O que fazer com as lascas a que chamamos fotografias? Algumas, como as que encontrei, mantêm o frescor de uma infância perdida, próximas ao irromper das primeiras fotografias. Afastam-se da nostalgia do que passou ou da melancolia paralisante do futuro. Quando abro este caderno, sinto o desejo de criar uma narrativa ainda que não saiba qual. Contei uma breve história do seu encontro e noto a responsabilidade sobre os objetos que se colocam no mundo. Apesar de anónimos, os objectos criados pertencem-nos.
Lembro de Kafka quando dizia que “há esperança, mas não para nós”. Gostaria de afirmar que há esperança e ela se mantém com estas lascas. Ao menos para elas, ainda há esperança. Elas remetem ao laço infantil que atrai o espanto. Pude entendê-lo junto destas fotografias tão desprotegidas quanto transparentes.
Ao abrir este caderno deparei-me com reminiscências de uma infância que não foi registada, tampouco esquecida. Mas, não é do passado desta observadora que se trata. Seria alguém capaz de observar um ambiente fotográfico tão distante do seu? E será assim tão distante? Em 2001, Pierre Bourdieu mostrou um conjunto de mil fotografias num museu que ele coletara em pesquisas de campo entre os Cabilas no norte da Argélia. Numa entrevista com Franz Schultheis, Bourdieu destaca:

A prática fotográfica, inicialmente na Argélia e depois no Béarn, sem dúvida acompanhou e contribuiu muito para essa conversão do olhar que exigia – eu acredito que a palavra não é suficientemente forte – uma verdadeira conversão. A fotografia é assim uma manifestação da distância do observador que regista e que não perde a noção de que regista (o que não é sempre fácil em situações familiares, como no [caso do] baile [em “Lesquire”]); mas ela supõe também toda uma proximidade diante do familiar, atenta e sensível aos detalhes imperceptíveis que a familiaridade permite e obriga a perceber e a interpretar no trabalho de campo. […] As fotografias que se podem rever à vontade, como as gravações que se podem escutar de novo, permitem descobrir detalhes imperceptíveis ao primeiro olhar e que não se pode, por discrição, observar de forma grosseira durante a pesquisa […] de campo. (Bourdieu 2006, 97-123).

Ao descrever a sua relação com essas imagens, o autor descreveria uma outra: as imagens conservam algo de estranho e espantoso, algo próximo e longínquo, que se dão ao olhar de quem as olhar. E encontrar um conjunto de fotografias, seja ele qual for, põe em cena o que despertam: no meu caso, imagens da infância, de uma infância sempre velada e a vir. A reflexão de Bourdieu leva-me ao álbum de fotografia de uma família que me permitiu ver o que os meus álbuns pessoais não me haviam mostrado. Distância e proximidade. Opacidade e transparência.
A fotografia permite olhar para o que em vão se deseja fixar e embora infixável não se perde inteiramente. O olhar envelheceu junto com este caderno, mas eis que isso se faz notar, o que se aproximaria do primeiro olhar sobre a fotografia. Eis o surrealismo do real, uma conversa entre tempos tão distantes. As fotografias, como as crianças, apontam para as coisas que queremos ver e não vemos e com o seu espanto podemos aprender. Cabe aos interlocutores não as destruir, nem as simplificar. Eis o enigma sideral, o desafio e a responsabilidade do que se encontra.

Notas

¹ Parte de um poema de Scholem, que Benjamin recebe a 19 de Julho de 1934 a acompanhar O Processo de Kafka que enviara ao amigo. Segundo comentário de J. Barrento (In: Benjamin 2016, 398).

Bibliografia

BENJAMIN, W 2004. Imagens do pensamento. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim

___________. 2006. A pequena história da fotografia. In: A modernidade. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim.
___________. 2016. Ensaios sobre literatura. Trad. João Barrento. Porto: Porto Editora.
BOURDIEU, Pierre. 2006. Álbum Fotográfico. Trad. Adriano Codato In: Revista de sociologia e política nº 26: JUN.
FRADE, P. M. 1992. Figuras do espanto, a fotografia antes de sua cultura. Lisboa: Edições Asa.
JANOUCH, Gustav. 2008. Conversas com Kafka. Trad. Celina Luz. Barueri: Novo século.
KAFKA, Franz. 2004. Parábolas e Fragmentos. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim.
LISSOVSKY, M. 2011. Desempacotando minha biblioteca, In: Dobras Visuais.
LÖWY, Michael. 2002. A estrela da manhã. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MONDZAIN, M-J. 2016. Sideração. Trad. Laura Erber. Rio de Janeiro: Zazie Edições. Disponível em: https://zazie.com.br/wp-content/uploads/2021/05/SIDERACAO-3revidado2.pdf. Acesso em 27 de julho de 2021.
MOTA, Virgínia. 2015. “Um caso fotográfico”. In: Cadernos Benjaminianos nº9,
SONTAG, S. 2004. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras.