Memória e as possibilidades da narrativa no discurso pós-colonial

 

“Nos Txon”, enquanto projeto fotográfico, desenvolve-se a partir das fotografias polaroid feitas por Lúcia, a minha mãe, nas décadas de 1970 e 1980 quando emigra de Cabo Verde para Paris, no rescaldo da independência daquele país.

Este artigo pretende entender uma ideia de autorrepresentação tendo consciente o papel da representação enquanto construção de identidade cultural. Instrumentaliza-se uma narrativa particular, a narrativa da mulher negra que imigra para o país ocidental à procura de “melhorar” a sua condição (no período pós-colonial) num exercício de memória e pós-memória que resulta no projeto artístico de fotografia.

O testemunho desenrolou-se pelo álbum com enfoque nas sete polaroids de autorretrato que iniciam a narrativa de Lúcia. O álbum em que se inserem estas imagens não está organizado cronologicamente, ainda que seja possível datar as fotografias como pertencentes às décadas de 1970 e 1980. Nele encontrámos fotografias enviadas pela família, fotografias de photomaton de Lúcia, fotografias feitas por si e por outros.

Ao vasculhar os álbuns antigos por inusitada melancolia, encontra-se também uma fotografia do meu bisavô, na primeira folha do álbum, solta, aparentemente adicionada à posteriori. Confronto a minha mãe com aquela imagem: “esse é o teu bisavô, recordas-te de irmos procurar onde estava enterrado em Castelo de Paiva com a Taluca e a Crisanta? Era o teu bisavô, ele era português!”. Tal afirmação pareceu partir de um local de não-sincronia com a sua negritude. O meu bisavô era um padre português. Esteve em Cabo Verde entre 1900 e 1920, enviado por Portugal onde teve quatro filhos de Ludovina. Eventualmente cumpriu o papel designado e voltou para Portugal.

Este projeto, iniciado em 2019, tornou-se numa revisitação aos momentos que Lúcia se via como uma mulher negra africana antes de integrar, a longo termo, a sociedade europeia branca e achar que contrariar o imaginário branco sobre a negritude facilitaria a sua integração. As polaroids em autorretrato de Lúcia, provocaram conversas recorrentes ao longo de dezoito meses.

Criamos os nossos próprios discursos, como “centrais” na nossa História e enquanto mulheres negras africanas. Os autorretratos são o provocador de uma consciência histórica marginal através da narrativa que invocam.

Usando as polaroids como ponto de partida, estas imagens tornam-se um objeto que vai para além de si próprio. As fotografias são uma ferramenta que deambula num lugar entre a memória e o esquecimento.

O trabalho artístico transforma a imagem em imagem-texto combinando dois tempos, o passado e o presente, a história da mãe e a história da filha, e dois tipos de leitura, uma vez que estas imagens enquanto documentos são tanto memória como pós-memória, numa conexão entre objeto e fonte mediada não só pela recordação, mas pelo investimento imaginativo e de recriação feito pelo mediador. Há, em certa medida, uma descontinuidade entre esses momentos, o de memória e pós-memória.É a partir desta narrativa de Lúcia que se instrumentalizam as fotografias.

A narrativa, enquanto instrumento cognitivo, permite introduzir na História (que retém em si uma possibilidade da narrativa do evento) várias outras narrativas que permitem informar uma ideia de conhecimento histórico mais abrangente e plural. Antes de se tornar um objeto de conhecimento histórico, um evento é objeto de narrativa. Se a narrativa é um facilitador, um meio, uma representação de um evento, devemos admitir a possibilidade de, nessa representação, um qualquer componente menor/marginal tenha sido excluído pelo historiador (o sujeito narrador da história). A capacidade descritiva da narrativa é limitada pela incapacidade da história política de absorver a totalidade das versões de um evento.

Aqui, considerando história política a que Ranke e Michelet (1867-1890, t.33, p.VII) constroem, sobre uma ideia de eventos unidos e irrepetíveis que recaem sobre as decisões de líderes individuais. Uma história de eventos que a escola de Annales, sob direção de Fernand Braudel (1980), põe em questão em detrimento de uma história social constituída por longos períodos de tempo, sobre as pessoas comuns inquirindo questões sobre o clima, a demografia, a agricultura, grupos sociais e mentalidades, na procura de uma história “total”.

Enquanto forma de representação, a narrativa é uma forma primitiva de discurso derivada da tradição, da lenda e do mito e, segundo Ricoeur (2006, p.241), pouco elaborada para passar os múltiplos testes que marcaram a quebra da epistemologia entre a história tradicional e a história moderna. No entanto, de acordo com a Escola de Annales (cf Braudel 1980), a narrativa enquanto coleção de eventos e forma tradicional de transmissão de cultura é um obstáculo a uma “problem-oriented history”. Mais do que um obstáculo ao pensamento científico da história, a narrativa torna-se o seu substituto enquanto modelo explicativo das ciências humanas.

Em 1979, a minha mãe, Lúcia, decide ir para Paris. A sua irmã mais velha, Aldevina, já sediada em Paris, saiu de Cabo Verde anos antes para procurar um futuro para os seus quatro filhos, após se ter divorciado de um marido abusivo. Aldevina encontrou um emprego para a minha mãe antes de ela chegar, numa casa de um casal abastado em Paris, idosos e dados a uma vida social ativa. Empregaram Lúcia, uma mulher de 20 anos a quem emprestaram um quarto no sótão da casa durante o período de trabalho. Lúcia foi empregada doméstica durante 7 anos, obrigada a prender o cabelo e usar uma farda que a identificasse pela sua função.

Nos primeiros dois anos esteve em Paris de forma ilegal, os donos da casa escreveram um contrato que nunca foi registado e que era necessário para a obtenção da Carte de Séjour, o título de residência, facto que, à altura, a minha mãe desconhecia. Desde 1979, Lucie tornou-se o seu nome, Madame e Monsieur D. acharam mais simples, uma tradução fácil do nome.
Lucie sai de uma geografia onde pertence para se entrosar num mundo que lhe é alheio, onde não se vê representada, e no qual se rodeia maioritariamente por pessoas caucasianas.

A ubiquidade ideológica do emprego de uma empregada doméstica como “parte da família” demonstra ambiguidades familiares como prática de exerção de poder. No caso de Lucie, se por um lado o Monsieur D. a ajudava com os trabalhos de casa da escola onde estudava, enquanto lhe chamava ma petite Lucie, por outro, nunca poderia utilizar a sala de jantar dos senhores, apenas a cozinha. Na dupla condição de servente e de negra, a hierarquização clara dos atores reencena uma ordem social e colonial que Lucie desconhecia. O sujeito branco, pela incapacidade de superar uma ideia de passado colonial, não é capaz de se associar a uma ideia de igualdade racial.

Sendo uma mulher africana que toda a vida viveu em Cabo Verde, a vinda para Paris, sob tutela de um casal francês branco, “neste plano de domesticação e higienização, o corpo da serviçal doméstica era tomada como uma grande viragem civilizacional” (Brasão, 2016, 145), uma viragem de selvagem para doméstico/domesticado, na visão do casal branco sexagenário.

Na altura, nos anos 1970/ 80 (talvez mesmo antes), os imigrantes eram vistos como força laboral, não considerados parte da “nacionalidade” francesa. Já os sujeitos de nacionalidade francesa nascidos em territórios coloniais eram, em fase de voto eleitoral, considerados como franceses iguais aos nascidos em França. Esta postura do estado, ainda que seja aparentemente uma ideia democrática, sendo desconsiderado o local de nascimento, pode ser vista como uma tentativa de exclusão por omissão destes sujeitos. França e Portugal, até hoje, não incluem dados sobre as etnias populacionais nos seus Censos.

França tem um histórico de segregação e de atrocidades contra afro-descendentes, nomeadamente, entre 1980 e 1994 (período que abrange o tempo em que Lucie vivia em Paris). Neste período de tempo, vários casos de assassinatos acidentais sobre indivíduos de minorias étnicas foram registados. Os mais mediáticos ocorrem em 1986, o assassinato de Malik Oussekine, um jovem de 22 anos morto por dois polícias numa manifestação estudantil, e em abril de 1993, Makome M’Bowole, um jovem de 17 anos proveniente do Zaire é assasinado por um polícia a tiro durante um interrogatório policial. Estas mortes são sinónimas da segregação das minorias étnicas na cidade de Paris, questão reportada e analisada pela Amnistia Internacional ao governo francês com base num padrão de mortes de pessoas pertencentes a minorias étnicas, segundo os dados dos 18 meses anteriores a junho de 1994.

Em França, só depois de 2000, se promove ativamente a diversidade em papéis televisivos de pessoas de diferentes etnias em papéis dignos.
A pioneira Calixthe Beyala, líder do movimento Collectif Égalité, fundado em 1998, processou legalmente o estado francês pelo uso negativo da representação dos negros na televisão pública. A preocupação com a errónea representação dos negros franceses no cinema e outros meios de difusão televisiva é apenas discutida no ano 2002, após irrupção do coletivo na Cérémonie des Césars para lerem em palco uma mensagem contra a exclusão do sujeito negro francês pelos media.

Lucie não se vê representada na televisão, ou vê-se representada num sentido inferiorizado. Partilhava a profissão de empregada doméstica com a irmã mais velha. Ambas vieram para a Europa procurar uma vida “melhor”. A minha mãe eventualmente deixou essa profissão quando saiu do país para Portugal, mas a irmã mais velha que ficou no país manteve-se na profissão até hoje.

A construção social do corpo das criadas domésticas realizou-se pela difusão de um imaginário que ligava estas trabalhadoras a comportamentos indesejados pelo ideal burguês, uma vez que a sua aparência denotava falta de contenção emocional, deselegância e falta de higiene. (Brasão 2016, 150)

A condição de subalterna, de marginal, associa-se, neste caso, a uma questão racial de perpetuação de um serviço de submissão similar ao papel de servente obediente durante o colonialismo. A vontade de domínio perante a aparência da empregada, o fardamento, o penteado, o controlo sobre o corpo da servente, funda-se sobre um sistema de troca entre criada e patrão, sob alçada de uma economia moral que permuta refeição, abrigo e vestuário de trabalho por uma educação nos costumes locais.

Lucie estudava e via o emprego apenas como forma de garantir os estudos. Nas horas livres, estudava e saía para as compras com a amiga e colega de profissão de umas casas ao lado, comprava roupas extravagantes e coloridas que gostava de usar sempre que saía de casa, por trás da máscara de conformidade comportamental que exibia em casa/ lugar de trabalho.

Compra uma câmara instantânea polaroid  e começa a fotografar-se a si própria, na casa em que vive/ trabalha, em farda de trabalho, a estudar, preparada para sair para a escola. Conta que colocava a câmara numa determinada posição, em cima de uma estante ou de uma secretária, ou, por vezes, da janela, um suporte improvisado, e confirmava a sua posição no viewfinder, um processo que diz ser demorado até acertar na imagem que idealizara. Talvez o registo fotográfico que fazia de si própria fosse uma forma de se tornar visível.  Podemos inferir que “(…) as fotografias não actuam simplesmente como uma história visual, mas desempenham uma forma de história oral, ligada ao gesto, ao som e às relações nas quais e através das quais essas práticas são incorporadas”. (Edwards, 2006, 29)

Estas fotografias revelam um momento feito pelo operador sobre si próprio, enunciam uma vontade de individualização, de clarificação de identidade e de reconhecimento dos seus padrões de beleza e etnia. Na época destas imagens, de 1978 a 1982, Lucie estava há cerca de quatro anos no país onde iria permanecer um total de oito anos.

Bibliografia

Brasão, Inês. 2016. O tempo das empregadas, a condição servil em Portugal (1940-1970). Lisboa: Tinta da China.

Braudel, Ferdinand. 1980. Writtings on History. Traduzido por Sarah Matthews. Chicago: University of Chicago Press.

Bordieu, Pierre. 1990. Photography: A Middle-brow Art. Cambridge: Polity Press e Blackwell Publishers, Ltd.

Collins, Patricia Hill. 2000. Black Feminist Though. Londres: Routledge.

Edwards Elizabeth. 2005. “Photographs and the Sound of History”. Visual Anthropology Review, 21, 27 – 42.

Hall, Stuart. 2019. Essential Essays, vol. 1 and 2. Durham: Duke University Press.

Hirsch, Marianne. 2012. Family Frames: photography, narrative and post-memory. Cambridge: e Harvard University Press.

Hooks, bell. 2009. Belonging: A Culture of Place. Routledge: Taylor & Francis Ltd.

Nora, Pierre. 1977. Les Lieux des mémoires, vol. 2, Paris: Gallimard.

Ranke, L. 1867-1890. Geschichten der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514. T. 33. Leipzig: Duncker & Humblot.

Ricoeur, Paul. 2006. Memory, History, Forgetting. Chicago: The University of Chicago Press.

Sealey Mark. 2019. Decolonising the camera: photography in racial time. Londres: Lawrence & Wishart.

Said, Edward. 2000. Out of Place: A Memoir. Nova Iorque: First Vintage Books Edition.

Tagg, John. 1998. The burden of representation: Essays on Photographies and Histories. Minnesota: University of Minnesota Press.