O peso da sátira no desperdício da obra feita

I.

Bem-vindos ao país do desperdício na forma de monumentos arquitetónicos! Dos estádios de futebol à Expo 98, passando pela Casa da Música, um pouco por todo o território encontramos registos das obras que atestam o peso da nossa arquitetura. Derrapagens financeiras, espaços vazios, obras concluídas anos depois da sua função inicial? Detalhes que não ensombram a robustez urbana que rompe a paisagem. De Faro a Braga, “puta vida, merda cagalhões, porque será que tem que ser assim?” (Monteiro [2006]). Ah! Concentremo-nos no essencial: precisão no dia e hora da inauguração. Celebremos a presidência da CEE, o Euro 2004, já agora, a promessa do TGV. “Desculpem a linguagem, mas não tenho outra melhor”. (Monteiro [2006])

No documentário Arquitetura de Peso (Pêra 2007), o cineasta Edgar Pêra estende a passadeira vermelha à vaidade nacional pela obra feita, num registo satírico, que vai buscar ao cantor Nel Monteiro o lado jocoso, envolvido na sabedoria popular. Se os percalços fundacionais destes conjuntos se perderam, abafados nas glórias da sua exaltação, Edgar Pêra resgatou-os um por um. Não se tratando tout court de objetos perdidos (estão, em vez disso, escancarados no espaço público), o cineasta faz por encontrá-los para lá da evidência monumental, revelando-os numa deliciosa sátira de cariz popular, travestida em Nel Monteiro.

O documentário Arquitectura de Peso (com duração de 23:51), foi projetado na I Trienal de Arquitetura de Lisboa, sob o tema “Vazios urbanos”. Desde os primeiros segundos somos guiados para o oco destas obras, que figuram como fantasmas de si mesmos, ressoando à imagem do navio de Berleant (1992). Vénia à tecnocracia que invade os espaços urbanos. E já que falamos da eficácia técnica urbanística, como omitir o star system (Berleant 1992, 148) , que povoa de self o vazio urbano? Reflete Tuan: “A cidade ideal é um testemunho supremo ao mestre da construção que inflaciona o sentido do self; ainda assim, o monumento postula uma ausência de ego e individualidade da parte dos seus habitantes” (Tuan 1982, 10).

Não nos dispersemos do essencial. Gastamos milhões? Sim, mas fixem-se na imponência dos “4 grandes momentos arquit€cturais retratados pela televisão estatal” (Pêra 2007): Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, Casa da Música, no Porto, estádios do Euro 2004, Expo 98, em Lisboa. Com Pêra e Nel Monteiro, viajemos por estes monumentos ao desperdício, sob forma arquitetónica, que se transformam em objetos encontrados (ou destapados, ao estilo “O rei vai nu”?) pela vox populi nacional.

II.

Comecemos pelo CCB, a obra que inaugurou os elefantes brancos nacionais pós-revolucionários. Perdão, a primeira presidência portuguesa da CEE, em 1992. Aqui o essencial está nos acabamentos. Centenas de milhares de contos em prejuízo? Suspeitas de falta de segurança laboral? Resumo jornalístico do pivot da RTP, projetado por Edgar Pêra, na solidão noturna do centro cultural: “Alguns dos acabamentos [do CCB] poderiam ser melhores” (Pêra 2007). Mas e a Europa, senhores? O CCB enquadra-se bem no aparato político e securitário com que o Presidente da República à época (Mário Soares) e o Primeiro-Ministro (Cavaco Silva) recebem os compatriotas europeus. Um acontecimento de peso. Versão Nel Monteiro: “Uma arquitetura de peso para um país que, de momento, em relação à Europa, está com tão pouco peso, eu acho que o Centro Cultural de Belém, para mim, é um exagero” (Pêra 2007).

Prosseguimos para a Expo 98. Se antes importavam os acabamentos, agora o ponto de honra é a precisão. “Custo total passa os 400 milhões de contos”, anuncia a TV estatal na pala do Siza (Pêra 2007). O então Ministro da Presidência, António Vitorino (cuja projeção na dita pala o transforma numa versão alienígena), contrapõe: “O quadro é claro, a exposição estará aberta no dia 22 de Maio de 1998… preciso – às nove e meia da manhã” (Pêra 2007). Preciso: 400 milhões de contos correspondem a 2 milhões de euros.

Ainda vamos a meio dos momentos arquitetónicos e já nos sentimos a deslizar para a “doutrina da harmonia do interesse” (Taylor 2004, 75). No entendimento deste autor, “os dois principais objetivos da sociedade organizada foram a segurança e a prosperidade económica, mas como toda a teoria enfatizava uma espécie de troca lucrativa, pudemos começar a ver a sociedade política em si mesma através de uma metáfora quase económica” (Taylor 2004, 71). Estamos, pois, perante uma ordem de comando e hierarquia, que é genuinamente interpretada por Nel Monteiro: “É muito duro ser pobre/ E mais duro é com certeza/O pobre ser toda a vida/ A lixeira da nobreza” (Monteiro [2006]).

Para animar, um saltinho às catedrais da ruína, emendo-me, do desporto nacional, “oferta de mão beijada a quem já ganha milhões” (Monteiro [2006]). Vazios, na penumbra, estes gigantes clamam pelos cânticos das tribos. Assim, despedidos do seu propósito, fossilizam-se. E mesmo a pantera do Boavista pode, afinal, não ser mais do que um gatinho.

Já que estamos pelo Porto, arriscamos uma visita à Casa da Música, a obra do Porto 2005? Confundo-me, 2001, esta é a data da Capital da Cultura. O que são quatro anos de atraso na vida de um monumento? Importa atentar nas palavras de Pedro Burmester, diretor da casa, ex-abrigo dos elétricos do Porto projetados no edifício anguloso, que “acabou por custar o dobro do previsto” (Pêra 2007). Burmester explica qual a filosofia do espaço, mas não o consegue com a justeza que se impõe, interrompido por uma onda, que atingiu o bucólico local das filmagens. “Aquela Casa da Música, que não tem nada do Porto, o insulto de quem não tem um minuto de conforto”, canta Nel Monteiro, na fachada do edifício (Pêra 2007).

III

Quando o simbólico se sobrepõe ao analógico na arquitetura, a estética da imperfeição ganha terreno ao perfecionismo. Como afirma Saito, “as ruínas servem de primeiro exemplo da beleza imperfeita. A imaginação fica solta quando contemplamos o seu estado natural, a causa da transformação e o paralelismo com a transitoriedade da vida humana” (Saito 2017, 4). O sentido da argumentação do autor, reforça a estética presente em Arquitectura de Peso. De um lado, temos a monumentalidade e o orgulho das grandes obras nacionais, do outro, a solidão e perenidade das construções. Como Debord (Citado por Leandro 2012), também Edgar Pêra parece arrogar-se o direito ao esquecimento. Privadas do seu contexto legitimador, as obras deixam de estar conservadas em presunção político-progressista, para emergirem em sabedoria popular. Dito de uma forma intelectualmente assertiva, podemos falar de uma fusão entre cultura popular e uma estética cinemática vanguardista. Num conceito mais popular, arriscamos a caracterizar como uma estratégia de avacalhamento. Independentemente das formulações, há um novo objeto artístico criado por Edgar Pêra em cima de algo existente, que configura um uso, uma espécie de destapar do véu, para objetos gloriosamente cristalizados pelo discurso oficial.

A canção de Nel Monteiro funciona como o elemento narrativo de Arquitetura de Peso, fornecendo uma continuidade às sequências (imagens das obras, som, excertos de reportagens) de Edgar Pêra. Se há uma ironia contestatária nestas sequências, a canção de Nel Monteiro é do menos metafórico possível, ainda que a sua própria verdade estrutural possa funcionar como uma metáfora do país.

Mimetizando os murais de protesto da rua, as declarações de Nel Monteiro, os documentos de arquivo da RTP e os recortes de jornais da época são projetados nos monumentos, que são filmados à noite e em momentos de vazio. Ou seja, o que se destaca é o aspeto de quase ruína destes conjuntos, sobre os quais jorram notícias sobre derrapagem orçamental e reportagens que retratam a pompa com que estes são inaugurados.

Há uma justaposição entre o discurso político oficial, que se materializa na visibilidade das grandes obras, e o lado satírico que emerge da vox populi, esboroando a visão funcionalista e tecnocrática, que é contaminada pelo lado de circo e pelo simbolismo do lugar. De facto, a componente jocosa de Arquitectura de Peso acaba por restituir o lugar (sense of place) ao espaço, preenchendo-o das experiências humanas. Os exemplos de paródia são inúmeros e quase constantes ao longo dos 23 minutos do documentário. O expoente máximo desta dimensão de circo é representado por Nel Monteiro, cujo calão e estilo popular, suscitam o riso e a incredulidade. Mas, como assinala Berleant, “apesar do circo virar a realidade do avesso, com formas que são grotescamente exageradas, ele carrega, ao mesmo tempo, uma contracorrente de verdade” (Berleant 1992, 65).

Não há lugar para a linearidade quando se aborda o espaço urbano e o simbolismo que o habita. Se em Arquitectura de Peso os estádios de futebol são filmados como ruínas de uma glória presumida (apenas com vozes de fundo tribais), num outro documentário de Edgar Pêra – És a Nossa Fé (Pêra 2004) -, estes espaços são filmados apinhados de adeptos em dia de jogo, num ritual que é associado às cerimónias religiosas em Fátima. Como defende Lefebvre (1981), o analógico e o simbólico misturam-se. Ou, no sentido de Jaworski and Thurlow (2010) a paisagem é uma entidade dialética, na qual convergem o lado físico (da construção), o ativismo social e político e, ao mesmo tempo, o sistema simbólico, que posiciona os atores sociais em determinados contextos. Em És a Nossa Fé, é a dimensão simbólica (de catedral) que emerge do documentário realizado por encomenda para o Euro 2004. Continua a haver, neste filme, uma componente de circo (parodiante) da realidade percecionada, mas os espaços urbanos estão repletos de vivências, já não de fantasmas ilocutórios. Estes dois exemplos (Arquitectura de Peso e És a Nossa Fé), na sua aparente contradição, resolvem o enunciado da erosão do humano, a que se refere Tuan (1982) nos espaços projetados politicamente. Porque há uma apropriação que vivifica a tecnocracia economicista, política e vangloriosa do espaço. E esta é realizada em sentidos diversos: seja pelo público que enche os estádios em És a Nossa Fé, seja pela sátira popular de Nel Monteiro ou mesmo pelos novos usos (interpretações) que Edgar Pêra se permite fazer destes objetos descobertos (na dupla aceção da palavra), que são os elefantes brancos nacionais.

O que a estética da imperfeição proposta por Saito sugere é justamente a apreensão de uma dimensão moral, que aceite a diversidade da beleza, convivendo com a finitude da mesma. Estamos perante um posicionamento ecológico, que se apoia na intrínseca ausência de controlo do homem sobre a natureza, aceitando-a. A estética japonesa, dada a conhecer por Saito, está longe de significar passividade perante o mundo. Antes, implica um acordar, um estado de consciência crítica para o que nos envolve, para que sejamos participantes. Berleant argumenta na mesma direção, propondo uma continuidade entre o homem e os objetos que o rodeiam, “não para os contemplar com desinteresse, mas para agir e reagir perante eles” (Berleant 1992, 59). Não só Pêra se propõe (através do cinema) a agir sobre o ambiente, como se estimula esteticamente na participação ativa de quem perceciona o que é exposto cinematicamente. Em Kino-arquitectura (Pêra 2015), uma montagem de kino-diários, que passou no Arquitetura Film Festival, em Lisboa, Edgar Pêra registou o encontro entre as palavras de Nel Monteiro e a rua. Neste filme, passam excertos da projeção de Arquitetura de Peso nos jardins do CCB.

Se, até aqui, o vazio imperava, a perspetiva da audiência cria um diálogo imprescindível entre o objeto artístico e o espaço físico. Podemos adivinhar no gáudio da assistência uma zombaria dirigida à cultura popular, um encolher de ombros relativo aos documentos de arquivo exibidos. Mas, independentemente das projeções subjetivas sobre estas reações, permanece o sentido de uma ação, que redime e reconcilia. Afinal, para lá da burocracia, há uma vida que palpita.

Bibliografia

Berleant, Arnold. 1992. The aesthetics of environment. Philadelphia: Temple University Press.

Jaworski, Adam, and Crispin Thurlow. 2010. “Introducing semiotic landscapes.” In Semiotic landscapes: Language, image, space, 1-40.

Leandro, Anita. 2012. Desvios de imagens ontem e hoje: de Debord a Coutinho. E-Compós 15 (11-17). doi:https://doi.org/10.30962/ec.769.

Lefebvre, Henri. 1981. La production de l’espace. Paris: Éditions anthropos.

Monteiro, Nel. [2006]. Puta vida, merda, cagalhões. edited by https://www.youtube.com/watch?v=RUzclPUlueg: Youtube.

Pêra, Edgar. 2004. És a nossa fé – Our faith. edited by https://www.youtube.com/watch?v=A4g9cIieSbk: Youtube.

Pêra, Edgar. 2007. Arquitectura de Peso. edited by https://www.youtube.com/watch?v=_x5WBreVRUI&t=640s: Youtube.

Pêra, Edgar. 2015. Kino-Arquitectura. Portugal.

Saito, Yuriko. 2017. The role of imperfection in everyday aesthetics. Contemporary Aesthethics 15.

Taylor, Charles. 2004. Modern social imaginaries. Durham and London: Duke University Press.

Tuan, Yi-fu. 1982. Segmented world and self: Groups, life and individual counsciousness. Minneapolis: University of Minnesota Press.