5’00”

Na minha prática artística a utilização e manipulação do medium sonoro é central. De forma livre utilizo todo o género de dispositivos que estiverem ao meu alcance, todos os meios e técnicas são interessantes para realizar e reinventar caminhos expressivos. A improvisação individual é um desafio tremendo e prazeroso onde as perguntas e respostas mais escapam ao pensamento. Nessa elasticidade incontrolável, somos resgatados pela coordenação sistémica e altamente sensorial “ouvido-córtex-mãos-dedos”, num processo biológico e plástico-cognitivo de milissegundo, nunca de resultado algorítmico. Em qualquer improvisação, seja com o som ou a pintura, no resultado da intuição mais arcaica que a nossa experiência e memória conduzem, escolhem-se caminhos improváveis e muitas vezes desconhecidos. Imagine-se as action paintings de Jackson Pollock ou os Happenings de Alan Kaprow e os concertos de John Cage, inúmeras obras cujos processos tiveram momentos suspensos com decisões e caminhos bifurcados, entre o acaso, alguma desordem e a indeterminação, mas no final e na distância, todo o sentido. Sobre as pinturas de Pollock, afirmou Harold Rosenberg “reproduzia-se, redesenhava-se, analisava-se ou expressava-se um objecto, real ou imaginado (…). O que estava a acontecer não era uma pintura, mas um evento” (Almeida, 2007, p. 76).
Entre a arqueologia techno catapultada de quando em vez para a ribalta criativa mais exploratória e DIY, operam-se sintetizadores, circuitos electrónicos reciclados, instrumentos musicais modificados, fita magnética e discos de vinil, novos, riscados e manipulados. É neste último grupo que me focarei. Num exercício de busca e escavação por entre ideias desarrumadas, encontrei-me com um destes objectos plásticos utilizado em diversas performances. Proponho simultaneamente a sua reinterpretação e uma breve abordagem cronológica de factos e representações referentes ao fonógrafo, ao gramofone e à sua modernização como gira-discos nas artes plásticas e arte contemporânea.
500 é um disco ícone produzido em 1998 pela editora norte americana RRR, especialista em noise music que inclui 500 obras sem título (Untitled). Cada sulco cravado é uma peça sonora individual com um tempo específico, uma “lock groove”, uma espécie de loop perfeito fechado em si próprio. Cada peça escutada, uma obra de arte que subverte o tempo e desafia a percepção através da repetição. Entre a infindável panóplia de artistas plásticos e experimentalistas sonoros, encontram-se nomes como Bruce Gilbert, Derek Bailey, Man Ray, Otomo Yoshihide, Sonic Youth, Terry Riley ou Zoviet France. São 500 viagens sem fim, o infinito em potência numa ordem e escala nunca antes escutada. Digo escala porque já são inúmeros os objectos que se inscrevem nesta família dos “loops perfeitos” ou imperfeitos. De Velvet Underground e John Cale em Loop, de 1966, ou nos 2’15” finais de Metal Machine Music de Lou Reed, foram diversas as experiências de um certo congelamento do som pensado para o formato disco. Sobre a obra de Erik Satie e a forte relação com a repetição e influência nos compositores minimalistas, David Toop afirma que “Satie, na sua peça Vieux Sequins et Vieilles Cuirasses, instruiu o pianista para repetir a passagem final 380 vezes, o equivalente a uma “locking groove” no final de um disco de vinil. A sua exploração mais notória (e contrariada) em repetição, tédio e êxtase, no entanto, foi Vexations” (Toop, 1995, p.199).
Em 1997 Carsten Nicolai (aka Alva Noto), na sua própria editora dedicada a projetos conceptuais e objectos artísticos noton.archiv fur ton und nichtton, editou Endless, uma compilação de trabalhos exibidos na Galerie Eigen + Art, Berlim/Leipzig. “∞”, o símbolo do infinito, é impresso em papel vegetal em dois discos de vinil de 10” transparentes. Entre inúmeros padrões e matrizes de altas e baixas frequências e tons puros, muitas são as peças de Nicolai que partem da unidade loop. O infinito está claramente na génese da sua expressividade enquanto artista sonoro. Mas Carsten Nicolai acrescentou uma variante nesta edição, colocou o centro do disco ligeiramente desviado para uma leitura ondulatória das frequências enclausuradas. Em ∑ = a = b = a + b, de Eliane Radigue, registada em dois discos de vinil de 7” e editado pela artista (os poucos exemplares que restaram foram resgatados pela Yvon Lambert Galerie em 1969), Radigue quer a participação do ouvinte ao colocar a mesma peça sonora nos dois lados dos discos, permitindo que sejam reproduzidos simultaneamente em dois gira-discos e a diferentes velocidades (78, 45, 33 ou 16 rpm), permitindo uma infinidade de combinações.
Na obra colectiva, 500, há uma aparente impossibilidade de escuta ordenada, uma vez que as distâncias entre faixas são extremamente curtas. Trata-se de um objecto conceptual onde o excesso faz sentido, desperta-nos a multi-escuta como multi tasking, sugere-nos a audição livre e desordenada, caótica, um mergulho aleatório por entre linhas giratórias que enganam a geometria elíptica a que tanto nos habituámos. 500 é, portanto, um objecto artístico intemporal e alienígena no panorama editorial da música experimental, que permite a liberdade de reinterpretação em jeito improvisado como collage. O compositor futurista Pratella afirmou “(…) os ruidistas perdem praticamente toda a noção de realidade objectiva. Eles partem de uma realidade objectiva para depois se afastarem dela, acabando por constituir uma nova realidade abstracta – elemento abstracto expressivo de um estado de alma”. (Almeida, 2007, p. 47). Porventura não devemos andar longe de tal realidade.

A peça sonora 5’00” (título que indicia a própria duração e simultaneamente remete para o grafismo 500), é o resultado dessa manipulação crua e improvisada. Com gestos mais ou menos bruscos e repetitivos operarei o gira-discos como instrumento. Sem intenções rítmicas, pelo menos das mais óbvias e controladas, talvez se situe perto do resultado performativo de Nam June Paik em Old Zen, Dé-coll/age, nº3, na Exposição sobre a Música, Colónia 1962, ou mesmo na sua collage sonora com fita magnética Hommage à John Cage (1958-59). Ainda a propósito desta exposição, na última etapa do texto de apresentação, Paik escreveu “Os sábios tocam uma música sábia, e os tontos tocam uma música tonta; talvez esta curiosa irmandade seja um mal necessário da democracia; nem mesmo o mais sábio tem o direito de forçar o tolo a ser feliz; a liberdade é o bem, mas o bem imposto deixa de ser liberdade, e a ausência de liberdade não é mais o bem”. (Sarmiento, 2009, p.232, tradução livre). Na imagem de Henry Maitek (Museo Vostell Malpartida em Cáceres), Paik debruça-se e agarra com as mãos os braços de um gira-discos e um gramofone colocados paralelamente no chão, sugerindo-nos a sequência de ruídos escutados na sua performance. A manipulação de discos, a forma geométrica e o seu movimento enquanto matéria, ficou também representado na pintura e colagem de Fortunato Depero em Grammophono (1923). O mesmo acontece na fotografia através de Man Ray em “Gramophone et main em bois”, Paris 1930 e “untitled”, o fotograma de gelatina de prata datado entre 1930/1940 e patente no Instituto de Arte de Chicago, colecção Julien Levi.
Concluo com duas importantes referências textuais a respeito destas práticas no contexto da arte sonora actual. Como sabemos, outras acções de vanguarda sonora aconteceram no passado com os Futuristas, Dadaístas e na segunda metade do Séc. XX com o grupo Fluxus, mas algumas práticas também foram desenvolvidas anteriormente na escola de artes Bauhaus, sobretudo a partir das ideias patentes em “New Form in Music Potentialities of the Phonograph” de Lászlo Moholy-Nagy, texto fundamental para a compreensão das suas experiências e perspectivas na utilização do fonógrafo, para além de um simples dispositivo de reprodução. No sítio da ubuweb é possível encontrar um pequeno texto de Ron Rice que diz o seguinte a propósito dos “ruidistas” do Futurismo:

Lászlo Moholy-Nagy reconheceu um esforço sem precedentes destes artistas para ampliar a nossa percepção do som. Num artigo publicado na Der Storm # 7 em 1923, descreveu os fundamentos da sua experimentação: “Eu sugeri mudar o gramofone de um instrumento reprodutivo para produtivo, de modo que num disco sem informações acústicas prévias, o próprio fenómeno acústico origina-se gravando os necessários sulcos”. E apresentou descrições detalhadas para manipular discos, criando “formas sonoras reais” para treinar as pessoas a serem verdadeiros receptores e criadores. A importância de seu trabalho é dupla – pela contribuição criativa para a estética do som e igualmente importante quanto às questões que levantou sobre as relações (realidade e percepção) entre o artista sonoro, performance, a gravação, o meio e o ouvinte. Moholy-Nagy ignorou os modos tradicionais de reprodução musical e distribuição, dando concertos na escola Bauhaus com discos manipulados. De várias formas estabeleceu o palco para as vastas linhas de desenvolvimento que podem ser classificadas como “anti” ou “conceptual”. (Rice, s/d, tradução livre).

Por outro lado, e não menos importante, será o conhecido pensamento de Rainer Maria Rilke referente às primeiras técnicas de registo e gravação sonora. Em “Som Primordial”, de 1919, texto complexo e mais poético do que irei falar, pelo que sugiro a sua leitura, Rilke fala-nos sobre o registo de som em rolos de cera e de uma pequena experiência que presenciou na sua escola primária, cuja descrição dos factos leva-o a uma reflexão profunda sobre o sensorial, evocando uma certa fantasmagoria e sugestão tão poética como tétrica.
Da minha parte, busco simplesmente o som gravado no sulco da matéria plástica, cujo percurso hermético se repete as vezes que a mão quiser, numa espécie de leitura e escrita sincopada, auxiliada e aumentada por um qualquer poema fragmentado sobre quotidiano. A familiar circularidade da vida, as inúmeras revoluções, rotinas e movimentos tautológicos.

Bibliografia:

Almeida, Ana Paula (2007). O Universo dos Sons nas Artes Plásticas. Edições Colibri – IHA/Estudos de Arte Contemporânea, FCSH – Universidade Nova de Lisboa.

Rice, Ron (s/d) – From unfiled: Music Under New Technology, ReR/Recommended Sourcebook 0402. / “A brief history of Anti-Records and Conceptual Records” – UBUWEB.

Sarmiento, José Antonio (2009). La Musica del Vinilo. Centro de Creación Experimental da la Universidad de Castilla La Mancha, Facultad de Bellas Artes , Cuenca.

Toop, David (1995). Ocean of Sound. Serpent’s Tail, Profile Books Ltd. London.