Notas de Campo, Cadernos em Torno de Processos e Práticas Performativas

Notas de Campo, cadernos em torno de processos e práticas performativas procurou abranger e reconhecer um pensamento nas artes performativas que não se cinge a obras e a autores, mas que cobre os seus processos e o pensamento artístico gerado a partir deles. No número duplo 2829 da revista online Interact quisemos convocar discussões sobre as transformações que ocorreram no campo das práticas performativas, desde os finais do século XX, e às quais se associaram termos como «pós-modernismo», ou «pós-dramático», dando conta de um estado da arte possível, neste campo. Procurámos problematizar os processos e os modos de produção de pensamento que emergem a partir de práticas artísticas performativas, apelando à participação de investigadores, artistas e ensaístas com contribuições de áreas que se cruzam com práticas performativas – no seu lado mais processual ou crítico, sob a forma de textos de autor, notas de campo, vídeos experimentais, ou ainda, textos de carácter mais académico e ensaístico.

Como pretexto inicial, recorremos ao sugestivo título de Yvonne Rainer The Mind is a Muscle (1966), coincidindo com a passagem de Rainer pelo Porto, onde apresentou a peça – The Concept of Dust: Continuous Project – Altered Annually (2015); a conferência – Revisão: Uma história Truncada do Universo para Idiotas. Uma Dança Irritada por Yvonne Rainer (Rainer 2017); e o livro Poems (Rainer 2011). Foi com esta curadoria de Cristina Grande, em Serralves (Dezembro 2017), que pudemos finalmente conhecer pessoalmente Rainer e optar por prescindir de lhe propor mais uma entrevista, já que o material existente sobre o seu trabalho é vasto, complexo, especializado e está disponível em edições online, em catálogos, ou em livros.

The Mind is a Muscle é o título de uma peça (1966) e de uma soirée performativa (1968) propostas por Yvonne Rainer, no contexto artístico da Nova Iorque dos anos 60. No programa da soirée, Rainer faz uma declaração de princípios na qual revela o seu mal-estar em relação a uma sociedade que é cada vez mais «do espectáculo» e dos media. Com a tomada de consciência de que pode simplesmente desligar a televisão logo após assistir ao assassinato de um vietnamita (Guerra do Vietname 1955-75) – no mesmo contexto televisivo em que muda o canal para não ver um mau western -, a coreógrafa reage com horror e com incredulidade, pensando na «mente», ou no espírito, enquanto «músculo atrofiado» que pode ser estimulado para ganhar elasticidade, força e resistência.

Paralelamente, nesta proposta de Rainer, está subjacente o propósito de desafiar um certo padrão instalado na dança moderna americana. Um ano antes, o seu manifesto do «não» – ou No manifesto, texto que surge a propósito da peça colectiva Parts of Some Sextets (1965) – é também um dos sinais performativos de que a imagem do espectáculo pede para ser repensada. A frase que nomeia esta peça icónica da Dança Pós-Moderna Americana, e que convoca todo um período rico em discussões e em mudanças paradigmáticas – não só no meio da dança, mas nas artes e na política em geral -, continua hoje, a ecoar como tema. Nesta edição, sugerimos que se usasse a mente como músculo, ou se formulasse uma ginástica do pensamento, uma ginástica da atenção que permitisse desafiar e valorizar as práticas artísticas experimentais e os seus processos, enquanto laboratórios de investigação e de pensamento crítico.

A imagem na capa deste número duplo, um recorte de The Perfect Book de António MV (2017), foi escolhida a pensar justamente na ressonância do «no» com o No manifesto de Rainer, como algo que não nos é indiferente e como princípio de reflexão e de resistência à cristalização de estilos nas artes.

A pretexto da frase: The Mind is a Muscle, propusemos uma interrogação sobre os modos como as práticas performativas produzem pensamento. Como se inscreve esse pensamento concreto no trabalho, nos corpos, nas rotinas, na investigação, nas histórias, no arquivo? As máquinas de pensamento artístico, coreográfico, musical e performativo têm de facto relevância política? Como?

Dos vários textos que apresentamos na versão final deste número duplo da revista Interact, alguns são o resultado de convites directos e outros apareceram na sequência de uma chamada para contribuições. O alinhamento temporal pretendeu, ao longo dos meses, em 2018, fazer alternar contribuições mais laboratoriais com outras mais ensaísticas.

Começámos em Abril com uma peça sonora de Ibon Salvador. «Ollerias 10: Um Passeio» é o resultado da gravação da voz do coreógrafo numa deambulação que vai do número 10 da rua das Ollerias, lendo tudo o que encontra na parede no espaço de cerca de 300 metros, até à Plazuela de la Encarnación, em Bilbau. O resultado é uma intrigante paisagem sonora constituída pela colecção de palavras encontradas em castelhano e em basco, aceitando a arbitrariedade do passeio da atenção dos olhos, na leitura das inscrições visíveis nas paredes.

Em «Let’s Walk Around Here and Call it “Study”», Paula Caspão passeia pelo seu próprio modo de ensaio, começando por nos propor também uma espécie de score ao qual chama Reading Preliminaries. Esse passeio, com ou sem gravação sonora da nossa própria voz lendo o seu texto, conduz-nos a uma ecologia de práticas e de relações a que tem chamado: T-Fi Cabinet (2016).

Em «Emergence Room #2», Carlos Oliveira disponibiliza, na secção Laboratório da Interact, um trabalho de documentação produzido no contexto de uma proposta experimental de deufert&pliscke que convidam vários artistas para o evento Emergence Room em Berlim (2011). Também de Carlos Oliveira, a proposta «Coreografias Digitais: Problema e Potência (Pequeno Mapa)» introduz o tema das coreografias digitais e o pensamento inerente às tecnologias de produção de movimento.

Bernardo Bethônico escreve o ensaio «O Desconhecido é tão Importante Quanto o Conhecido: Fluxos no “Sopro” de Sofia Neuparth», a partir de apontamentos produzidos no meio e no intermeio de uma peça de dança improvisada e das relações por ela convocadas.

Na secção laboratório, «Campo Marte» de João Pereira de Matos, dá-nos conta de uma experiência de deambulação por Veneza, que se transforma num longo improviso, com apelo à construção de sentidos, pequenas provocações desterritorializadoras, num terreno desconhecido e ilustrado por algumas imagens.

O ensaio «Movimentos Imaginados, Corpos em Trânsito» de Ana Godinho, alude directamente ao trabalho de Yvonne Rainer deixando transparecer a concretude do movimento imaginado.

Ao entrevistar Lília Mestre, Sílvia Pinto Coelho procura estabelecer um diálogo com o seu discurso sobre processos, com e sobre improvisação, composição e scores na área do pensamento coreográfico.

Neste caderno de notas de campo sobre processos performativos encontrámos nos discursos dos vários autores alguns debates transversais. Um desses debates parece ter por base a questão: quando é (e começa a) arte? Cláudia Madeira no seu texto sobre «Os equívocos do efémero nas artes performativas», evoca as materialidades omissas de uma obra performativa, desde os referentes que a informam, aos ecos artísticos que a referenciam, noutras ideias, noutras obras, noutras performances. António Contador, por seu turno, procura analisar em  «Da Operância e Inoperância das Ideias e seus Efeitos na Arte», a tríade «pensamento», «ideia», «substanciação» para questionar a possibilidade de uma arte inoperante, uma arte constituída por «ideias não concretizadas» que «produzem um tipo de arte que é o da não passagem ao ato, do não fazer e do não saber-fazer acumulado»; uma arte do esquecimento, sem registo. O vídeo de Eunice Gonçalves Duarte, «A Experiência do Tomate», mostra a serendipidade inerente ao próprio processo criativo onde se espera o crescimento de um tomate. O acaso transforma essa ideia inicial numa outra performance, num outro processo. A artista pergunta «como contar a história de uma performance que se perde no tempo?». Mostra-nos que o «não acontecimento» pode ser sempre também um outro acontecimento performativo.

João Garcia Miguel propõe-se coligir um conjunto de «experiências mapa» laboratoriais para analisar e fabricar emoções, um exercício potenciador da (in)consciência do corpo – em «A Emoção é um Músculo Atrofiado».

Susana Mendes Silva dá a conhecer as várias fases do «Processo Girlshool», um laboratório que se desmultiplica em ações performativas, expositivas e debates sobre as relações entre a arte e a sexualidade.

Rui Teigão a partir do espectáculo Hamlet, levado a cena pelo Teatro da Cornucópia, fala-nos de tudo o que contém a produção e criação de um espetáculo teatral e de tudo o que pode servir a análise do mesmo por parte do investigador. Salienta três pontos importantes no método de trabalho desenvolvido por esta companhia de teatro: o trabalho de mesa; a intérprete-turgia; o pensamento.

Paulo Filipe Monteiro, por fim, faz um «elogio ao desconhecido». A partir das comemorações do Maio de 68 e de uma defesa da liberdade criativa, fala-nos de uma necessidade de a arte não se deixar aprisionar e reduzir a uma agenda mais policial do que política que se vai impondo nas próprias políticas públicas e de mercado e enformando as práticas artísticas. Diz-nos que é fundamental “a arte poder recuperar a possibilidade de não olhar para onde a mandam olhar”. Faz um manifesto por uma arte que não abra mão da sua capacidade de trabalhar o imaginário, a metaforicidade, a ficcionalidade, a perversão, a aporia, o desconhecido que ainda não tem idioma.

 

Bibliografia

Duarte, Maria. «Yvonne Rainer, “Os anos 60 estão-me nos ossos”», Ípsilon, Jornal Público, 15 Dezembro 2017.

Lambert-Beatty, Carrie. Being Watched, Yvonne Rainer and the 1960’s. MIT Press, 2008.

Rainer, Yvonne. Yvonne Rainer, Feelings Are Facts, a Life. MIT Press, 2013.

Wood, Catherine. Yvonne Rainer, The Mind is a Muscle. Afterall Books, 2007.