Cognição Distribuída e Metamorfose Comunicacional-Educativa

Metamorfose Comunicacional-Educativa

A sala de aulas é um dos pontos estratégicos do mundo em rede. Tentemos uma experiência mental: recuar 10 a 15 anos (talvez nem tanto) e visitar uma sala de aulas. De uma forma geral, e dependendo da temática específica de cada aula, bem como do grau de ensino, não veríamos um espaço particularmente saturado de tecnologias de informação e comunicação. Possuiria, talvez, mais semelhanças do que diferenças em relação às salas de aulas conhecidas por inúmeras gerações de estudantes dos diversos graus de ensino. A topologia da «sala de aulas» circunscrever-se-ia, talvez, a dois agentes/grupos cognitivos distintos – professores e alunos – cuja comunicação poderia ser considerada quase exclusivamente unidireccional, quer no contexto da aula, quer no contexto interaccional mais vasto dos tempos social e institucionalmente dedicados à aprendizagem/ transmissão de conhecimento. Nesse «paradigma», a circulação de informação limitar-se-ia a esse fluxo comunicacional unidireccional que, enquanto relação de poder, não admitiria descontinuidades muito intensas. Os suportes materiais de conhecimento consistiriam, genericamente, em papel e instrumentos de escrita, e a arquitectura da sala de aulas «não digitalizada» não incluiria ainda formas de integrar o computador já usado, fora dela, como auxiliar de estudo – ou seja, não facilitaria o acesso à rede eléctrica ou à Internet.

O panorama actual é bem diferente. É comum, para alunos e professores, o recurso ao computador (portátil ou workstation) em plena aula. A sala de aula torna-se, assim, mais do que uma arquitectura básica de transmissão de conhecimento, podendo também assumir-se como sistema desmaterializado, mesmo enquanto espaço de interacção comunicacional. Esta desmaterialização é particularmente notória na distribuição dos recursos ao dispor de docentes e discentes: ao material «clássico», como o mobiliário e os quadros, o papel e os utensílios de escrita manual, juntam-se suportes tecnológicos que ampliam estas funções e as transformam informacionalmente. Entre estes encontram-se, por exemplo, quadros electrónicos, projectores e computadores de apoio instalado na própria sala de aula. A este primeiro círculo, ainda relativamente contido, é ainda necessário acrescentar o acesso às redes digitais, quer locais, como seria o caso de intranets, quer globais, cujo exemplo é a Internet – acesso esse que traz para a sala de aulas um conjunto vastíssimo de ferramentas potencialmente úteis (ou disruptivas) para a aprendizagem, para além dos efeitos (em larga medida, mais potenciais do que realizáveis na prática quotidiana) de uma vasta «biblioteca».

O exemplo aqui usado (a sala de aulas duma instituição de ensino superior da área das ciências sociais e humanidades) tem uma função meramente ilustrativa, ou explicativa. A situação pressupõe, em geral, as seguintes características: (a) acesso generalizado (com ou sem fios) e gratuito à Internet, disponibilizado pela própria instituição; (b) uma elevada percentagem de alunos com computadores portáteis ou outros dispositivos capazes de fazer uso dessa conectividade; (c) a ausência de restrições normativas ao uso desses recursos (por exemplo, por parte do professor).

Para além de funcionar, potencialmente, como factor de distracção, este acesso permanente a extensas bases de conhecimento pode ser interpretado como um colapsar (não necessariamente negativo) da função transmissiva do professor, da função arquivística de bibliotecas e outros repositórios de informação, mas também da função mediadora da presença física. Por outras palavras, a convergência no espaço virtual de ferramentas de aprendizagem (os exemplos mais evidentes são plataformas de ensino online como o Moodle ou o Blackboard) com ferramentas de interacção social (serviços de redes sociais, mensagens instantâneas, correio electrónico, entre muitas outras) e repositórios de informação mais ou menos sistematizados (da Wikipédia a repositórios científicos e serviços de indexação e busca, especializados ou não) criou uma ecologia em que o mapeamento das presenças físicas em sala de aula não descreve adequadamente o sistema sociocognitivo em funcionamento.

Como referem Dror e Harnad, «digital technology has now once again accelerated the interaction to the speed of thought, increasing its power and productivity by orders of magnitude, and distributing it globally and instantaneously»30, o que contrasta com os tempos substancialmente mais lentos da escrita e aquisição de conhecimento dos suportes fisicamente limitados que caracterizavam a sala de aulas (e a aprendizagem formal, em geral) até há não muito tempo.

A disponibilidade deste vasto repositório de informação, bem como a necessidade de desenvolvimento de competências dinâmicas com ela relacionadas (como busca, interpretação e utilização de informação, nomeadamente através de práticas hipertextuais online 31), no âmbito do que se convencionou chamar sociedade/ economia/ era digital/ da informação/ do conhecimento, reveste-se de grande importância para a aprendizagem formal e informal. Representando um espaço virtual extraordinariamente diversificado – quer quanto à natureza dos conteúdos quer quanto à sua qualidade –, sobre o qual foram convergindo praticamente todos os aspectos da vida quotidiana de uma franja populacional significativa das sociedades contemporâneas, a Internet pode ser vista como a analogia perfeita para a dependência das sociedades humanas em relação à eficiência dos seus suportes materiais de comunicação. Na rede, a mediação de todas as actividades é evidente, incorporada como está em variadíssimas ferramentas de interacção simbólica. Sob este ponto de vista, a navegação na rede é uma actividade intrinsecamente social, ou seja, uma negociação discursiva que é, ao mesmo tempo, uma experiência comunicacional. A própria heterogeneidade da informação torna qualquer tentativa de compreensão dos processos de aprendizagem um desafio impossível para abordagens cognitivas centradas no nível individual.

Não será certamente novo que a aprendizagem possa ser estudada como fenómeno externo a instituições formais de educação. Stephen Billet afirma que a aprendizagem pode ser vista como actividade medida por «factores pessoais, sociais e naturais»32, que se influenciam mutuamente de forma notória – apesar da ênfase dada ao papel das capacidades e motivações individuais no estudo dos processos de aprendizagem33:

(a) Humans have consciousness and subjectivity that shape their thinking; (b) humans act and learn; and (c) social settings have norms, practices, and traditions that shape and transform activities and interactions. Both activities and interactions are subject to demands for change, and there is interdependence between the two in realizing these changes. Moreover, in both human learning and social transformation, individuals’ agency and its exercise are required to bring about purposive change.34

A aprendizagem não se pode resumir a processos formais de educação, sendo mesmo mais adequado repensá-la globalmente, e de uma perspectiva um pouco mais abstracta, como algo que ocorre durante toda a vida e não é independente dos contextos em que se desenrola, embora possa decorrer com intensidade e qualidade variáveis. No estado actual das sociedades avançadas, é de prever um crescimento da utilização das tecnologias da informação e comunicação na vida quotidiana (especificamente, em contextos de aprendizagem, lazer e trabalho), sendo esse factor, só por si, suficiente para justificar a inclusão das TIC no conjunto de práticas socialmente estabelecidas e que modelam as interacções. L. Lievrouw define este processo como a criação de «ambientes de informação»:

(…) [S]ociality and social structure both shape, and are shaped by, different groups’ particular information resources, communication relations and enabling technologies. Information environments are social settings or milieux in which these resources, relations and technologies undergo a structuration-type process of change called informing. Information and knowledge, institutional formation and interpersonal communication, technology and social action, structure and agency are mutually and recursively shaped.35

Neste aspecto, portanto, podemos ver a colaboração através das TIC como encontro constitutivo de experiências significativas para a aprendizagem, mesmo fora do âmbito institucional, isto é, da sala de aula (instituições de ensino). Mas a adopção desta perspectiva não diminui a importância do ensino institucional; pelo contrário, torna mais relevante o desenvolvimento de competências simbólicas como, por exemplo, a capacidade de interpretar e classificar criticamente as interacções mediadas por computador. Em boa verdade, trata-se de tentar eliminar um risco que periodicamente irrompe como «pânico moral», na esfera pública e nos meios académicos, sob a forma de prognósticos pessimistas quanto aos efeitos cognitivos (individuais, mesmo que habitualmente agregados por grupos etários ou gerações36) da utilização intensiva das TIC (normalmente circunscritos por conteúdo, isto é, considera-se que certos tipos de conteúdo desenvolvem propensões para comportamentos indesejáveis).

Do ponto de vista do funcionamento das sociedades democráticas, a literacia digital é apresentada como problemática devido ao efeito conhecido como «sobrecarga informacional», ou seja, um excesso de informação que resulta na atomização de interesses e públicos. «Today, new media often convey a sense of distinction, difference, exceptionalism, minority views, local interests, identity or special-interest politics, ‘boutique’ production and consumption, and so forth»37, numa desagregação comunitária, ou «diferenciação» em contraposição aos efeitos integradores dos meios de comunicação de massas.

Daqui se deduz a necessidade de implementação de medidas robustas para assegurar uma mediação adequada para os processos de aprendizagem assistida por computador (no sentido mais lato do termo, isto é, contextos de aprendizagem formal e informal, com ou sem aplicações funcionalmente especializadas), mais centrada no esclarecimento dos utilizadores. Desta forma, o ónus da (re)construção do sentido parece recair, inevitavelmente, sobre o utilizador. É ele quem tem de assumir os efeitos da interacção através de uma integração na sua experiência (apropriação), ainda que o recurso a ferramentas e interfaces sofisticados de gestão de informação possa ser considerado vantajoso.

Portanto, o que se encontra em causa é uma reformulação de práticas e hábitos info-aquisitivos, no âmbito de uma ecologia pedagógica temporal e espacialmente muito expandida (o que representa, em si mesmo, um desafio substancial para instituições e políticas de ensino). Para além das tecnologias reticulares, esta ecologia passa a incluir também contextos de aprendizagem informal. Temporalmente, estende-se por toda a vida. Funcionalmente, caracteriza-se pela plasticidade das relações e pela facilidade de acesso a vastas quantidades de informação, cuja conversão em experiência de aprendizagem provém da percepção das relações sócio-culturais incorporadas na situação concreta.