Cognição Distribuída e Metamorfose Comunicacional-Educativa

Cognição Distribuída

Podemos definir «cognição distribuída» (CD) como uma teoria antropológica e psicológica do processamento de informação que reconhece o carácter híbrido (isto é, simultaneamente baseado em suportes naturais e artificiais), socialmente alargado (tanto interno como externo) e interactivo dos processos mentais. Assim, a CD perspectiva a cognição como processo comunicacional, colaborativo e dialogal, sendo esse carácter discursivo incorporado em práticas concretas de interacção (trocas de informação) com recursos exteriores ao indivíduo. Nesta definição geral, essas práticas conduzem a um estado cognitivo qualitativamente diferenciado do agente isolado, quer devido à possível presença de múltiplos agentes, quer ainda porque estes activam trocas simbólicas significativas com a sua envolvente, enriquecendo, deste modo, os fluxos de informação.

A ideia de cognição como algo que diz respeito somente a fenómenos internos do ente com estados mentais corresponde a uma concepção dualista da mente; numa teoria cartesiana do mental, os objectos inanimados não figuram como elementos de um sistema pensante, estando efectivamente privados de sentido sem a acção do sujeito cognoscente. Este, enquanto origem da significação, é tomado também como foco principal da cognição e da estruturação do conhecimento nas funções intelectivas «superiores» – circunscritas ao corpo ou, mais especificamente, ao cérebro. Contudo, a adopção de uma perspectiva mais alargada goza da utilidade evidente de permitir transcender as fronteiras do individual no estudo das trocas simbólicas e, consequentemente, ultrapassar a imagem cartesiana de uma mente monádica e desincorporada, que opera (age e comunica) isolada e desmaterializada sobre um mundo de objectos passivos (isto é, objectos de volições e sentidos a que são indiferentes).

Como explica Yvonne Rogers5, a cognição distribuída caracteriza-se pela eliminação das divisões entre interior e exterior e pela ênfase colocada nos fluxos da informação (e «estados representacionais») pelos suportes (media) utilizados pelos indivíduos ou grupos. Isto corresponde a uma fenomenologia alargada que inclui indivíduos, artefactos e representações, cujas funções são mapeáveis mas não necessariamente imutáveis6. Nesta medida, não diverge da perspectiva de B. Conein, que não separa a CD como abordagem teórica da materialidade do fenómeno tecnológico, referindo a maior especificidade (mais relevante para os objectivos do presente artigo) da difusão das tecnologias cognitivas colaborativas (ou reticulares)

(…)la cognition distribuée est d’abord une hypothèse sur un fonctionnement général de la cognition humaine. Dans ce cadre, je souligne qu’il est nécessaire de prendre en compte, de façon concomitante, la modification des technologies cognitives et la modification de la coordination sociale. Ce qui est en jeu dans cette conception de l’hypothèse distribuée, c’est sa capacité à rendre compte des phénomènes liés à la diffusion des technologies et à l’accroissement de la coopération, dans des contextes qui vont au-delà de l’interaction homme-ordinateur.7

Esta topologia insiste na continuidade fenomenológica entre representações internas e externas. Sendo possível deslocar representações para dentro e para fora do indivíduo, e recombiná-las sob diversas formas materiais, obtém-se um sistema instável, contudo criativo, cuja natureza «social» é inevitavelmente híbrida. A isto não será alheio o recurso a tecnologias cognitivas com propriedades cogno-miméticas (o computador e as redes de comunicação). Como refere Ilias Karasavvidis,

The revived interest in the idea of cognition as distributed has been attributed to; (a) the fact that people rely on computer artifacts to handle a wide variety of cognitive tasks, (b) the influence of cultural-historical psychology, and (c) the dissatisfaction with the notion of cognition as a property of the individual mind. (…) [Distributed cognition] can be roughly described as a set of ideas about the nature of cognition and how it relates to fellow people and artifacts.8

Este novo «paradigma» surge, historicamente, com a emergência do computador como suporte externo de registo e tratamento de estados mentais, apesar de reivindicar uma continuidade com o cognitivismo «clássico».9 Segundo Edwin Hutchins, trata-se de alargar ao sistema sócio-técnico o campo de estudo das representações, operações simbólicas e respectivas propriedades10 e, assim, responder à materialidade da actividade cognitiva – da própria representação. Isto corresponde a uma definição externalista de «processo cognitivo», que David Chalmers e Andy Clark caracterizam eloquentemente:

[T]he human organism is linked with an external entity in a two-way interaction, creating a coupled system that can be seen as a cognitive system in its own right. All the components in the system play an active causal role, and they jointly govern behaviour in the same sort of way that cognition usually does. If we remove the external component the system’s behavioural competence will drop, just as it would if we removed part of its brain. Our thesis is that this sort of coupled process counts equally well as a cognitive process, whether or not it is wholly in the head.11

Note-se que este posicionamento não atribui estados mentais aos artefactos. Num sistema de cognição distribuída, algumas das funções cognitivas são «passadas» para outros objectos, cujo funcionamento pode ou não mimetizar o da mente humana. O processamento de informação é externalizado com o objectivo de levar a cabo (com maior eficácia) uma dada actividade. Isto significa que é metodologicamente possível escolher entre vários níveis de análise (do intersubjectivo ao cerebral), consoante a natureza das actividades em estudo12 – por exemplo, nos estudos de E. Hutchins13 sobre controlo de navios e aeronaves, a unidade de análise compreende indivíduos e dispositivos de exibição, processamento e distribuição de informação, bem como o conjunto de protocolos ou rotinas institucionalizadas que organizam a interacção entre eles.

De acordo com Dror e Harnad,

«Cognizing» (e.g. thinking, understanding, and knowing) is a mental state. Systems without mental states, such as cognitive technology, can sometimes contribute to human cognition, but that does not make them cognizers. Cognizers can offload some of their cognitive functions onto cognitive technology, thereby extending their performance capacity beyond the limits of their own brain power.14

Assim, percebemos que a ideia de «cognição distribuída» , sendo embora devedora da perspectiva de cognição como processamento simbólico exclusivo de sistemas com estados mentais, vai bastante mais longe. Com o pendor social que lhe é concedido pela integração de elementos inanimados, presta-se singularmente ao tratamento de contextos em que seres humanos e objectos trabalham de forma integrada – ou seja, situações de construção híbrida da significação e de processamento simbólico em que a capacidade cognitiva do sistema excede a do(s) indivíduo(s) nele presente(s).

Os estudos pioneiros de Edwin Hutchins deixaram de parte a visão monádica, tomando como unidade de análise o conjunto de elementos utilizados para desempenhar uma dada tarefa. Em breves palavras, apesar de Hutchins distinguir entre estados do indivíduo e dos artefactos, na teoria integra-os num sistema representacional procurando, assim, descrever mais fielmente a circulação e o processamento da informação. Fundamentalmente, o autor demonstra como esta distribuição funcional torna mais eficiente a resolução de problemas. Não o faz através da descrição comportamental do agente humano, mas sim com uma atenção particular ao desempenho global do sistema (representacional) de que esse agente é parte integrante – com foco específico nos meios materiais através dos quais ocorre o processamento das representações15 e que não são exclusivamente atribuíveis à cognição individual.16

Os sistemas de cognição distribuída caracterizam-se pela abundância e variabilidade da informação e também pelo ajustamento do acesso e distribuição da informação às necessidades do sistema.17 Segundo J. Sutton, os recursos de um sistema distribuído podem assumir diversas formas, sublinhando o carácter «transaccional» e «colaborativo» da cognição:

  1. Artefactos e ferramentas culturais e sistemas de símbolos externos («cultura material»);
  2. Recursos ambientais naturais (usados para fixar rotinas e procedimentos. Exemplo: pontos de referência naturais);
  3. Distribuição/ estruturação interpessoal e social (partilha de memórias em grupos sociais);
  4. Capacidades e competências incorporadas;
  5. Artefactos cognitivos internalizados (como, por exemplo, mnemónicas). 18

Neste tipo de estudo de orientação antropológica, a unidade de análise pode ser, como vimos, mais ou menos alargada, embora Edwin Hutchins tenha optado por tomar como objectos de estudo contextos de trabalho, como é o caso das suas análises da cognição distribuída na direcção de aeronaves e navios. Nestas, o mapeamento das funções representacionais demonstra uma distribuição reticular do trabalho cognitivo entre elementos que, na perspectiva cognitivista clássica (simbólica), seriam considerados independentes – piloto, co-piloto, instrumentação. As actividades cognitivas de representação, processamento e memória são repartidas entre os vários elementos do sistema funcional, circulando entre eles quando necessário, manuseados ou deslocados (mudanças de estado) de acordo com as necessidades globais do sistema.

A estruturação assíncrona (variável) da complementaridade destes recursos permite o mapeamento da repartição de tarefas. A forma assumida por esse mapeamento corresponde à circulação e processamento de dados e conhecimento entre as diversas partes de um sistema. Do ponto de vista social, isto traduz-se na constituição de sistemas mais ou menos estáveis, nos quais indivíduos e objectos coordenam trocas simbólicas distribuídas. Embora se possa defender que estes sistemas possuem propriedades emergentes, deve notar-se que constatar a externalização de estados mentais não é o mesmo que afirmar que os recursos utilizados possuam propriedades mentais próprias. Na medida em que estão integrados num sistema de actividade, é de esperar (pelas próprias características e objectivos do sistema) que incorporem práticas e regras imbuídas dos requisitos específicos por ele definidos. Esta asserção coloca a construção social dos sistemas tecnológicos no cenário concreto das práticas quotidianas: a negociação de práticas e procedimentos de uso decorre a cada momento e não coincide necessariamente com os protocolos definidos na concepção do sistema. Portanto, com este mapeamento instável, o território da actividade possui uma plasticidade que nega a ideia determinista do total fechamento dos sistemas sociotécnicos em torno de axiologias prévias à sua utilização concreta.