Cognição Distribuída e Metamorfose Comunicacional-Educativa

Comunicação Distribuída

O embodiment cognitivo, neste contexto da imanência de suportes, tecnologias, tarefas e comportamentos, permite-nos adoptar uma perspectiva reticular no estudo da intersubjectividade tecnologicamente mediada. Aliás, a linha de ideias aqui adoptada pode ser relacionada com o paradigma «situacional», baseado na interacção de factores sociais, culturais e tecnológicos na constituição da acção.19 A CD, tal como a teoria de actividade20 – ambas de natureza sócio-psicológica – pode entendida como parte integrante de um paradigma interdisciplinar na investigação das modalidades de CSCW e CSCL (Computer-Supported Collaborative Learning). Enquanto tal, ambas as teorias têm vindo a receber grande atenção pela sua potencial utilidade para a IHC (interacção humano-computador), sobretudo pela inclusão metodológica das interacções sociais e da cultura material como factores relevantes para os processos cognitivos (aprendizagem, trabalho, etc.).21

A «revolução» tecnológica da democratização das redes digitais não deixou de ter impacto nos métodos da Interacção Humano-Computador, sublinhando a necessidade da adopção de uma perspectiva inclusiva, mais adequada à interacção reticular de indivíduos e máquinas. Hollan, Hutchins e Kirsh escreviam, a este respeito:

For human-computer interaction to advance in the new millennium we need to better understand the emerging dynamic of interaction in which the focus task is no longer confined to the desktop but reaches into a complex networked world of information and computer-mediated interactions.22

A cognição distribuída, como perspectiva teórica, responde bem às insuficiências das teorias tradicionais no que respeita ao trabalho colaborativo, em particular quando essa colaboração se processa em ambientes informacionalizados. Com a generalização das TIC no local de trabalho e no lar, tarefas normalmente desempenhadas por grupos de pessoas num mesmo local, ou por indivíduos relativamente isolados (ainda que com um computador), passaram a ocorrer em rede, envolvendo grupos de indivíduos com objectivos definidos e com métodos de trabalho assentes na mediação tecnológica dos processos – o que corresponde a uma completa reformulação dos padrões de interacção entre seres humanos, e da atitude destes para com os sistemas e tecnologias de informação e comunicação.23 As interacções mediadas por computador a que Hollan et. al. se referem na citação supra fazem, hoje, parte integrante da experiência.

A distribuição da cognição é operada entre indivíduos e artefactos de várias naturezas. Entre estes são criadas ligações que estabelecem sentidos e intensidades para as representações simbólicas materializadas (ou symbol grounding, necessário para «adquirir um vínculo intrínseco entre representações simbólicas e referentes no mundo externo»24). A. Cangelosi designa como «physical symbol grounding» e «social symbol grounding» as modalidades desta materialização em sistemas distribuídos25. Do ponto de vista antropológico e comunicacional, a distribuição social da cognição depende em larga medida da materialidade exteriorizada da significação, isto é, da construção de símbolos e das regras para a sua manipulação. Estes podem ser confiados a dispositivos externos, assim libertando o indivíduo para outros conjuntos de tarefas simbólicas a decorrer num outro ponto do mesmo sistema ou num sistema distinto. Práticas intersubjectivas, como pedir a alguém para se lembrar de algo por nós, podem também ser compreendidas como cognição distribuída – exemplo elucidativo da construção do próprio sistema de papéis sociais onde decorre o fluxo e processamento de informação, através da interacção verbal (actos de linguagem).

A própria noção de cognição distribuída implica, como acima referido, recursos materiais – tecnologia cognitiva –, para além de seres humanos. Um sistema cognitivo pode ser sucessivamente alargado até englobar todo o sistema social e, paralelamente, toda a cultura material nos processos cognitivos, o que corresponde, como notam Dror & Harnad26, a uma definição demasiado alargada de «cognição» – uma hipótese que corresponde à forma maximal da ideia de «extended mind», isto é, de inclusão de um conjunto de entes e objectos em processos cognitivos (segundo Andy Clark e David Chalmers, «(…) funções que, caso ocorressem dentro da cabeça, não hesitaríamos em reconhecer como parte do processo cognitivo»27). Vamos aqui adoptar esta perspectiva, aplicando-a à constituição de sistemas cognitivos alargados através das TIC.

Relativamente ao comportamento comunicacional (sistémico), a CD permite-nos explorar algumas linhas pouco habituais. Dado o seu carácter socialmente construído, pode utilizar os contributos do mundo da experiência no ajustamento das práticas e procedimentos do sistema assegurando, assim, uma aproximação ao seu estado óptimo, ou o feedback necessário para o manter em face de factores de instabilidade intrínsecos ou extrínsecos. Um dos critérios para a avaliação desta capacidade adaptativa é o desenvolvimento de estratégias de resolução de problemas e conflitos – por outras palavras, de mediações informacionais úteis, com valor concreto para os objectivos definidos pelo / para o sistema. Neste sentido, Bernard Conein afirma que «la technologie à base Internet présente des interfaces qui facilitent les coordinations sociales en ligne en faisant communiquer des personnes présentes dans des espaces de travail personnels dispersés à partir d’un espace de travail commun.»28

Portanto, no caso de sistemas sociais, a adaptação envolve dinâmicas que podem ir do nível individual ao grupal, com contributos normativos de ordem natural cultural, social ou histórica – o que impede uma análise monádica e, mais uma vez, dificulta abordagens de natureza individual. Não é descabido especular que também aqui podemos recorrer à CD para um mapeamento, ainda que abstracto, das dimensões heterogéneas da disseminação das tarefas cognitivas que decorrem (enquanto actividade) tanto nos indivíduos como nos artefactos e objectos naturais que o constituem, como já víramos relativamente aos recursos disponíveis num sistema de CD.

O trabalho em redes alargadas, ou híbridas, sendo o objecto das abordagens específicas da cognição distribuída, não poderia deixar de receber atenção como desafio metodológico, nomeadamente no que diz respeito às tecnologias educativas:

Ao nível da praxis, e também da investigação no domínio científico da Tecnologia Educativa, esta mudança conceptual traduziu-se no abandono do pressuposto de que os ‘meios’ influenciavam directamente a aprendizagem, passando estes a ser considerados como elementos mediadores que, pelos seus atributos e elementos simbólicos, interagem com a estrutura cognitiva dos sujeitos. Esta corrente originou uma visão renovada do papel dos ‘meios’ tecnológicos na aprendizagem, que passaram a ser entendidos como instrumentos activos na construção dos esquemas de conhecimento (…). 29

A confluência epistémica e fenomenológica entre a CD e as tecnologias ora disponíveis em sala de aula pode permitir uma reorientação das práticas em torno do potencial das segundas. Não sendo de esperar que, do ponto de vista evolucionário, as TIC tenham impactos imediatos sobre o sistema cognitivo humano, é contudo necessário ajustá-las à própria natureza discursiva da cognição e comunicação cuja revelação e esclarecimento elas têm vindo (talvez paradoxalmente) a estimular.