Individuar a Memória: Pensar com Bernard Stiegler

Comemorando a vida e a obra do pensador francês Bernard Stiegler, esta edição dupla pretendeu não só celebrar o indivíduo – insubmisso, sublevado, activista e comprometido –, mas também a obra do filósofo, dedicada ao pensamento sobre a técnica e as tecnologias, as suas consequências políticas e ambientais e a sua simbologia, sem esquecer as práticas artísticas, como o cinema, a música ou a arte digital, num contínuo questionamento da individuação psíquica e colectiva, sempre atravessado pela problemática da memória na sociedade contemporânea.

A pertinência de pensar hoje com Bernard Stiegler advém da sua abordagem crítica dos efeitos do capitalismo hiper-industrial (tecnologias incluídas), sempre construtiva, aparelhada por uma visão farmacológica não determinista nem dualista que permite, mais do que identificar problemáticas, pensar a partir do problema (afinal, trata-se de um capitalismo e de um antropoceno entrópicos). Esse pharmakon que, na sua etimologia, provém simultaneamente das noções de remédio e de veneno e que se revelaria sob a forma da técnica. Como veneno porque, justamente, a partir da leitura de Simondon, Stiegler aponta para a desindividuação ou a falência do indivíduo técnico causada pelos processos de hiper-industrialização e de mecanização do trabalho. O indivíduo é ora servente da máquina, ora seu combinador e ainda consumidor dos seus produtos, mas nunca lhe é co-extensivo, sendo o artesão quem perde o seu gesto, a sua força de individuação na matéria, o seu saber-fazer que é, em última análise, um saber-viver. Tal falência reduz a possibilidade de uma transindividuação por via das mnemotecnologias, pois estas configuram, simultaneamente, uma espécie de política da memória externalizada, logo padronizada, ao contrário do que sucedeu, durante o século XX com as mnemotécnicas e outras indústrias da gravação e reprodução técnica, donde a sua especial atenção para o método cinematográfico e musical. Como remédio, porque é a partir de e com a técnica, no seu sentido mais lato, que a recapacitação se torna possível. Ou seja, a valorização dos saberes reconstituídos tecnologicamente permitem a passagem de uma vida do plano da subsistência para o da existência e, finalmente, para o da consistência. Consistência esta que se define, segundo Stiegler, como o ser ou estar “entre-dois” (como diria Gilles Deleuze), considerando que o humano tem esta singularidade que uma existência isenta de suportes mnemónicos não saberia tornar consistente. Este pharmakon é organológico, ou seja, é através dos seus órgãos epifilogenéticos e dos seus hipomnemata que uma vida de um grau de necessidade e subsistência se torna capaz de idealização, logo, da passagem para um grau de consistência para a existência.

Mais do que uma passagem histórica entre as mnemotécnicas e as mnemotecnologias, a diferenciação encontra-se, com Stiegler, no modo como, nas primeiras, a memória individual ou colectiva se vincula a uma sua forma externalizada, resultante do gesto técnico aplicado sobre dada matéria, resultando numa produção do saber. Nas segundas, pelo contrário, há uma automatização das práticas mnemónicas, radicalmente externalizadas em dispositivos ditos inteligentes e objectivadas nesses aparelhos, regendo-se de acordo com lógicas próprias que não dependem já de si. Como nota Stiegler,

«exteriorizamos cada vez mais funções cognitivas e, correlativamente, perdemos cada vez mais os saberes que se encontram assim delegados nos aparelhos e serviços que os agenciam, controlam, formalizam e modelam mas que também, talvez, os destroem – já que esses saberes que nos escapam parecem induzir uma “obsolescência do homem” que se encontra cada vez mais desprovido e como que esvaziado por dentro» (Stiegler, 2009: 12).

Eis o paradigma: «uma vez chegada ao estado hiper-industrial, a exteriorização da memória e dos saberes é, ao mesmo tempo, o que lhes expande a potência sem limites e o que permite o seu controlo» (Stiegler, 2009: 13). A condição farmacológica dos hypomnemata, digitais também, é, pois, o que permite produzir quer a automatização, quer a desautomatização, a individuação e a desindividuação. Visto através da dinâmica, em si serial mas circular, de retenções (memória) e projecções (reconhecimento), proposta por Stiegler,

«o nós está gravemente doente: a submissão dos dispositivos retencionários, sem os quais já não há individuação psíquica e colectiva, a uma criteriologia totalmente imanente ao mercado, aos seus imperativos tornados hegemónicos, impossibilita quase totalmente o processo de projecção pelo qual um nós se constitui ao individuar-se» (Stiegler, 2018: 112).

As implicações políticas e estéticas deste modelo testemunham ainda o que o autor designa como miséria simbólica, mas apontam sobretudo para uma obsolescência do homem e da terra que este habita, já que se desindividuou ao ponto de atingir um nível de alienação hiper-globalizado, derivado de uma protesificação da memória subjectiva e colectiva. Tal movimento de externalização da memória e de confiscação da experiência sensível ao corpo aparenta hipotecar toda e qualquer possibilidade de partilha comunitária para a gestação de um nós político.

Convocando autores como André Leroi-Ghouran, Gilbert Simondon, Gilles Deleuze, Michel Foucault ou Platão, o filósofo aponta o caminho da desautomatização (Stiegler e Kyrou, 2015) apreendida – isto é, da desproletarização, se tivermos em consideração que o proletário seria fruto da transferência do saber do indivíduo para a máquina – como um meio para que se possa – para que nós possamos – saber-fazer, saber-viver e saber-pensar, na medida em que esse saber implicaria sempre um processo de individuação, logo, de produção de memória:

«quanto mais delegamos a assunção das séries de pequenas tarefas que constituem a trama das nossas existências aos aparelhos e serviços da indústria moderna, mais nos tornamos vãos; mais perdemos não só o nosso saber-fazer como também o nosso saber-viver – e, com eles, os sabores da existência; aí, já não prestamos senão para consumir cegamente, sem esses sabores que só os saberes conferem, ficamos incapazes. Tornamo-nos impotentes senão mesmo obsoletos» (Stiegler, 2009: 12).

Na senda quasi-utópica da transindividuação, o presente número duplo da revista Interact, que agora se conclui, pretendeu agregar contribuições conceptuais, estéticas e dialógicas. Assim, num primeiro momento, o artista Tiago Madaleno apresentou a performance O Lado de fora da mão, na secção Laboratório, onde recitou continuamente um conjunto de sobras de alguns sonetos por si anteriormente escritos, fazendo um acontecimento – hic et nunc digital – do lugar onde corpo e texto se tocam para ir ao encontro místico de um ouvinte solitário: objecto digital e temporal. Por sua vez, na secção Interfaces, a curadora e professora Eduarda Neves apresenta um ensaio literário a partir da obra de Tiago Madaleno, intitulado Os restos, a voz, em que destaca as ligações entre a voz, o corpo e a experiência amorosa e faz prevalecer o «empirismo do conceito» – amor – face ao pensamento logo-verbo-cêntrico: «Amor fati, uma poética da eternidade que abandona a ordem da linguagem para se inscrever no regime do indeterminado».

A inaugurar a secção Ensaios, João Pedro Amorim disserta sobre a condição das imagens na contemporaneidade num texto intitulado Suspender o fluxo das imagens. Convocando o pensamento seminal de Guy Debord e de Herbert Marcuse, o investigador reflecte sobre a espectacularização das imagens no pós-guerra no seio de uma sociedade de massas e a consequente alienação do espectador-consumidor. Com o advento do digital, afirma o autor, «as imagens são arregimentadas para formarem um fluxo libidinal que nos condiciona, domina e isola – integrando-nos completamente na sociedade dada – estimulando o nosso narcisismo mais primário». Assim, a missiva silenciosa dos artistas na contemporaneidade seria justamente suspender esse fluxo de imagens através da produção de imagens dialéticas, no sentido benjaminiano, resistindo à normalização unidimensional.

Em À la recherche d’Angelica, en quête de mélancolie, o fotógrafo tunisino Saif Fradj apresenta, na secção Laboratório, uma série de fotografias captadas em Portugal, em que se destacam a dimensão espectral e a condição estrangeira da objectiva. É sobre essas problemáticas que Sihem Sidaoui discorre em Le fantastique du vertige dans le geste photographique de Saif Fradj, publicado na secção Interfaces. Para a autora,

«o que impressiona nas fotografias de Saif Fradj, quer se trate de humanos ou de animais, são antes de mais os corpos que se desintegram, que se decompõem; cadáveres que ainda ostentam o último vislumbre da morte como um vestígio. Vindo do campo da medicina, o fotógrafo transpõe para as suas obras algo que vem da dissecação de corpos, do espaço, do que permanece enterrado, invisível, do que está a desaparecer e de que se deve manter um vestígio».

Na secção Ensaios, o crítico e investigador Carlos Natálio publica Da disrupção à contribuição: o pensamento espiral de Bernard Stiegler onde trata de traçar uma revisitação introdutória à obra de Stiegler, percorrendo algumas das problemáticas mais marcantes do filósofo francês a partir do conceito de espiral. A espiral stiegleriana seria então esse redemoinho incessantemente provocado da disrupção e da contribuição, do sujeito e sociedade, do homem e da técnica, do remédio e do veneno. Assim, segundo Natálio,

«embora Stiegler tenha sido acusado de ser um “mercador do pânico” (Moore, 2021:110), em face da “tragédia” de um pensamento fundamentalmente crítico, por vezes lido como apocalíptico, a verdade é que este duplo movimento tenso da espiral – entre um devir e um permanecer, uma busca de uma neguentropia em face de um sistema que acelera a sua entropia – não permite baixar os braços».

Também na secção Ensaios, Sílvia Pinto Coelho apresenta Cerzir transpensamento com o “centro em movimento” durante o confinamento, reflexão diarística livre a partir da experiência de confinamento em que se procuraram vias alternativas para a constituição de um nós. Ora, de acordo com a autora, ao cerzir, «a ideia é não alimentar significados definitivos, mas coser referentes, eventualmente dando-lhes a potência fantasmática de convocar mundos, ventrilocar vozes, cantigas».

A recensão crítica proposta por Diogo Bessa e publicada na secção Interfaces incide sobre o texto Anamnese e Hipomnese, publicado em Portugal pela Revista de Comunicação e Linguagens (RCL). De acordo com o autor, no texto evocado, Bernard Stiegler propõe «um olhar que coloque a questão técnica no seio daquilo que torna o ser humano enquanto tal, e que abrace a ambivalência da própria história da evolução técnica e do seu processo de gramatização (controle)» e conclui que a pertinência actual desse texto passa por hoje «repensar e reinventar a técnica e o potencial dos hypomnemata digitais contemporâneos ao serviço do otium e da transindividuação, capazes de conquistar espaço à contaminação do negotium, sob o risco de estarmos condenados à desindividuação».

O último ensaio da edição é da autoria do investigador e crítico João Oliveira Duarte e intitula-se O Olho e a Máquina. Partindo da experiência da projecção casual da obra Comportamento Animal, de Jorge Molder, que apresenta planos de detalhe do olho do artista, Oliveira Duarte discorre sobre as proximidades e diferenças entre o olho cego protésico e o olho vivo, procurando traçar uma relação de fundo entre animalidade e tecnicidade. Nesse sentido, afirma o autor:

«Na sua aparente ausência de intencionalidade, de expressão, este olho de Comportamento Animal, que não olha – que observa? Que regista? Que julga? – contrapõe-se ao olho armado, isto é, desestabiliza-o enquanto prótese não-viva, conferindo-lhe uma dimensão fantasmática, fazendo-o, portanto, retornar constantemente – é agora um pequeno animal que não me olha […] E o tempo outro deste outro olho ciclópico, olhado pelo pequeno animal técnico, não é ele mesmo contaminado pela cegueira técnica do artefacto, instituindo um limiar entre animal, humano e prótese, como se este olho dessemantizado (a sua finalidade já não é olhar, mas uma outra que desconhecemos), se subtraísse por fim a qualquer estabilidade, a qualquer estabilização?».

Por fim, a edição dupla apresenta duas entrevistas: a primeira das quais mediada pelo investigador Manuel Bogalheiro com o artista e investigador José Eduardo Silva, a propósito da obra (Des)individuação: (Des)concerto para Bernard Stiegler, na qual discorrem sobre o conceito de individuação técnica; a segunda, dirigida pelos editores à teórica francesa Colette Tron, incide na sua colaboração com a associação fundada por Bernard Stiegler, Ars Industrialis, ora intitulada Association des Amis de la Génération Thunberg – Ars Industrialis. A revista conta ainda com um pequeno excerto traduzido pelos editores do segundo tomo de Da Miséria Simbólica, ainda por editar em Portugal.

A multiplicidade das propostas acolhidas reflectem, a nosso ver, o carácter vital e, acima de tudo, livre do pensamento de Bernard Stiegler. Mais do que homenagear e celebrar, esperamos que desta edição resulte uma co-memoração.

Referências bibliográficas

Stiegler, B. & Kyrou, A. (2015). L’Emploi Est Mort, Vive Le Travail ! Paris: Mille e une nuits.

Stiegler, B. (2018). Da Miséria Simbólica I. Tradução de Luís Lima. Lisboa: Orfeu Negro.

Stiegler, B. (2009). Anamnese e Hipomnese: Platão, primeiro pensador do proletariado. Trad. Luís Lima. In Mourão & Babo (org). Revista de Comunicação e Linguagens, 40, Outubro, Lisboa, p. 11.