O Olho e a Máquina

Este texto conta uma história, invoca ou pretende invocar a memória, colocar-se desde logo sob o seu signo para, de uma maneira talvez tortuosa, pelo menos não totalmente linear ou demasiado explícita, colocar algumas questões a essa(s) memória(s) – sempre mais do que uma, anterior, talvez, a uma memória que se possa dizer pessoal ou singular, minha acima de tudo. Parte de uma “imagem originária”, uma cena ou uma encenação – desde logo técnica, ou onde a técnica comparece como questão cujo tempo permanece, ainda hoje, indecidível. Era então um congresso ou uma conferência, um desses acontecimentos que constituem os “trabalhos e os dias”, cuja finalidade, se não se tiver em conta os novos métodos de avaliação numéricos, é deixar uma vaga memória apenas na pessoa que falou, ou, por vezes, nem isso. Fui avisado de antemão que a mesma seria gravada, que, portanto, no meio da audiência, no meio das pessoas – enquanto uma delas talvez, pelo menos a partir do momento em que já ninguém notasse no pequeno aparelho, como se ele fosse desde logo natural à situação – se encontraria essa pequena máquina, um desses aparelhos de retenção terciária, como lhes chama Bernard Stiegler, cujo intuito seria registar, para memória futura, aquelas breves palavras que estariam condenadas à partida a desaparecer; não recordo do que se falou (mas poderia facilmente ir em busca da gravação inscrita na máquina que faz esquecer pretendendo recordar), lembro apenas o dispositivo técnico em que então consistiu essa fala pública, o aparato, a cena ou a montagem de tempos que então se deu, a fenda que o artefacto técnico produziu nesse presente que, como qualquer presente, se encontrava condenado ao desaparecimento, à passagem crónica.

Em modo de brincadeira – mas séria –, numa conferência cujo intuito não passava pelas questões que a técnica coloca, antecipando então esse olhar armado, imóvel, esse olho ciclópico que se limita a registar sem nenhum intervalo – nenhum piscar de olhos que inscrevesse um ligeiro momento de cegueira, uns instante cego que abra o presente a outro tempo –, decidi projectar nas minhas costas, de frente então para a pequena máquina armada que olhava sem ver, uma fotografia de Jorge Molder retirada de Comportamento Animal, uma série de imagens onde vemos apenas um olho que não nos vê, que, por vezes, observa sem ser visto – que nos julga? Comportamento Animal joga sem dúvida com a repetição – sempre o mesmo olho, mas poderemos falar em olhar a partir do momento em que apenas um olho é visível? –, com uma certa ideia de limiar, de diferença indistinta ou, dito de outro modo, de indistinção diferencial, jogando também com as pequenas e imperceptíveis mutações que esse olho único vai declinando. Feroz, sedutor, inquisitivo, animalesco, sem dúvida – sabendo nós, no entanto, que se trata de um olho humano –, tudo isso figura nas imagens, tudo isso é possível ver no olho único, ciclópico, que tanto nos olha como parece ignorar-nos, olhando, se assim é possível dizer, para um outro tempo e para um outro lugar que não aquele em que nos situamos, olhando-nos a partir de um outro tempo que é tanto o nosso como anterior ou posterior a nós.

Decidi na altura que a imagem projectada nas minhas costas, olhando de frente o público, isto é, também este outro olho, esta outra máquina e este outro tempo, seria a mais branca possível, o olhar, o olho, que não expressasse qualquer intencionalidade, qualquer emoção, ou que resistisse o mais possível a qualquer intenção, a ser sobredeterminado a qualquer expressão que lembrasse o humano – olhar branco é o termo que Mandelstam (1996: 15) usa para falar do olhar do louco, branca é a superfície de não inscrição, o esquecimento puro e simples de onde nada pode sair.

Pretendia então duas coisas, não muito distantes uma da outra. Por um lado, desnaturalizar o dispositivo, o aparato – técnico –, que se encontrava ali montado, encenado, fazer notar aquele olho armado, em antecipação, apontado a quem cruzasse o campo neutro que ele constrói (é um olho, na realidade, parado, sem movimento, e, por isso mesmo, tanto mais assustador; Merleau-Ponty demonstrou ou pretendeu demonstrar a importância que os dois olhos têm para a locomoção, a verdadeira abertura do espaço que só eles tornam possível); fazer notar implica sublinhar a dimensão técnica, isto é, não natural – mas será necessário começar por problematizar esta distinção que é infinitamente problemática –, que se encontrava ali em causa, mas implica também apontar este outro tempo para que remete este aparelho técnico, como se, em silêncio, esta temporalidade feita de instantes discretos permanecesse sempre em segundo plano, quisesse permanecer, e fosse necessário trazê-la para primeiro, fazer este “fundo”, este ruído de fundo tantas vezes imperceptível (os pequenos ruídos que estes pequenos animais fazem, linguagem cuja sintaxe e semântica é ainda estranha) que se pretende subtrair sempre à atenção vir à superfície, não tanto para a interrogar, mas para fazer notar a sua existência. Eis então este olho, esta máquina, este tempo que não corresponde ao tempo da consciência: já não as protensões e as retenções de Husserl, que Stiegler interroga, o tempo da consciência que pode vir à consciência, mas um outro tipo de retenção, uma que diria respeito à técnica, às retenções terciárias que, nos seus usos contemporâneos, pretendem valer-se de um certo conceito de naturalidade – o “live”, como alertou Stiegler, tenta “reconstituir o presente vivo sintéctico” (Stiegler, 1998: 226), ao mesmo tempo que é índice da velocidade do tempo; é preciso sublinhar, no entanto, que o “live”, o “em-directo”, joga sempre com um atraso, com um esgotamento antecipado (o coelho de Lewis Carroll: “I shall be too late!”, como relação a um tempo sempre-em-atraso que é desde logo traduzido em dívida, em juro, através da antecipação).

A segunda pretensão, não muito distante da primeira, iria no sentido de, tornando assim patente este olho armado, a câmara de vigilância que velava pelas palavras que eram distas, apontar a estranheza, apontar à estranheza, desse pequeno artefacto técnico – velar, lembremos, diz respeito à guarda, a guardar ou proteger algo, mas, ao mesmo tempo, ao permanecer junto do moribundo, do morto-por-vir, ligando a técnica à mortalidade de uma forma por vezes bastante directa, literal, como todas essas outras câmaras que se antecipam à bestialidade e a constituem, de que as câmaras de vigilância são um dos exemplos, não dos mais mortais. Eis então este olho técnico que não pisca os olhos, que não inscreve qualquer sombra ou qualquer cegueira, que não deixa inscrever sombra ou cegueira alguma, ou pretende não deixar, olho armado que quer surgir como natural e que olha – olhará? – do seu fundo negro.

Anterior a qualquer recusa, antes, portanto, de pretender recusar o que nos chega da técnica, como se a recusa fosse possível ou desejável, a intimação que o olho cego nos dirige – me dirige, constituindo-me. A memória que ele transporta e que nos transporta com ele – um olhar que nunca poderá ser devolvido, uma dissimetria que começa desde logo por instituir uma cesura inultrapassável, um espaçamento interior a qualquer nós, a qualquer eu. Stiegler falava numa memória que todo o artefacto técnico contém e transporta e que seria índice de uma dupla captura entre aquilo que se poderia chamar de humano e aquela outra dimensão da técnica, a dimensão protésica, a ex-teriorização necessária, a ex-clamação[1] que diz respeito, não à miséria simbólica que é hoje a nossa, mas à pobreza constitutiva, a neotenia que, de acordo com Agamben, é uma “regressão evolutiva, uma espécie de derrota na luta pela vida” (Agamben, 1999: 35).

“A epifilogénese, tempo espaçado, espaço temporalizado, depósito sedimentário de acontecimentos entre os quais se vive muitas vezes sem saber, é uma memória que se transmite de geração em geração (assombradas e espiritualizadas umas pelas outras) pelo facto de que, ao espacializar-se, se exterioriza e se guarda na facticidade do não-vivo – ao abrigo da fragilidade do vivo” (Stiegler, 2018: 70).

Mas este outro tempo que velava naquela situação em particular, olho armado dirigido a qualquer um, é já uma outra coisa, diferente e ao mesmo tempo próxima dessa epifilogénese enquanto tecnicidade que suplementa a “fragilidade do vivo”. Em Miséria Simbólica II, Stiegler falava numa “retenção traumática” – referia-se então à arte, à capacidade que esta tem de impor uma re-visão, o retorno diferencial e diferenciador de um mesmo objecto. É a síntese passiva do tempo de que falava Deleuze em Diferença e Repetição, a “petite madeleine” de Proust que exterioriza – isto é, é desde já técnica, protésica – um passado que entrelaça vivido com não-vivido, que me individualiza, desindividualizando.

O tempo do fantasma é criado pela imagem de Jorge Molder, suplementa o pequeno olho armado, a pequena arma ocular que, naquela tarde, se dirigia sem se dirigir a quem quer que seja – ao que quer que seja – que cruzasse o espaço que comandava (Não há aqui uma dimensão entrópica? O pequeno olho ciclópico não escolhe, não discrimina, limita-se a registar tudo indistintamente).

Colocadas frente a frente, olho contra olho, arma ocular contra olho liminar, sem qualquer espaço volumétrico, teatral, digamos assim, que se abrisse nesta dupla cegueira – nada, portanto, dessa reflexividade, da “volumetria do espaço” tornada famosa pela descrição que Foucault fez de um quadro de Velázquez.

Não podemos esquecer, no entanto, essa fraca e frágil figura humana que se coloca no meio de ambas e que não decide de nada, nem sobre si nem sobre a tensão, o embate, entre os dois olhos ciclópicos – não poderá nem nunca conseguirá decidir entre ambas porque nunca se poderá colocar fora da tensão assim criada, desde logo constituída, individuada por ambas, isto é, também, partida, cesurada. Individuada por ambos, ou seja, “estupefacto diante daquilo que o tocou, incapaz, tanto de levar as coisas até ao fim, como de se libertar delas” (Agamben, 1999: 53). O que importa sublinhar é tanto a impossibilidade de se libertar, que, naquela situação em concreto, diria respeito à impossibilidade de ignorar, de tomar como natural, o olho armado – como não se sentir tentado a olhar para dentro da arma ocular? Espreitar o espelho cego em que nunca se dará qualquer simetria de olhares, que não poderá nunca devolver nada –, como, igualmente, a estupefacção, isto é, também, a estupidez daquele que não saberá já comportar-se perante aqueles dois olhos que, contrapostos, não estabelecem qualquer igualdade, simetria, potência para a criação de um espaço em comum, olhos sem olhar que se cruze. É a desorientação – palavra que Stiegler pensou em todas as suas consequências notando que o nosso aparato técnico para pensar a técnica é e continua a ser antiquado[2] –, a ausência de saber-viver daquele que, capturado no meio, permanece estupefacto, isto é, estúpido, numa regressão que não é nem animal, nem vegetal, nem mineral – técnica? – como dirá num ensaio dedicado a Deleuze e Derrida (Stiegler, 2013: 159-174). O termo “bêtise” é, na realidade, intraduzível para português – ou, talvez, para outra língua qualquer –, o que implica, como não deixaria de lembrar por diversas vezes Derrida, que só poderá dar-se à tradução, e Stiegler, não deixando de alertar, com Deleuze, que não é equivalente à animalidade – o que não significa que não possa entretecer com ela relações próximas –, fala numa tendência para “estabilizar na forma de uma identidade aquilo que é, na realidade, uma meta-estabilidade com potencial para a alteração”. A estupidez seria, desta forma, algo da ordem da queda, da reificação, uma “mineralização” como uma das dimensões da estupefacção que não deixaria de chegar àquela situação em particular. Não a ex-propriação originária, mas a própria impossibilidade da ex-propriação, do ser-fora-de-si.

Bêtise: contrapostos um ao outro, estes dois olhos ciclópicos não farão chegar algo um ao outro? Este outro tempo da arma ocular e o tempo outro deste olho que se coloca no limiar entre humano e animal – um olho que não vê, mas que expressa, de um incerto animal que se aproxima de nós ou que se distancia de nós – formam uma cena disjuntiva onde, apesar de tudo, algo se passa.

Na sua aparente ausência de intencionalidade, de expressão, este olho de Comportamento Animal, que não olha – que observa? Que regista? Que julga? – contrapõe-se ao olho armado, isto é, desestabiliza-o enquanto prótese não-viva, conferindo-lhe uma dimensão fantasmática, fazendo-o, portanto, retornar constantemente – é agora um pequeno animal que não me olha[3]. Torna-se então um pequeno animal técnico, diferente daqueles artefactos que pretendem imitar o vivo, cuja finalidade permanece obscura, mesmo sendo constantemente sobredeterminado por lógicas económicas, mesmo acentuando a miséria simbólica do tempo (Stiegler mostrava a aporia que encontramos nas máquinas hypomnemata: fazem esquecer no momento em que pretendem guardar na memória; impedem a repetição, o retorno do fantasma, sendo elas mesmas máquinas de uma repetição que não dá lugar à memória): um estranho fetiche que apela a rituais desconhecidos, a orla exterior da ex-teriorização que se liberta de qualquer antropomorfismo no modo de ser – poderemos ainda formular assim? – dos objectos técnicos.

E o tempo outro deste outro olho ciclópico, olhado pelo pequeno animal técnico, não é ele mesmo contaminado pela cegueira técnica do artefacto, instituindo um limiar entre animal, humano e prótese, como se este olho dessemantizado (a sua finalidade já não é olhar, mas uma outra que desconhecemos), se subtraísse por fim a qualquer estabilidade, a qualquer estabilização? Desta forma, não se trata apenas da sua possibilidade técnica, nem, também, do facto de a técnica tornar possível instituir um limiar entre humano e animal – só a câmara fotográfica permite este olho fantasmático –, mas de, no momento em que faz chegar ao pequeno aparelho de captura este limiar entre técnica e animalidade, estabelecer com ele uma proximidade que, talvez, permaneça ainda por pensar.

Notas

[1]É no segundo volume de Da Miséria Simbólica que Stiegler (2015: 35 e ss.) fala desse processo de ex-clamação que consiste na exteriorização de um excesso que é interiorizado.
[2]Principalmente no segundo volume de Técnica e Tempo, que começa exactamente por afirmar que o aparato teórico com que ainda hoje pensamos as questões relativas à técnicas foram forjadas no século XIX (Stiegler, 2009: 2 e ss.).
[3] Diferente, portanto, do gato e dessa relação especular que Jacques Derrida analisa em L’Animal que donc je suis.

Referências bibliográficas

Agamben, G. (1999). Ideia de Prosa. Lisboa: Cotovia.

Derrida, J. (2006). L’Animal que donc je suis. Paris: Galilée.

Stiegler, B. (2018). Da Miséria Simbólica. Lisboa: Orfeu Negro.

Stiegler, B. (2013). “Doing and Saying Stupid Things in the Twentieth Century. Bêtise and animality in Deleuze and Derrida”. In Angelaki, Journal of the theoretical humanities, 18, 1, Março, pp. 159-174.

Stiegler, B. (2015). Symbolic Misery, vol.2, The Katastrophe of the sensible. Polity Press.

Stiegler, B. (1998). Technics and Time, 1. The fault of Epimetheus. Stanford University Press.

Stiegler, B. (2009). Technics and Time, 2. Disorientation. Stanford University Press.

Mandelstam, O. (1996). Guarda a Minha fala para Sempre. Lisboa: Assírio & Alvim.