Revoluções industriais – do consumidor ao amador. Para uma política da vida sensível das almas e dos corpos
OS RECITANTES – A música está agora por toda a parte: nos concertos, no teatro, nos locais de culto, mas também na televisão, nos lugares comerciais e sítios públicos, nos aeroportos, nas praias e nas pistas de esqui. Desde os anos 1960, no que designaremos, numa interessante metonímia, os seus “transístores” (hoje substituídos pelo iPod), uma boa parte dos habitantes do planeta passam várias horas por dia a ouvi-la. Enquanto reina a passividade dos ouvintes maquinalmente perseguidos em todos os lugares, surge também a música que se cria individualmente no seu computador pessoal a partir de amostras sonoras colhidas na rua, na Internet ou em discos antigos. Já na década de 1980, a empresa Atari viu aqui um novo mercado. “O público” gostaria de ser mais do que um simples receptáculo: gostaria de “participar para sentir”.
Com as primeiras plataformas micro-informáticas desenvolveu-se a house music e, com a norma midi, surgiu o home studio, acessível tanto aos profissionais como a este novo género de amadores (que serão cerca de um milhão em França).
Existe assim uma invasão industrial da música em vários sentidos: alargamento organológico sustentado nas revoluções industriais; invasão, à escala industrial, da música na vida quotidiana; investimento da música pelas indústrias culturais¹.
Os efeitos desta invasão são complexos. Béla Bartók, que discursou, na década de 1930, sobre o perigo de ouvir música na rádio sem ler ao mesmo tempo a partitura, é também um dos pioneiros no uso do fonógrafo em etnomusicologia (não hesita em afirmar que a invenção de Edison revolucionou a compreensão da música, uma vez que fixa a tradição oral e permite a comparação)². Do mesmo modo, o jazz moderno inventou-se a partir de aparelhos com botões, desde Billie Holiday, que a ouvir rádio aprendia a cantar, até Charlie Parker, a inventar o bebop ao ouvir os coros de Lester Young no seu fonógrafo, abrandando-lhe a velocidade de leitura a fim de decompor o desempenho do saxofonista³ – tal como Bartók fez, quase ao mesmo tempo, para transcrever as músicas populares da Europa Central.
Por fim, a generalização da alta-fidelidade permitiu a constituição da nova figura do amador de música que, embora seja muitas vezes incapaz de ler as notas, dá por si equipado com uma nova forma de consciência histórica do repertório.
(selecção e tradução de Luís Lima e Alexandra Martins)
Stiegler, B. (2005). De la misère symbolique 2. La catastrophè du sensible. Paris, Galillée, pp. 32-33.