Fragmento

Fragmento procurou, mais do que impor uma analítica fragmentária como mood para as práticas contemporâneas, recuperar a dimensão transformativa do fragmento. Para lançar este desafio partimos do primeiro romantismo alemão (Schlegel e Novalis), dispondo o fragmento como uma promessa, aparente nos mais diversos modos de produção, de novas potências a germinar na Ceres da razão.

Benjamin West. 1783. Treaty of Paris. Ainda antes da consolidação da Revolução Americana, John Jay, John Adams, Benjamin Franklin, Henry Laurens e William T. Franklin posaram para o quadro. A delegação Britânica recusou-se a posar para Benjamin West, deixando assim o quadro inacabado para sempre.

É precisamente como modo de produção que o fragmento agrupou inúmeras (contra-)correntes transformativas da modernidade, desde a literatura (Gysin) ao ensaio filosófico (Benjamin, Bataille, Blanchot), passando pelas artes visuais (Dada, Cubismo, Surrealismo), a música (Cage) e mesmo o cinema. Simultaneamente, no campo estético da pós-modernidade, a reunião de fragmentos numa manta de retalhos, nomeadamente na colagem ou na pintura (David Salle), ou a exploração de descontinuidades, bem exemplificada na arquitectura (Venturi, Stirling), são motifs recorrentes que se apresentam como expressão de um campo de confronto de multiplicidades com diferenças irredutíveis à totalidade harmoniosa idealizada pelo modernismo universalista.

A. Balch & William S. Burroughs. (1966). The Cut-Ups. 18’45’’. UK

 

Esta edição dupla, #32-33, tentou proporcionar uma cartografia desse tecido finito aberto a linhas infinitas, percorrendo e sinalizando intercepções – do ensaio filosófico à improvisação da dança contemporânea – através do traço experimental do fragmento. A call desta edição, a par de todo o processo de selecção e revisão, buscou pautar-se pelo aberto próprio do campo fragmentário, emparelhando vozes que exaltaram a sua potência, linha histórica ou práxis com outras que chegaram a criticar os seus mais elementares fundamentos. A edição contou com contribuições enviadas por autores de diversas áreas de pensamento e com convidados selecionados pelos editores – a ambos reconhecemos um compromisso teórico e empírico de incorporar a actualidade da (contra)afecção fragmentária. Este compromisso – fulcral como ponto de partida para debater conceitos, figuras e imagens interdisciplinares como o intervalo; a interrupção; o inacabado; o descontínuo; a abertura; a distância; a ruína; o indeterminado; a relação; o infinito – não podia encontrar melhor folha de inscrição que a INTERACT – Revista Online de Arte, Cultura e Tecnologia.

Nam June Paik. 1989. Fin de Siècle II. Exibido no Whitney Museum of American Art na exposição Programmed: Rules, Codes, and Choreographies in Art, 1965-2018.

As secções da INTERACT – Ensaio, Laboratório, Interface, Entrevista e Actual – permitiram uma alternância quinzenal, ao longo deste ano, de modos de produção, contribuindo formalmente para o objectivo da própria edição temática. Ao longo desta edição pudemos assim assistir à feliz coincidência entre médium e mensagem, e nesta relocação do pensamento sobre o fragmento para as redes de informação pudemos também confrontar os leitores com diversas formas de exposição e fluidos esquemas interpretativos.

A 9 de Fevereiro demos início à edição com o ENSAIO «O Fragmento como Fratura». A contribuição de Luís Martinho – licenciado em Filosofia pela FLUL – destrinça uma hermenêutica do fragmento que, partindo do romantismo alemão e da ideia de uma duplicidade fraturante – involuntária ou voluntária –, aponta-nos para a actualidade da dialéctica e da historicidade inscritas no profundo aberto do fragmento.

Filipe Pinto – reconhecido crítico, ensaísta e ávido projectista para diversas galerias e revistas – estreou a secção LABORATÓRIO com «Sinédoque». A parelha texto-gif elucida os gestos felinos do autor em nos uploadar para uma verdadeira lacunologia. No fragmento, no resto, nas ruínas, o autor desvela uma propriedade visionária. Nas intermitências que vão ritmando o texto qualquer coisa urge, Filipe Pinto, com uma escrita singular, coloca-nos numa espécie de co-constituição topológica com aquilo que falta das coisas.

Com o ENSAIO «O Precário Absoluto», de Patrícia Soares Martins, vislumbramos no empreendimento literário do primeiro romantismo alemão precisamente a semente que ainda hoje articula figuras e estratégias do pensamento teórico e artístico. É com Schlegel e Novalis que a leitura aparece como questão essencial e é esta que, afirmando-se como ponto de partida e chegada dos modos de produção, abre uma valorização do intervalo, do inacabado e de novas modalidades sensíveis. Patrícia Soares Martins – doutorada em Teoria da Literatura, membro do CLEPUL e professora auxiliar na FLUL – encontra em Blanchot, Valéry e Pessoa o devir desta ideia de fragmento, embrenhando a leitura com a produção, o autor e a obra com o leitor.

«Jauja: quando o fluxo do afeto encontra o fragmento da pulsão» é a primeira contribuição para a secção INTERFACE. Patrícia Black – realizadora de cinema e investigadora – parte do cinema de Lisandro Alonso, particularmente da película Jauja (2014), para analisar o “cinema de fluxo” onde as imagens de maioritário efeito expressivo, interrompendo o plano e a montagem como síntese, se justapõem num continuum poroso. É essa experiência afectiva com e do espectador, essa pulsão fragmentária, que a autora faz ressaltar não só de Jauja mas também de uma certa ideia do cinema como arte impura (Bazin).

Miguel Faleiro – fotógrafo e artista visual – imbui o seu trabalho de um realismo decorrente de plataformas inconvencionais e de monasticismos técnico-tecnológicos aparentes em crises e espaços fragmentários da actualidade. «492», enquadrado na secção LABORATÓRIO, é uma peça conceptual que fragmenta e recombina uma fotografia, colocando o espectador num jogo de escolhas face a cada pedaço pictórico. Numa espécie de maze fantasmagórico tornamo-nos parte de diversos impulsos como o da subjugação da imobilidade fotográfica à temporalidade fluida do ciberespaço. Esta peça, trabalhando ideias do inconsciente óptico (Krauss), mobiliza o fragmento para a desconstrução do médium fotográfico na época do capitalismo electrónico.

Para uma investigação mais profunda da imagem é necessária uma investigação mais profunda do fragmento. Esta é a proposta que João Mateus – mestre em Práticas Artísticas Contemporâneas e investigador independente dedicado à prática do desenho – estabelece em «A Autonomia do Fragmento no Desenho», através da análise do papel do fragmento no contexto do desenho. O autor revela que a partir do séc. XIX o fragmento passa a ser utilizado de uma forma autónoma neste modo de produção (Kollwitz). É em temas – que permanecem imensamente explorados nas novas formas de produção – como o destroço, o artefacto e a ruína que esta transformação dezanoveana do desenho parece contribuir para uma complexificação genealógica da própria condição imagética hodierna.

«Subterrâneo» coloca-nos, num movimento ctónico-utópico inspirado pelo conto Fragmentos de História Futura (1896) de Gabriel Tarde, perante uma investigação em torno das co-constituições entre natureza e cultura, catástrofe e messianismo. Bruno Caracol – mestre em Ciências da Comunicação, artista e investigador – apresenta esta contribuição vídeo-textual, inserida na secção LABORATÓRIO, decorrente da sua residência no Lugar a Dudas (Cali, Colômbia). Desde os meios exploratórios experimentais à lenda da “libertação de Buziraco”, passando por instalações e pelo cantar dos sapos parteiros, o autor trabalha o fragmento como método, como processo em si, remetendo para qualquer tipo de agregação um carácter precário.

O ENSAIO de Bernardo Castro, «Considerações sobre Baudelaire e a subjetividade moderna», dá-nos como urgente o «heroísmo» de Baudelaire – numa recomposição da ruína e no compromisso de assumir uma alteridade do próprio. O autor – bolseiro FCT de doutoramento no ICNOVA – expõe como premente encarar, na senda do autor das Flores do Mal (1857), o risco da experiência moderna, afirmando uma subjectividade que busca a sua matéria expressiva nas ruínas da própria experiência.

Paulo Borges – Professor de Filosofia na FLUL e Presidente do Círculo do Entre-Ser e da Associação para a Cultura Contemplativa MYMA – deixa-nos alguns excertos do seu Livro dos Livros (a sair nas Ediçoes Sem Nome). Em «Vida Nua. Livro dos Livros», secção LABORATÓRIO, o leitor depara-se com uma espécie de aforismos contemplativos que o convidam a entrar numa experiência imersiva pautada por uma fluidez de estados de consciência. Em cada “livro” que se vai justapondo aos que o precederam e aos que se seguirão o leitor depara-se com um texto que o desafia a enfrentar a aporia do todo e da parte.

Num diálogo inesperado com a contribuição anterior surge «Do Fragmento», um ENSAIO da Prof.ª Maria Augusta Babo. A autora dispensa apresentações no panorama das ciências sociais em Portugal: Maria Augusta Babo foi presidente do CECL (agora ICNOVA), directora da Revista de Comunicação e Linguagens de 1999 a 2006 e, mais recentemente, foi distinguida com o Prémio do Centro Nacional de Cultura (2018) – Uma ideia para mudar o mundo – patrocinado pelo Presidente da República e pelo Secretário-geral das Nações Unidas, com o projecto O Outro Sou Eu – plataforma colaborativa.

Em «Do Fragmento» é-nos demonstrada a radical potência do texto fragmentário. A escrita fragmentária, indo além das lógicas aforísticas e incidindo na recusa da própria instância enunciativa, é uma escrita abissal, de ritmo caótico, que, nas palavras da própria autora: “liberta o leitor da linearidade imposta pelo texto acabado, fechado”. Nesta senda, a autora culmina o seu texto sugerindo a leitura pulverizante e ao acaso de alguns fragmentos do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares.

A primeira parte da edição dupla encerra com o ACTUAL de João Pereira de Matos – bolseiro FCT de doutoramento em Ciências da Comunicação (FCSH-ICNOVA) e um dos editores de Fragmento. Em «Multitude sem símile: sand wars e orbital billboards», o autor reflete, na linha dos arcaicos, sobre a símile de multitude presente nas areias e nas estrelas. O texto parte de uma constelação em que o fragmento é trabalhado através da justaposição de figuras e metáforas arcaicas com fenómenos contemporâneos como a guerra pela areia de sílica, a propaganda espacial e a imagem do buraco negro como uma força que parece hoje sugar o incontável da multitude, a sua multiplicidade, para o eterno esquecimento.

A 6 de Setembro de 2020 arranca a segunda parte da edição. Eduardo Jordão – mestre em Filosofia pela FLUL e também ele um dos editores de Fragmento – avança com algumas sugestões, no seu ACTUAL, para pensar a questão do fragmento através da ontologia. Tendo por base textos de José Barata-Moura, Marx e Engels, o autor, em «Fragmento, ontologia e “robinsonadas”», tenta emancipar as consequências de uma radicalização fragmentária do ser para o esbater de um certo laço comunitário. Nesta senda, é através da explicitação da relação da ontologia com a política e a economia política que Eduardo Jordão vai compor uma crítica contemporânea a alguns movimentos político-identitários – tidos como “robinsonadas”.

O colectivo artístico Chama Ficção, composto por Ana Mata e Catarina Domingues, tem desenvolvido (desde 2018) um interessante trabalho em torno das potências poéticas e performativas do vídeo. Em «Maja», secção LABORATÓRIO, as autoras tornam-se parte integrante da sua obra, dialogando em (des)presença com a pintura de Goya. Maja fragmenta, operando sobre a duração e foco, o movimento do olhar, desterritorializando a obra de Goya para os zooms e ritmos computacionais.

No contexto pandémico, nas suas impossibilidades, a secção de ENTREVISTA acabou por ter pouco peso na edição. Excepção é a conversa entre Sílvia Pinto Coelho e Vera Mantero, em «Fragmentos de performance improvisada». Sílvia Pinto Coelho é coreógrafa, investigadora integrada no ICNOVA, professora auxiliar convidada na FCSH e, de momento, uma das directoras, a par de Catarina Patrício, da INTERACT. Na conversa com Vera Mantero, reconhecida coreógrafa e improvisadora, a autora leva-nos à descoberta da experiência mnemónico-fragmentária de Mantero através da prática do improviso na dança. Na entrevista e nessa colagem de memórias de palco, de Crash Landing ou de On the Edge, somos recrutados para o processo relacional, imersivo e singular da construção, quasi-paradoxal, de formas de improvisação.

No ENSAIO «O Fragmento e a Alegoria como aportes teóricos guias de concepção do pensamento crítico de Jean Baudrillard», Paulo Quadros – pós-doutorando em Teorias da Comunicação pela USP e investigador de tecnologias avançadas aplicadas às ciências sociais – apresenta a questão do fragmento como um nódulo essencial na construção do pensamento de Baudrillard. A escrita fragmentária do filósofo francês, explícita na relevância de conceitos como mistério, opacidade e fractalidade, é usada, como evidencia o autor, como um aparelho especulativo e experimental – aparelho esse de extrema aplicabilidade para uma radicalização conceptual na era da hiperconectividade digital.

Um dos objectivos da INTERACT é, diminuindo o fosso entre cultura e cibercultura, fazer colidir práticas expressivas tradicionais com formas de exposição próprias da cultura digital hipermediática. Bom exemplo disso é a contribuição de Cristina Benedita (bolseira FCT de doutoramento pela FCSH e coreógrafa) e Eva Tremel (professora do Instituto de Artes, ArtEZ, na Holanda): «Performance Imersiva: o corpo entre a dança e o teatro e mais além». Os seus vídeos derivados de skype/streaming, fazem-nas interagir através da dança contemporânea entre Lisboa e Apeldoorn, levantando questões como a modelagem da consciência cinestésica, a imersividade dos espaços e práticas em hiperconexão e a requalificação de uma linguagem artística entre interrupções e continuums digitais. A exploração da imersão técnica, entre presenças e virtualidades, da dança contemporânea é acompanhada, nesta peça alocada à secção LABORATÓRIO, pelo belo e singular imaginário de movimento de José Gil.

No último ENSAIO da edição, João Pinheiro – mestre em Política Global pela Universidade de Durham e bolseiro FCT em Filosofia pela Universidade de Bristol – explora, criticamente, várias fórmulas do cosmopolitismo. Em «A Cultura Cosmopolita não é Fragmentária, mas os Estados-Nação Fragmentam Culturas», o autor parte da extensão dos compromissos cosmopolitas à política global de Kymlicka (1989) para evidenciar lacunas ontológicas em diversos pressupostos liberais que sustentam conceitos como autonomia e multiculturalismo. O autor defende uma ideia de cosmopolitismo que se afaste da fragmentação dos Estados-nação, apontando-nos o caminho do cosmopolitismo sentimental como uma fórmula urgente tanto para a política global como para os processos de individuação inter-cultural.

A edição culmina com a INTERFACE de Henrique Fernandes: «Do reencantamento do mundo: em torno de “Baroo”, de Carl Stone» – também ele um dos editores deste número temático. Mestre em Ciências da Comunicação pela NOVA FCSH, Henrique Fernandes conjuga a edição literária com um ávido e persistente pensamento sobre a estética. Das composições musicais de Carl Stone aos limiares da humanidade, somos apossados, num interpelante texto, por afecções de estranheza e impulsos desterritorializantes. Neste interface, sobre exotismo e desumanização, o autor coloca-nos, na linha de algumas contribuições anteriores, perante os imaginários que construímos em face do ininteligível.

O debate aberto e desenvolvido pela edição #32-33 mostra-nos a contemporaneidade do fragmento como trajectória a percorrer. Pisar o rio do fragmento persiste em transformar os herdeiros da modernidade na mesma medida que reconfigurava os antigos. Esta edição provou precisamente esta vivacidade: tenhamos o fragmento como estrutura, método, figura, metáfora ou até prática em si mesma. Na época da pós-historicidade niilista, do antropoceno apocalíptico e da acrítica subjectividade numérica, parece, ainda assim, restar qualquer coisa por aí. Um fragmento qualquer, porventura.

Martin Rev. 2017. Demolition 9. Atlas Réalisations

 

 

Agradecimentos

Reserva-se aos editores – Eduardo Jordão, Henrique Fernandes e João Pereira de Matos – o “dever” de agradecer:

  • às Directoras da INTERACT – Sílvia Pinto Coelho e Catarina Patrício – por tão bem terem acolhido a nossa proposta e por todo o esforço e compreensão empregues ao longo destes longos meses;
  • ao ICNOVA, por abrir as portas de projectos académicos a jovens investigadores e por todo o apoio na divulgação;
  • ao Diogo de Tita, promissor artista 3D baseado em Lisboa, que, pro bono, criou o conceito estético-despedaçado que funcionou como imagem de capa e ambiente de trabalho para toda a edição;
  • a todos os contribuidores, seleccionados e convidados, que nos surpreenderam com eclécticas e profundas reflexões sobre o fragmento;
  • a todos os leitores, com especial agradecimento a todos aqueles que, ao longo da edição, foram partilhando as nossas publicações nas redes, incrementando a exposição da edição e, importantemente, da Revista.

Desejamos muito sucesso à próxima edição!