Subterrâneo

1. História Futura

Subterrâneo é uma investigação que partiu da história de uma humanidade solitária que se afunda na Terra e aí, liberta do convívio com qualquer outra formas de vida, constrói uma sociedade ideal. Este é o movimento do conto Fragmentos de História Futura, escrito em 1896 por Gabriel Tarde, onde um colapso solar obriga à tal descida em direcção às profundezas, a partir do qual Tarde ensaia um esquema utópico, o estruturar afetivo de uma sociedade (quase) sem coacção, onde a ordem emerge das livres relações entre humanos. Subterrâneo foi produzido em residência no Lugar a Dudas, Cali, Colômbia, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. A pesquisa tomou diversos meios, a exposição de uma cópia do livro de Tarde à acção de térmitas, o registo vídeo de trabalhos de conservação do Arquivo Municipal de Cali, conversas em torno de fragmentos do texto, registo sonoro de insectos e uma instalação no Lugar a Dudas.

Fragmentos de História Futura parte de um movimento anti-platónico, uma inversão em paródia do conto da caverna – e se o humano se encontrasse com a sua “verdadeira natureza” na penumbra dos túneis escavados na terra? – não elimina o jogo idealizador implicado nesta busca, inverte apenas o seu eixo. O engenho humano vai iluminar aqueles túneis com uma luz que “brilha vagamente aqui e ali, com reflexos de nácar e pérola, no crepúsculo das profundidades [do oceano congelado], (…) sobre a cabeça do patinador solitário que se extravia, de lanterna na testa, perseguindo o desconhecido”. Apesar das primeiras aparências não é um texto sobre a importância da sombra, das zonas de obscuridade na formação de um entendimento mais completo do mundo, mas um aprofundar do instrumento racional, como um patinador que ilumina as profundezas geladas.

A protagonista é uma humanidade em guerra com o território. A catástrofe que medeia os acontecimentos avança sobre a superfície da terra como um exército em terreno inimigo, os glaciares reconquistando o seu território e angariando aliados: “De esta imensa rede eléctrica, de trama dentada, que envolvia todo o globo, tal como esta prodigiosa cota de malha que o sistema semeado de ferrocarril punha na terra, não ficam mais que trechos disseminados, semelhantes aos restos do grande exército de Napoleão durante a sua retirada da Rússia.” É uma espécie ensimesmada, feita de humanos entediados com os registos de outros seres já extintos. Satisfeitos na sua solidão, como num eremitério coletivo – como um Robinson feito de gente, não já o europeu solitário que se encontra com as estruturas sociais isolado dos seus pares, mas uma sociedade que encontra a sua organização ideal liberta do convívio com as outras formas de vida.

É estranho, então, que esta repulsa profunda pela coabitação forme uma sociedade convivial, guiada pelas intensidades afetivas – a ponto de se anunciar uma psicologia do átomo, uma sociologia dos minerais. Se atribui alguma virtude burocrática no retrato que faz do governante que antecede a catástrofe, “esse grande homem [que] compreendeu que o governo era o estômago e não a cabeça do corpo social (…) útil e horroroso de ver”, capaz de resolver as questões práticas que a humanidade enfrenta sem escapar, no entanto, a uma monotonia entediante, uma gestão pragmática e silenciosa que só na catástrofe vai ser ultrapassada. Mesmo neste levar do estômago ao poder não se trata propriamente da emancipação dos humanos encarregados das tarefas reprodutivas, mas o rodear da tarefa governativa de uma neutralidade orgânica e apolítica – governar não é a contingência da relação entre oposições internas, ou a negociação das inimizades externas, mas uma gestão eficiente dos fluxos materiais num plano sem oposições. Esta neutralidade vai prolongar-se pós-catástrofe, uma harmonia afectiva que se estabelece como um novo estado da natureza, quase sem coacção. É sem relação esta humanidade solitária, apesar de se estruturar a partir das relações – sem conflito nem diferença, é a partir de um consenso subjacente, uma “vontade geral” -, que se move a sociedade. É nesse sentido que o caos da diversidade biológica funciona para Tarde como ruído e não como confirmação de um já-existir da sua utopia relacional.

Tem estranhas ressonâncias com o presente o conto de Tarde. A catástrofe que descreve é violenta, mas distante, a grande vítima do exército gelado é a infraestrutura civilizacional, sabemos pouco de sofrimento humano, o aniquilar de vida não-humana é recebido como um alívio. A civilização reconstrói-se a partir dos despojos materiais recuperados, guiada para o interior da terra por uma figura heróica, encontrando a estabilidade depois de uma última guerra entre cidades produtivas e artísticas. Em parte uma forma irónica de referir-se a debates seus contemporâneos, o esquema que nos apresenta é desafectado, marcado pela distância da ironia e por um interesse esquemático e despersonalizado na estrutura social, sem sofrimento, sem conflito, sem quotidiano para além do anedótico. Tarde vai ser recuperado hoje pela sua representação relacional e afectiva das estruturas sociais, o seu texto-apocalipse servirá para entendermos a catástrofe nossa contemporânea por saturação de algumas das suas características – o apocalipse é afinal o caminho inevitável para a salvação, e mesmo que despido do tema religioso responde ainda à teleologia transcendente da humanidade. É então somente entre os corpos engolidos pelo avançar dos glaciares que podemos entender o poder messiânico da catástrofe e reparar o presente, não como um momento excepcional que aponta para uma refundação pós-apocalíptica, mas um contínuo quotidiano e uma forma de desenhar alianças, aquelas que sendo invisíveis mantêm o mundo vivo.

2. Paisagem fragmentada

a) As noites de Cali são em certos bairros dominadas pelo cantar dos sapos parteiros (Alytes obstetricans), assobios curtos e monotonais que se cruzam criando padrões conforme os diferentes ritmos se encontram e voltam a desencontrar. De origem europeia, estes sapos foram introduzidos na cidade no final do século passado, diz-se que porque o seu cantar interferia com sistemas de áudio-vigilância, obscurecendo conversas que se desejavam secretas. Os sapos-parteiros macho carregam os ovos fertilizados até eles atingirem a maturidade, daí deriva o seu nome, e foi através do seu estudo que Karl Vogt descobriu o mecanismo de apoptose, através do qual as células programam a própria morte. Vogt foi defensor da tese poligénica da evolução humana, sustentando origens biológicas diferentes para as “raças humanas”.

b) Em 1924 um terramoto agitou as terras de Cali, derrubando as torres da catedral, várias outras igrejas e deixando parte da população desalojada. Derrubou também as 3 cruzes de bambú que frades franciscanos tinham erguido em 1837 num monte a norte de Cali para aprisionar um demónio, após um período particularmente cruel de epidemias e fracas colheitas. Buziraco teria sido expulso de Cartagena por Frei Alonso de la Cruz Paredes, monge Agustino, que terá atirado por uma ribanceira o bode onde o demónio estaria encarnado. Os monges associaram ao demónio um lugar de culto de indígenas e escravos fugidos, que deixariam oferendas no Cerro de la Popa. Em Cali, as cruzes terão tido o efeito de aprisionar Buziraco no monte, gerando peregrinações anuais em que eram renovadas. O terremoto ficou conhecido como a “libertação de Buziraco”, sendo que no centenário da cidade, em 1938, foram erguidas em betão as cruzes que hoje permanecem no monte. Diz-se que o demónio aparece em bailes da região como um homem bem parecido, bom bailarino, denunciado por ter pés de bode, desvanecendo-se quando descoberto.

Referências bibliográficas:

Danowski, Deborah; Viveiros de Castro, Eduardo (2014) Há Mundo por Vir?: Ensaio Sobre os Medos e os Fins, Instituto SocioAmbiental, São Paulo.

Latour, Bruno; Lépinay, Vincent A. (2012) The Science of Passionate Interests: An Introduction to Gabriel Tarde’s Economic Anthropology, Prickly Paradigm Press, Cambrige.

Tarde, Gabriel (1896) Fragmentos de Historia Futura, Abraxas, Madrid.

Timofeeva, Oxana (2014) The End of the World: From Apocalypse to the End of History and Back in eflux journal #56: https://www.e-flux.com/journal/56/60337/the-end-of-the-world-from-apocalypse-to-the-end-of-history-and-back/

Referências vídeo:

Fragmento 1 – vídeo do autor, voz: Vanessa Sandoval.
Fragmento 2 – vídeo do autor, voz: Mónica Zamudio Palacios.
Fragmento 3 – vídeo de Catarina Prado e Castro, voz: Vanessa Sandoval.
Fragmento 4 – vídeo do autor, voz: Mónica Zamudio Palacios.