Esses sons que nos seduzem…

 

Preâmbulo

Espaços habitados por sons são como espaços cósmicos povoados por objectos apreensíveis pela vista mas intocáveis na sua matéria. Os sons são fumarolas que se desenrolam no espaço, habitam o lugar, seduzem a nossa percepção, nos fazem imaginar, mas, como formas mutantes e efémeras, os sons esfumam-se e desaparecem, deixando traços na memória, moldando a imaginação…

De que são feitos estes sons que nos seduzem, esses outros que nos atormentam, que nos perseguem em lembrança, que nos fazem inventar cenários, criar imagens, engendrar entidades?…

 

Sons… de que são feitos?

Som? O que é isso afinal? De que matéria é feito? É um fenómeno físico ou perceptivo? O som age, reage, interage com o espaço e connosco, figuras móveis, instáveis, irrequietas que apreendemos pelo ouvido, cada ouvido de modo um pouco diferente…

O som designa simultaneamente um fenómeno físico e uma sensação auditiva. Guiaremos o nosso pensamento através desta duplicidade, omitindo assumida e intencionalmente os seus aspectos filosóficos. Do mesmo modo não nos referiremos ao som enquanto representação fixa sobre um qualquer suporte: a fixação de informação relativa à onda sonora, sob uma qualquer forma, não é som mas apenas uma possibilidade da sua existência futura ou um traço da sua presença passada. Dessas problemáticas não trataremos aqui, mas apenas da do som enquanto evento espácio-temporal no contexto das artes sonoras.

Mas então, se o som é ao mesmo tempo um fenómeno físico e perceptivo, em que situações ou condições o som pode ser tido como um e em que outras deve ser considerado como outro?

Consideremos brevemente o engendramento e a propagação do fenómeno ondulatório, assim como as condições em que este é percebido pelo ouvido como um som devem por isso ser considerados. Geralmente considerado como fenómeno ondulatório de origem mecânica capaz de gerar perturbações, por variação de pressão, num meio elástico de propagação, o som pode ter a sua causa material em fontes diversas: um instrumento de música, o motor de uma viatura, os passos de alguém ou a membrana de um altifalante. Mas a acção física sobre estas fontes é apenas a origem mecânica do processo de perturbação do meio, a existência do meio elástico de propagação é essencial, e este não é inócuo, influencia a propagação da onda, alterando as suas características. Dependendo das característica do meio de propagação, dimensões, geometria, materiais, obstáculos aí presentes, processos de reflexão, refracção, difracção, filtragem e outros fenómenos de erosão, transformam a onda sonora durante o trajecto que a leva da fonte emissora ao ouvido receptor.

É então necessário um receptor, um par de orelhas para constatar a presença do som1. O som apresenta-se assim como um fenómeno eminentemente perceptivo do qual não temos consciência antes que as variações de pressão provocadas pela fonte sonora tenham irradiado através do meio de propagação e atingido o tímpano.

Percebemos um som. E depois?

«The job of perception, then, is to take the sensory input and to derive a useful representation of reality from it.» (Bregman, 1991, p. 3

Após o estímulo sensorial inicial operado ao nível do tímpano, as estruturas do sistema cognitivo são activadas para compreender: que som é este? Qual a sua origem? Que mensagem traz consigo? «La perception est le phénomène de conscience qui nous relie au monde par l’intermédiaire de nos sens.» (Bertrand. Garnier. 2005. P. 71) A codificação e compreensão do estímulo sonoro, realizada em etapas complexas, não implicam necessariamente um processo consciente, a sua base fundamental é inata, sendo este inato completado por um longo processo de aprendizagem que se inicia a partir do momento em que o aparelho auditivo de cada ser humano se torna funcional.

«La perception est alors le résultat des expériences sensibles, de l’interaction entre l’individu qui perçoit et les stimulus, internes ou externes, perçus dans notre corps ou reçus à travers les organes sensoriels. En tant que processus cognitif, la perception reçoit des informations des stimulus, les analyse et construit des schémas mentaux, des représentations des phénomènes et des objets de l’environnement.» (Pires, 2007, p. 57)

Esta percepção, multidireccional e permanente, é sentido de alerta por excelência, o sujeito percebe sons vindos de qualquer direcção e independentemente do seu estado de atenção. Por outro lado, a compreensão de características particulares de sons, para além dos seus índices causais e potencial mensagem transmitida, implica processos cognitivos mais complexos que abarcam ao mesmo tempo os diversos níveis do processo cognitivo, assim como a activação de processos particulares de atenção e memória2. Esta atenção às características particulares dos sons permitirá analisar auditivamente as particularidades ao nível de texturas, intensidade, altura, evolução temporal, massa, entre outras.

A existência de um som compreende assim de três etapas: a sua génese na fonte sonora; a sua propagação no meio elástico enquanto fenómeno físico; a sua percepção, que implica a recepção do estímulo mecânico pelo ouvido e posterior interpretação e codificação pelo sistema cognitivo.

Não convém portando reduzir a ideia de som nem à sua origem mecânica e respectivo processo de propagação, nem à sua natureza perceptiva: ambas são indissociáveis e determinantes da essência mesmo do som. É esta dualidade que autoriza a obra de arte sonora, é nesta relação entre gerar e perceber que se estende o espaço do criador.

 

Ver sons, ouvir imagens

Perceber o que nos rodeia de forma não corporal implica invariavelmente os sentidos da audição e da visão3, assimilando informações e relações, e criando imagens mentais referentes a objectos e fenómenos presentes no ambiente espácio-temporal em que o individuo que percebe se encontra. Reflectindo aos sentidos da visão e da audição, constatamos que existem diversas diferenças relevantes entre a percepção de uma e de outra, mas também similaridades no funcionamento do processo cognitivo. Uma das diferenças relevantes que nos importa aqui refere-se à temporalidade do sentido: a temporalidade perceptiva do estímulo visual tende a ser mais curta do que aquela da percepção de um estímulo auditivo. Com efeito, o tempo necessário à percepção de um objecto físico estático parece ser para a visão consideravelmente mais curto; ele parece ser apreendido na sua globalidade visível de modo quase instantâneo: quando porto a minha atenção visual sobre um objecto, vejo-o na sua totalidade observável. No caso do som, o tempo necessário à percepção é consideravelmente mais longo, não por razões de diferença processual no tratamento da informação recebida pelo sistema cognitivo, mas simplesmente porque a percepção dos sons, dependendo da temporalidade do próprio som, implica geralmente um tempo que parece ser mais longo: quanto porto a minha atenção sobre um evento auditivo, eminentemente temporal, necessito de recorrer à memória a curto termo para que, organizando mentalmente os instantes do fenómeno, o possa abarcar na sua globalidade. No entanto, no caso da percepção de fenómenos visuais evolutivos, como é o caso do movimento ou da evolução da cor, o tempo torna-se similarmente longo: neste caso, embora a visão possa abarcar o objecto que se move na sua globalidade a cada momento, necessitará de acrescentar a essa informação o movimento ou a evolução, tornando o processo de percepção de instantes individuais — a percepção da totalidade do objecto, num processo de percepção de instantes sucessivos. Assim, tanto no caso da visão como no da audição, a capacidade de perceber estímulos espácio-temporais depende, em grande parte, das características dos próprios desses estímulos.

No processo cognitivo de percepção de um estímulo auditivo ou visual, nomeadamente no que se refere à interpretação cognitiva da mensagem transmitida, estímulos auditivos trazem por vezes sensações visuais; percepções visuais transmitem ocasionalmente mensagens auditivas. Dessas similaridades ou permutas discutiremos brevemente em seguida.

No processo cognitivo de percepção do ???? as relações entre sensações percebidas e o tipo de estímulo que lhes deu origem encontra-se trocada com alguma frequência. Situações perceptivas do dia a dia, que compreendemos de forma imediata por fazerem parte habitual do ambiente que nos rodeia, activam automatismos cognitivos inatos ou apreendidos, mas que são activados inconscientemente, e são por isso independentes da vontade, e que, quando sobre eles reflectimos com mais atenção, parecem ilógicos, permutados, incoerentes.

Tomemos alguns exemplos banais demonstrativos deste facto: imaginemos que escutamos o som do motor de uma viatura que passa no nosso espaço de percepção auditiva mas cuja imagem se encontra fora do nosso campo de visão. Poderemos nós imaginar essa viatura? Teremos a capacidade de a visualizar? Talvez não conheçamos a marca, o modelo ou a cor, mas podemos conjecturar por exemplo se é uma viatura maior ou menor, e se se aproxima ou afasta, se segue a uma velocidade maior ou menor. Mesmo se escutamos esse som através da rádio, ou em qualquer outra gravação, não vendo a fonte sonora — a viatura, pois ela não se encontra no mesmo espaço-tempo que nós –, podemos ainda assim visualizá-la mentalmente. Estamos portanto a inferir um cenário visual a partir de um estímulo sonoro, logo auditivo.

A situação inversa é igualmente comum. Se ao nossos sentidos chega um estímulo visual de uma viatura que passa, ou a representação desse movimento num ecrã de cinema ou outro suporte visual, sem que o estímulo sonoro que — pela lógica do nosso aprendizado cognitivo — a acompanharia se encontre presente, o nosso sistema cognitivo está capacitado para nos fazer escutar um som que potencialmente corresponda a esse estímulo visual, ainda que esse som não corresponda àquele realmente gerado pela viatura concreta em face de nós, produtora do estímulo perceptivo. Trata-se portanto da atribuição de uma sensação auditiva a um estímulo que é apenas visual.

Sinestesia, clamam uns. Noema, afirmam outros. Operatório, propomos nós, no campo da criação musical ou de arte sonora.

No âmbito da criação musical, sobretudo nas músicas de som4, as relações entre sensações visuais e auditivas, por vezes directas em aparência, são geralmente tratadas pelo artista criador como elementos operatórios que lhe servirão ao mesmo tempo para conceber sons e articular estruturas no interior da obra. Por vezes recorrendo a representações visuais, de tipos diversos, do simples esquisso desenhado no papel às representações computacionais do som. Os compositores recorrem com frequência a estes auxiliares visuais durante o processo de composição da obra musical, organizando a distribuição dos sons nas diversas dimensões espaciais da obra (alturas, ocupação do espaço espectral, posicionamento na linha do tempo, distribuição no espaço físico imaginário, …), representando assim, de formas diversas, eventos sonoros e a sua articulação na obra. Suponhamos que o compositor representa um som longo, constante em intensidade, altura e massa; ele não o representará por um ponto, assim como um som curto, pontual, momentâneo, não será representado por uma longa linha, mas tendencialmente por um ponto. Estas relações entre uma ou outra característica de um som, o seu comportamento e a forma como compreendemos o estímulo, estão condicionadas por factores de aprendizagem, são funcionalismos cognitivos do tipo associativo, têm carácter prático e utilitário, e dependem, entre outras coisas, do contexto no qual o estímulo acontece. Estas relações naturais, que se a elas reflectirmos parecem estranhas, foram forjadas ao longo da existência pelos mecanismos da nossa percepção5.

Consideremos de modo mais abstracto, a ideia de ver sons e ouvir imagens. Tomemos a relação entre um som e uma imagem que servirá para o representar. Pensemos igualmente na ideia de movimento enquanto conceito abstracto. Imaginemos agora a sensação perceptiva de um som (sensação auditiva) que descreve um movimento da esquerda para a direita, ou de baixo para cima (descrições directamente ligadas a factos conhecidos de carácter visual). Se um movimento sonoro descrito como acontecendo de baixo para cima não estiver associado a uma variação nas alturas6 percebidas do som, mas se refere a uma deslocação, mudança de posição física do som, então a os processos cognitivos de percepção auditiva irão associar esse movimento ao deslocamento da fonte sonora — objecto, artefacto ou instrumento material gerador de som: trata-se aqui de uma associação a um movimento de carácter visual. O mesmo acontece com a percepção de um som que se move em azimute: exceptuando as situações onde o contexto informa antecipadamente o nosso sistema cognitivo do contrário7, a percepção de um movimento sonoro em azimute será instintivamente compreendida como o deslocamento da fonte sonora que o produziu. Ora a tecnologia de produção sonora permite actualmente simular essas sensações, simulando-as independentemente do comportamento da fonte sonora.

O foco sobre a forma como os sons são percebidos no contexto da criação de obras artísticas sonoras, e a busca por meios de simular sensações auditivas diversas, nomeadamente aquelas que relevam de comportamentos no espaço, levou ao desenvolvimento de tecnologias que, autorizando a manipulação da onda sonora de forma artificial, são capazes de gerar sensações auditivas específicas, como se disse acima. A simulação artificial de comportamentos particulares da onda sonora no espaço físico onde esta é projectada, que são inconsistentes com o comportamento da fonte sonora real — o altifalante.

O conhecimento das características físicas do fenómeno ondulatório, seu comportamento no espaço físico de projecção, articulado com conhecimentos de carácter psicoacústico trouxe-nos um mundo sonoro simultaneamente real e imaginário, virtual e concreto, onde os sons trazem imagens, e as imagens música.

 

A sedução do som

«Le son a pris corps. Devenu entité, reconnaissable ou non, formant événement, dans un cadre spatial et temporel qu’on appellera moment.» (Bayle, 1998, p. 367)

Estas entidades sonoras, quase materiais, mas sempre unas, consequência de uma realidade física e de um processo perceptivo, imagens mentais, figuras de memória, tornam-se elementos operatórios no acto de criação musical.

Esses elementos, objectos sedutores, material efémero, éter auditivo, esses sons que nos seduzem e nos atormentam… Desses sons muito se disse, algumas linhas mais escrevemos ainda.

Pensemos no som como objecto de arte. A ideia geral de objecto no mundo sensível é fundada essencialmente sobre uma unidade material: um objecto é qualquer coisa que afecta os nossos sentidos, cuja percepção é experimental, mas que é independente do nosso espírito. Um objecto é algo que pertence ao mundo palpável, constituído de matéria física. Gilles Gaston Granger define objecto como «ce que l’on vise, soit pour l’atteindre soit pour le connaître» (Granger, 2000, p. 1292).

Os objectos sensíveis, mesmo os que são constituídos de elementos díspares, compõem uma unidade material, física e concreta, que é independente do raciocínio, que existe para lá da nossa percepção. François Bayle define o objecto como «d’abord quelque chose dont l’existence est externe: nous constatons sa présence, mais la confirmation d’un objet n’intervient vraiment qu’en le retrouvant. Ce n’est pas seulement en le trouvant, mais c’est à le “retrouver” que se confirme son identité, son statut d’objet […].» (Pires e Bayle, 2007).

No contexto das artes sonoras, estes objectos, físicos, concretos, palpáveis são inexistentes. O som é um fenómeno efémero, acontece e desvanece-se. Poderá ao som ser atribuído um carácter objectal?

No contexto musical, a expressão objecto sonoro remete directamente para os conceitos desenvolvidos na década de 50 do século passado por Pierre Schaeffer no âmbito do surgimento da Música Concreta. Schaeffer faz depender directamente esta ideia de objecto sonoro da percepção auditiva, uma percepção particular, intencional, construtiva, dependendo de processos cognitivos específicos, da memória, da aprendizagem. Perceber um objecto sonoro não é inato, não é instintivo, o objecto sonoro é uma construção da consciência resultante de uma atitude de escuta específica não natural. A escuta natural é uma escuta causal, a escuta que permite distinguir o objecto sonoro é uma escuta intencional, resultante de um esforço cognitivo consciente, desligando o som da sua causa e atentando para o som em si mesmo. O objecto sonoro “c’est ce que j’entends, c’est une existence que je distingue» (Schaeffer, 2002), está «à la rencontre d’une action acoustique et d’une intention d’écoute» (Schaeffer, 1966). O objecto sonoro é portanto «en même temps phénomène acoustique et événement perçu fusionné en un tout cohérent, délié de sa causalité physique, libéré de sa signification phénoménologique, détaché de son contexte» (Pires, 2007).

Um ouvinte não especialista interpretará em prioridade os índices causais do som percebido, a mensagem nele contida. Através da orelha, o sistema cognitivo reconhece rapidamente a fonte sonora (uma campainha que toca, o cão que ladra, a viatura que passa, …), ou o sentido trazido por uma linguagem familiar. O som não se encontra aqui dotado de um carácter objectal. Esse carácter pode no entanto ser atribuído ao som, em circunstâncias particulares, como o preconiza Schaeffer, de modo a torná-lo objecto de operações, articulações, manipulações, elemento base na construção de obras de artes sonoras. Estes fenómenos percebidos, estes sons, apenas adquirem uma natureza objectal quando fixos sobre um suporte material, como explica Bayle, os sons «se produisent à un moment donné et dans un espace donné et dans le moment suivant ils ne sont plus là. […] Au contraire des phénomènes, les objets se trouvent et se retrouvent, à un moment différé du temps ils sont encore là.» (Pires e Bayle, 2007, nota de rodapé) No entanto, a temporalidade efémera do fenómeno sonoro não lhe concede a possibilidade material atribuível ao objecto: O objecto é independente do seu contexto; e a sua existência não depende da percepção, o som ao contrário «is being a medium-disturbing event, then what makes something a sound is just that it is an occurrence with the physical makeup required of such a disturbing» (O’Callaghan, 2007, p 97.) E acrescenta: «My proposal aims to capture not only the sense in which sounds seem located in one’s environment, but also the sense in which sounds are creatures of time.» (idem, p. 10) Assim, como afirma Chion, «Le son prend […] l’apparence d’un non-objet couvert de qualités et de propriétés, puisqu’on dirait que sa description infinie ne le constitue jamais.» (Chion, 2002. p. 51.)

O que são então estas «criaturas do tempo» que escutamos sem ver, que preenchem espaços sem os ocupar, trazem sensações sem que delas possamos escapar?

Ouvir sem ver, ou a escuta acusmática, pode consistir na audição de uma gravação, escuta de um programa radiofónico ou mesmo a voz de alguém do outro lado de uma comunicação telefónica. Esta situação não impede o ouvinte de se aperceber das referências causais contidas naquilo que escuta, não só aquelas relativas ao meio de escuta propriamente dito e à mensagem transmitida, mas também outras marcas causais de acontecimentos presentes no espaço de origem da fonte sonora. O ouvinte ouve a mensagem e compreende algumas características do espaço de onde o som é originário, sem portanto ter de se preocupar com as características próprias do som em si. Esta dissociação entre a visão e a audição, presente na escuta acusmática, favorece sem dúvida a percepção de características particulares do som escutado, mas não implica necessariamente uma atenção expressa e prioritária a essas características, como o preconizava Schaeffer. O próprio Schaeffer toma estes factos em consideração:

«Tout objet perçu à travers le son n’est tel que par notre intention d’écoute. Rien ne peut empêcher un auditeur de la faire vaciller, passant inconsciemment d’un système à l’autre, ou encore d’une écoute réduite à une écoute qui ne l’est pas.” (Schaeffer, 1966, p. 343)

Mas o que acontece afinal quando ouvimos um som gerado num contexto espácio-temporal diferente daquele da sua escuta? O que se passa quando ouço tranquilamente na minha privacidade o registo de um concerto gravado numa catedral?

François Bayle reflecte sobre esta questão de forma elegante, considerando que o som, desligado da sua fonte geradora, não para negar a sua causa mas para sublimar a representação de uma ausência, se torna numa imagem — uma imagem-de-som. Bayle explica que

«[…] notre époque demande un effort de conscience pour comprendre que nous vivons dans un monde d’images. […] Quand on entend un son qui vient d’un haut-parleur, il faut réaliser que ce n’est pas un son “comme les autres”. […] ce qui sonne n’est plus lié à la cause […] mais à sa forme captée. C’est devenu, par support interposé, une image-de-son.» (Bayle, 2003, p. 4)

Estas imagens-de-sons, resultado directo da mais importante revolução no mundo dos sons — a possibilidade de os fixar –, transporta o compositor, ou criador de arte sonora, para uma realidade próxima da experiência do escultor ou do pintor, permitindo-lhe trabalhar directamente sobre o material sonoro. A criação musical abandona a sua dependência da partitura prescritiva e a intermediação do intérprete, passando de forma quase directa da mão do criador para o ouvinte. E o criador, esse, permite-se trabalhar directamente com a matéria, esculpindo os sons, misturando e combinando como nunca ante o pôde fazer. Este é segundo Bayle um novo espaço de criação que permite dar atenção às formas sonoras, trabalhando de modo particular sobre estes fenómenos efémeros que são os sons. Estes são, afirma Bayle, fenómenos «“non ordinaires”, insaisissables et pourtant observables, relevant de l’espèce des images, visuelles, auditives, virtuelles […] constituent des mondes d’objets plus ou moins spatiaux plus ou moins temporels.» (Bayle, 2003, p. 6)

Uma imagem-de-som apresenta-se assim como a presença de traços caracterizadores de um determinado objecto ou fenómeno, ela está em vez de, em representação de algo que se encontra ausente na sua materialidade ou causalidade, que existiu num espaço-tempo diferente daquele em que é percebido.

«Cette image fixée, autonome, capable d’exister en dehors de sa cause et donc de la représenter, a ouvert la conscience à la présence prolongée des choses. Cette idée de relayer par l’image, de “ressusciter” la présence des choses absentes […].» (Pires e Bayle, 2007)

Esta consciencialização da deslocalização de um referente transformou profundamente a nossa percepção dos sons e, em consequência, a forma de os conceber artisticamente. Estas imagens-de-som transportam consigo índices causais, formas, traços, marcas perceptíveis do seu espaço causal e «sur l’écran du silence et du non-visible les sons projetés fonctionnent comme des images-de-sons, fragments de sens, pensée hors des mots, langage d’aéroformes.» (Bayle, 1993. p. 75)

Assim, se imagem-de-som e objecto sonoro são concepções dissemelhantes, elas não se opõem; ambos se reportam a fenómenos físicos efémeros percebidos através de uma intencionalidade de escuta particular, uma atenção dada às formas, estruturas, características próprias do fenómeno, reduzindo a ou evacuando a relevância da causalidade. A sedução da imagem, no contexto das artes sonoras, está na sua função de substituição, de representação, de contar uma história com metáforas, efémeras, temporais…

 

Epilogo

Esses sons que nos seduzem, música de som, música de imagem, imagem criadora, ideias musicais, memórias, sensações, articulações, composições…

Espaços habitados por sons construídos, universos quase materiais, fumarolas de ideia, etéreos e permanentes, fabricados para o prazer do ouvido, esses sons que nos seduzem e atormentam, esses sons, essa música.

 

Referências

Bayle, François (1989) «Image-of-sound, or i-sound: Metaphor/metaform». Contemporary Music Review, vol. 4, n.º 1 (edição especial: «Music and the Cognitive Sciences». Londres: Routledge, pp. 165-170.

Bayle, François (1988) «L’espace des sons et ses “défauts”», in Jean–Marc Chouvel e Makis Solomos (orgs.), L’Espace: Musique/Philosophie. Paris: L’Harmattan, pp. 366–371.

Bayle, François (2003) François Bayle — L’image de son/Klangbilder: Technique de mon écoute/Technik meines Hörens, org. por Imke Misch e Christoph von Blumröder. Münster: LIT Verlag, 2003.

Bayle, François (1993) Musique acousmatique: propositions… …positions. Paris: INA/Éd. Buchet/Chastel.

Bertrand, Annie e Garnier, Pierre-Henri (2005) Psychologie cognitive, Levallois-Perret: Studyrama, 2005.

Bonnet, Claude, Ghiglione, Rodolphe e Richard, Jean-François (orgs.) (2003) Traité de psychologie cognitive: Perception, action, langage. Paris: Dunod.

Botte, Marie-Claire, Canévet, Georges, Demany, Laurent e Sorin, Christel (1988) Psychoacoustique et perception auditive. Paris: Éditions INSERN.

Bregman. Albert S. (1991) Auditory Scene Analysis: The Perceptual Organization of Sound. Cambridge: The MIT Press.

Chion, Michel (2002) Le Son. Paris: Éditions Nathan.

Granger. Gilles Gaston (2000) «Objet», in Dictionnaire de la Philosophie: Encyclopédie Universalis. Paris: Éditions Alban Michel, pp. 1292–1305.

McAdams, Stephen e Bigand, Emmanuel (1994) Penser les sons: Psychologie cognitive de l’audition, Paris: PUF.

O’Callaghan, Casey (2007) Sounds. Oxford: Oxford University Press.

Pires, Isabel (2007) La notion d’Espace dans la création musicale: Idées, concepts et attributions. Tese de doutoramento. Lille: Atelier National de Reproduction des Thèses.

Pires, Isabel e Bayle, François (2007) «Le son: Une présence venue d’ailleurs», entrevista a François Bayle. Revue DEMéter. Lille: Univ. Lille-3.

 

Notas

1 A percepção de um fenómeno ondulatório de carácter sonoro é feita essencialmente através do sentido da audição, embora a percepção táctil, ou corporal, das vibrações sonoras esteja também presente. Esta percepção corporal é particularmente pertinente em casos de deficiência auditiva pois permite a recepção de sensações vibratórias (de tipo sonoro). Não consideramos aqui a percepção de representações visuais de ondas sonoras do tipo sonograma, espectrograma ou outra, pois essas representações não permitem aceder ao som propriamente dito mas unicamente a informações parcelares sobre algumas características do fenómeno ondulatório.

2 Para aprofundamento destas questões, ver Botte et al., 1988; Pires, 2007; Bregman, 1991; Bonnet et al., 2003.

3 Os sentidos do tacto, do paladar e do olfacto implicam uma relação física, de contacto, entre o objecto gerador do estímulo e o perceptor.

4 Convém esclarecer brevemente o que entendemos aqui como «música de som». Utilizamos a expressão «música de som» por oposição a uma «música de símbolos». Ou seja, referimo-nos especificamente ao som da música, aquele que será percebido pelo ouvido e não às suas representações sob uma qualquer forma visual, seja ela em partitura (tradicional ou de escuta), ou qualquer outro tipo de grafismo.

5 Observações sobre a forma de representar sons curtos ou longos por crianças ou jovens tendem a confirmar esta afirmação. À medida que a idade avança e o raciocínio abstracto se desenvolve, a tendência para a representação de um som longo por uma linha e de um curto por um ponto aumenta.

6 Na cultura ocidental, um movimento sonoro de baixo para cima é, musicalmente pelo menos, usualmente associado a uma variação de alturas do grave ao agudo. A ideia de um som musical que sobe ou que desce traz-nos de imediato a ideia de uma variação de altura.

7 Numa situação de concerto, de música acusmática por exemplo, a nossa percepção recebeu a informação de que as fontes sonoras — altifalantes, têm posições físicas fixas e que qualquer percepção de movimento de um som implica uma simulação e não o movimento real da própria fonte. Esta informação condiciona o sistema cognitivo, levando-o a ignorar o que seria uma interpretação natural e inata do estímulo: a fonte sonora move-se.