Pendulum Music (1968) de Steve Reich1, é uma peça na qual o tempo do relógio é fundamental no desenvolvimento da noção de desaceleração em música. Aí, Reich explora o feedback enquanto mecanismo de produção de som, bem como o movimento e suas implicações musicais. A sua execução tem uma presença muito discreta do intérprete e consiste em colocar quatro altifalantes no chão, virados para cima e, sobre cada um deles, pendurar um microfone. Esses microfones serão puxados, no início, pelos intérpretes, de modo a que balancem, rasando os altifalantes quando por aí passam, produzindo som no momento da aproximação. Com a passagem do tempo, os microfones acabarão por ficar em repouso, por cima dos altifalantes, ouvindo-se continuamente o feedback alimentado pelo som ambiente do espaço. Assim se mostra como o movimento acabará por dar um contributo importante, bem como a ideia de que a ausência de intervenção humana acabará por nos conduzir a uma situação, não de inexistência de som, bem pelo contrário, mas a uma situação de existência permanente desses quatro sons em simultâneo, fruto dos microfones parados, que são afinal o ruído constante da sala, potenciado pela amplificação. Esta particular obra serve também para nos dar o exemplo de como o movimento desempenha um papel particular na articulação da música minimal. Não é de aporia, entropia ou anomalia, mas antes de vitalidade contida na possibilidade da repetição.
«What is essential in repetitive music is that the principle of repetition has shifted to the position of the dominant idea of a work of art. Thus it no longer performs the task assigned to it by the Russian Formalists, that of producing surprise. The crucial artistic device now becomes the slightest change in the redundancy created by repetition.» (Tarasti, 1994: 284)
A repetição não é um fechamento, mas antes uma abertura: pela repetição o ouvinte tem a possibilidade de derivar, interpretar e associar.
Steve Reich, Pendulum Music
Trata-se de um trabalho claramente conceptual, muito devedor dos happenings comuns nalguns meios artísticos da década de 60. Mas esta música serve também para que possamos tirar algumas ilações que vão bem para lá do eventual carácter experimental. Por um lado, o reforço da noção de minimalismo e de repetição em música, temas centrais no trabalho de Reich. Por outro, o modo como o compositor, promovendo uma clara desaceleração levada ao ponto extremo da imobilidade quase total — e dizemos quase total porque, em rigor, o microfone nunca pára totalmente, apenas ficamos com essa impressão a partir de certo momento quando nos parece que ele já não se mexe –, mostra como a desaceleração tem uma dimensão criativa: revelando um conjunto de sonoridades surpreendentes, que o autor considera que desmontam uma visão mais tradicionalista do tempo, da métrica e do ritmo.
É a partir do momento em que o microfone quase pára e deixa visivelmente de balouçar, ficando em frente ao altifalante, que o som se torna mais audível. A ideia de que a ausência de movimento, ao invés do silêncio, é antes um som ininterrupto, um feedback contínuo, alimentado pelo som das coisas, o som do mundo, o som que existe e que se revela no feedback, é interessante para nos mostrar como este processo extremo de desaceleração, ao invés de ir em busca de um silêncio mítico (total), o que faz é conduzir-nos ao som permanente. Atentemos na clarificação interessante de Deleuze e Guattari que nos ajuda a perceber melhor o movimento que aqui está em causa, e também onde é que se encontra a dimensão criativa desse movimento. Para isso importa fazer a destrinça ente movimento e velocidade. Deleuze e Guattari consideram o movimento como sendo o que designa o carácter relativo de um corpo que vai de um ponto A para um ponto B. Enquanto a velocidade se constitui como sendo da dimensão absoluta de um corpo, onde o que conta é esse corpo no seu conjunto por aquilo que ele é e não pela deslocação de um ponto para outro: «Le mouvement est extensif, et la vitesse intensive.» (Deleuze et Guattari, 1980: 473) O movimento é quinético, enquanto a velocidade é analítica:
«La vitesse au contraire constitue le caractère absolu dans corps dont les parties irréductibles (atomes) occupent ou remplissent un espace lisse a la façon d’un tourbillon, avec possibilité de surgir en un point quelconque.» (Deleuze et Guattari, 1980: 473)
Ou seja, mais importante do que aquilo que uma entidade é num determinado momento e contexto, neste caso o som, o que deve ser considerado como mais relevante é aquilo de que ela é capaz, aquilo que ela pode, que ela contém e para onde remete.
Pendulum Music é um caso evidente deste carácter intensivo de que Deleuze e Guattari falam. A intensidade percebe-se no momento em que os microfones repousam e permitem um feedback que é o ruído total, pelo menos daquele contexto. Consideremos ainda que a própria noção de feedback, como o som que se alimenta a si próprio, também é relevante para confirmar esta intensidade, pois só o intensivo é capaz de se alimentar a si. Segundo o esquema de Deleuze e Guattari, é o potencial do som a revelar-se. Se calhar, também foi isso que Reich quis dizer: que aquele ruído é intensivo pois ali está todo o ruído do mundo.
«This ecology of speeds implies that bodies, including collective bodies, are defined not as closed, determinate systems, formed, or identifiable merely by their constituent parts or organs and tending toward rhythmic equilibrium or harmony, but rather by their rhythmic consistency and affective potential.» (Goodman, 2010: 102)
Esta questão da desaceleração foi recorrente em Reich, compositor que avança em 1967 uma proposta para a realização de uma peça a que deu o nome de Slow Motion Sound. Trata-se de uma partitura que contém apenas uma indicação simples: a de se escolher um loop de uma música cuja velocidade de reprodução seria progressivamente desacelerada, a ponto de a percepção do material original já não se verificar de modo algum. Esta indicação apresentava algumas questões técnicas que Reich sugeria deverem ser contornadas para que ela se pudesse concretizar, nomeadamente o facto de, na desaceleração, não se verificar uma alteração da altura e do timbre, proposta que, com os meios técnicos da época era de difícil concretização; sendo este trabalho realizado a partir do registo em fita magnética, esta colocava o problema de, necessariamente, com a desaceleração da velocidade de reprodução estar implicada a redução da altura, tornando o som mais grave e alterando também o seu timbre. Mais recentemente, algumas experiências têm permitido propostas bem mais concludentes, resultando na audição de texturas prolongadas bastante diferentes dos ritmos originais. O que nos importa salientar aqui, mais do que a questão da concretização técnica, é o tipo de resultados implicados numa manipulação deste tipo, tendo como operador fundamental o tempo, nomeadamente a sua desaceleração. Porque o que se verifica é que o resultado obtido acaba por ser surpreendente na medida em que se manifesta num determinado tipo de sonoridades surpreendentes, se considerarmos o material de base.
A própria estética minimalista, no que à composição musical diz respeito, cria um plano de trabalho muito sugestivo deste tipo de manipulações nas quais a questão da desaceleração (ou aceleração) do tempo de execução se pode colocar. Dando os primeiros passos já no pós-Segunda Guerra Mundial, o minimalismo, enquanto movimentação artística, consolida-se sobretudo a partir da década de 60 nos EUA, com algum impacto no Reino Unido também. Artistas como Robert Morris, Frank Stella e Donald Judd, em pintura e escultura, apresentam peças que se caracterizavam por uma ideia de redução, de simplicidade, de eliminação do acessório, com vista à retenção do que seria essencial. Afirmava Leo Steinberg em 1972:
«Its object quality, its blankness and secrecy, its impersonal or industrial look, its simplicity and tendency to project a stark minimum of decisions, its radiance and power and scale — these become recognizable as a kind of content — expressive, comunicative, and eloquent in their own way.” (Steinberg, 1972: 43)
Steve Reich, Pendulum Music
Simultaneamente, sobretudo em Nova Iorque, um conjunto de jovens compositores começa a estabelecer um paralelo entre essa prática das artes plásticas e da música, importando essas noções de simplificação e redução, mas introduzindo um aspecto determinante que viria a ficar umbilicalmente associado à música minimal desde o início: a repetição. A razão começa por ser de ordem prática: reduzir a composição musical a pequenas frases e sequências, procedendo a uma espécie de atomização, conducente à utilização da repetição como o elemento central da música minimal. Procede-se à redução e simplificação através de um trabalho apurado de orquestração, manipulação artificial dos instrumentos ou experiências mais arrojadas de interpretação, restando para a repetição a consequente organização e definição da estrutura musical. Daí o minimalismo musical vir muitas vezes acompanhado da repetição — «música minimal repetitiva», como a partir de certa altura se generaliza.
Ora essas sonoridades com mínimo valor para a música ganharam prestígio e tornaram-se termos semiológicos de uma nova corrente musical: a música minimal repetitiva. O repetitivo é um enunciado de um discurso minimal, porque no repetitivo usamos micro-estruturas sonoras, pequenas melodias, ritmos elementares.» (Barreto, 1990: 37)
A redução de que falamos não era apenas da gramática musical, digamos assim, mas da própria dimensão que o conceito de repetição vinha ganhando, não só nas artes, como em aspectos mais vastos de ordem cultural, como a industrialização, a organização laboral ou o impacto dos mass media na cultura da época, por exemplo: uma evidência e uma presença cada vez mais intrusiva da repetição na vida das pessoas. No que diz respeito ao próprio modelo de estruturação musical que o minimalismo propunha — variação subtil a partir da repetição de sequências mais ou menos complexas — a noção de repetição torna-se de tal modo importante que o minimalismo passa a ser um movimento musical no qual a repetição é considerada em todos os aspectos de todas as formas possíveis. No fluxo de desenvolvimento da peça, alterações muito subtis que iam ocorrendo desempenhavam um papel estrutural na organização dessas peças. «Outro procedimento também empregado por Reich é o da adição e subtracção por superposição; e nesses casos também não existe um modo de antever o futuro, pois ele está submisso às irregularidades próprias da imaginação do compositor.» (Ferraz, 1998: 132) É por isso que no minimalismo, após a audição dos primeiros compassos de qualquer peça, transparece para o ouvinte essa rigidez e rigor. Perceptível até noutro tipo de peças minimalistas de produção electroacústica como It’s Gonna Rain (1965) e Come Out (1966) de Steve Reich, por exemplo, peças em que a manipulação de fita magnética, como metodologia de elaboração, mantém essa determinação de rigor e austeridade, mesmo quando as peças se desenvolvem de modo mais complexo. A abrangente panóplia de formações instrumentais utilizadas pelo minimalismo também não hipoteca essas características.
https://www.youtube.com/watch?v=W8vb4w7Vl3Y
Steve Reich, Come Out
Importa referir que o minimalismo recusa peremptoriamente a noção de que se trata de uma música circular, fechada e monótona — adjectivações que, de modo mais ligeiro, lhe têm sido atribuídas. Ao nível da intenção, o que motiva os minimalistas é a possibilidade de descoberta, a convicção de que se trata do âmbito da genuína criação o trabalho que estão a propor.
«Certainly neither Reich nor Glass now sees his music of the 1970s as “minimal”, nor did downtown New York critics at the time. Both composers had begun self-consciously to experiment with functional harmony, and with a new richness of instrumental resources.» (Fink, 2004: 541)
O minimalismo aposta em ser uma música de diferença.
«As diferenças nascem não da dissemelhança, como no serialismo, mas da sensibilização que se opera ao longo da escuta do objecto repetido. Dando aos seus elementos fundamentais uma maior permanência ao longo do tempo — se bem que uma permanência em constante transformação através de deslocamentos e outros procedimentos –, a música minimal permite e dá tempo ao ouvinte de penetrar o objecto a fim de descobrir suas nuances internas.” (Ferraz, 1998: 35)
Uma repetição afirmativa como a caracteriza Deleuze: só o diferente regressa porque é o diferente que salta fora da memória, da consolidação, da habituação. Deleuze separa a repetição da ordem, centrando-a na repetição ela mesma. Ou seja, não faz sentido justificar a repetição pela sequência em que ela ocorre, porque, para Deleuze, na repetição há sempre diferença, seja qual for a ordenação.
«La frontière, la “différence”, s’est donc singulièrement déplacée: elle n’est plus entre la première fois et les autres, entre le répété et la repetition, mais entre ces types de repetition.» (Deleuze, 1996: 377)
A possibilidade de encontrar diferença no seio dessa repetição vai então caber ao compositor (e ao ouvinte também, mas sobretudo ao compositor porque é a ele que cabe a ordenação dos elementos que irão funcionar entre si). «Tout depend de la distribution des repetitions sous la forme, l’ordre, l’ensemble et la série du temps.» (Deleuze, 1996: 377) Cremos que Deleuze aponta aqui mais uma razão para uma certa austeridade e rigor latentes em todo o minimalismo: eles são condições para que haja um ordenamento, uma forma ao longo da linha do tempo, linha essa na qual o ouvinte vai ser confrontado com essas repetições, ou melhor, com a possibilidade de perceber a diferença nessas repetições. O diferente surge porque se repete; ao repetir-se percebemo-lo como diferente.
«Tanto a repetição que identifica pelas semelhanças superficiais quanto aquela que envolve um certo grau de diferenciação podem ser vistas como repetição e garantem para grande parte dos compositores — e por consequência, dos ouvintes — que uma música se mantenha a mesma ao longo da escuta, do começo ao fim.» (Ferraz, 1998: 24)
Tarasti refere uma hipotética ausência de articulação temporal na música minimal precisamente pelo facto de ela se constituir na repetição do «agora»: «Minimalist works are […] objectifications of series of “now” moments. They represent pure durativity in the sense that they have neither beginning nor end, and, in fact, no temporal articulation.» (Tarasti, 1994: 285) Mas essa ausência aponta para uma valorização do momento musical em detrimento da afirmação de uma dependência desse momento face a algo que lhe seja externo, superior, nomeadamente o passado. Isto é: a consciência de que o modo como o minimalismo lida com a temporalidade é muito particular, sobretudo porque rejeita uma visão textual, narrativa, do desenvolvimento musical, centrando a obra no momento e naquilo que advém pelo facto de esse momento ser repetido, com maior ou menor variação, mas sempre com uma clara afirmação de que é de diferença que se trata.
«A possible explanation for this contradiction is the role repetition plays in minimal music. Due to its repetitive character, minimal music might at the same time deny and put central the notion of temporality.» (Meelberg, 2006: 90)
Por mais presente e evidente que seja a repetição numa obra musical, ela nunca será uma simples ou inócua redundância que nada de produtivo ou interessante possa conter. «Musical repetition implies a halt with regard to the representation of a temporal development, but it does not imply a halt in the representation of movement. Repetition does not give the impression of the music standing still.» (Meelberg, 2006: 90) Movimento que é conceito fundamental quando tratamos de música, mais concretamente de ritmo. «A difference is an event which causes the subject that it affects to evolve.» (Hughes, 2009: 46) E é nessa medida que referimos a noção de intensidade: o minimalismo, através das sua estrutura globalmente assente em processos de repetição, acentua a presença do momento, estabelecendo aí as condições para o desenvolvimento dessa intensividade. Através de uma presença permanente — ou de um retorno frequente — o carácter intensivo revela-se porque somos conduzidos a experimentar a partir desses sons, ideias, sensações ou ligações que, de outro modo não ocorreriam. Mais do que a quebra de uma linearidade mais tradicional do desenvolvimento musical, o que o minimalismo pretende é vincar a importância do momento, acreditando que uma certa fluidez do desenvolvimento linear obstaculiza a percepção integral e completa dos vários momentos que se vão sucedendo. Porque o minimalismo, ao presentificar recorrentemente não está a repetir, com a repetição está a variar, daí a questão da repetição banal não se colocar.
Referências Bibliográficas
Barreto, Jorge Lima (1990) Música Minimal Repetitiva, Lisboa: Litoral.
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix (1980) Mille Plateaux: Capitalisme et Schizophrénie 2, Paris: Les Éditions de Minuit.
Deleuze, Gilles (1996) Différence et Répétition, Paris: PUF.
Ferraz, Sílvio (1998) Música e Repetição, A Diferença na Composição Contemporânea, S. Paulo: Universidade de S. Paulo. (Tese de Doutoramento)
Fink, Robert (2004) «Post-Minimalisms 1970–2000: The Search For a New Mainstream», in N. Cook e Al Pople (orgs.), The Cambridge History of Twentieth Century Music, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 539-556.
Goodman, Steve (2010) Sonic Warfare: Sound, Affect and the Ecology of Fear, Cambridge: MIT Press.
Hughes, Joe (2009) Deleuze’s Difference and Repetition: A User’s Guide, Londres: Continuum.
Meelberg, Vincent (2006) New Sounds, New Stories, Narrativity in Contemporary Music, Leiden: Leiden University Press.
Steinberg, Leo (1972) «Reflections on the State of Criticism», Artforum, Março de 1972, pp.42-43.
Tarasti, Eero (1994) A Theory of Musical Semiotics. Bloomington: Indiana University Press.
Notas
1 Steve Reich (1936), compositor nascido nos EUA. Um dos impulsionadores do movimento minimalista, tem uma obra vasta que vai desde a electroacústica até à composição para conjuntos instrumentais alargados. Apesar de mudanças na sua linguagem ao longo dos tempos, o minimalismo é aspecto dominante em toda a sua produção.