Editorial

O cinema nasceu na passagem para o século XX e por isso foi caracterizado como uma arte que concretizava parte dos anseios, mecanização e velocidade modernas. A observação da sua evolução — desde as primeiras experiências de captação de imagens em movimento, a constituição primitiva de uma linguagem cinematográfica, a que se seguiu um período clássico e moderno — fez com que se apelidasse a sétima arte como um fenómeno de rápida evolução, sobretudo se comparável com a lentidão milenar do teatro, da música ou da pintura. Foi em parte essa rapidez, além de uma falência mediática de um tipo de cinema predominante durante um século (a experiência em sala, com todo o seu aparato de captação e projecção), o que fez com que cedo se falasse em morte do cinema.

Em contracorrente, o aparecimento dos film studies sobretudo a partir dos anos 60, mas também as teorias que viam o cinema como algo que «ameaçava» cinematizar a vida real, contribuíam para pôr em cheque o apressado ocaso da referida arte. Poder-se-ia dizer que a construção de significados pela utilização de imagens em movimento exigia que o cinema saísse desse formato em que se foi cristalizando ao longo do século passado. Surge então o campo do cinema expandido para dar voz a essa mutação mediática que obedecia a uma lógica de fusão do cinema com outras artes e outros formatos de exibição.

O surgimento do digital veio alterar todas as lógicas do cinema, avançando, por exemplo, na distribuição o movimento já começado de uma «domesticação» do cinema pelo vídeo e pelo aparecimento da televisão. Hoje, o surgimento de um fenómeno como o «ensaio audiovisual» parece ser uma das mais recentes heranças dessa mutação digital. Ele contém em si a possibilidade de o comum utilizador das redes digitais aprender a manipular a linguagem cinematográfica, democratizando assim, ainda mais, a mais «democrática e popular» das artes. Além disso, a sua dimensão ensaística convida a continuar uma reflexão sobre (e com) as imagens em movimento, algo que o cinema vem esboçando desde o início com o cinema experimental, ou com experiências mais recentes como as Histoires du Cinema de Jean-Luc Godard.

É portanto neste contexto que este número da revista Interact, que tem por título, «Cinema, Crítica Digital e Ensaio Audiovisual» se insere. Ele procura reflectir até que ponto todo o cinema, enquanto prática criativa, mas também todo o gesto crítico sobre ele, se vem alterando com estes novos objectos, simultaneamente criativos, científicos e críticos. Olhando para o historial da revista Interact podemos notar na sua identidade uma tentativa de aproximação entre a produção de conhecimento científico e as novas tecnologias, nomeadamente trazendo para o interior da academia uma dimensão de prática experimental. É esse o traço também o que vem justificando e caracterizando estes novos objectos audiovisuais. Portanto, torna-se lógica a ligação entre esta reflexão prática, de que este número temático procura lançar mão, e esta sua «casa de abrigo».

Uma vez que está precisamente em causa a mutação dos campos da lógica criativa do cinema mas também da sua reflexão, procuramos neste número ter em equiparação registos audiovisuais e os tradicionais ensaios escritos. Dos primeiros destacamos, na secção «Interfaces», os ensaios audiovisuais de Luís Mendonça «Corpo Quente, Corpo Frio», sobre Eyes Wide Shut de Stanley Kubrick, e de Susana Mouzinho «Leaving the Factory» sobre a relação entre o cinema, a fábrica e o corpo do operário. Ainda teremos dois dos resultados dos alunos do primeiro seminário livre na Universidade Nova de Lisboa sobre ensaio audiovisual. São eles «Descolonizar a Imagem», de Ana Riscado, e «Réplica», de Patrícia Leal.

Na secção «Laboratório» convidámos uma realizadora de cinema, Margarida Leitão, e um crítico de cinema, Ricardo Vieira Lisboa, para produzirem, cada um, um pequeno vídeo sobre o tema do gesto. A comparação do gesto do realizador e do gesto do crítico ficará a cargo da análise textual de uma crítica de cinema do Diário de Notícias, Inês Lourenço. O propósito será o de aproximar (ou separar) a curta-metragem do ensaio, a lógica criativa da lógica ensaística.

Na secção «Ensaios» destacamos três textos. O primeiro sobre o trabalho de um dos mais eminentes vídeo-ensaístas da actualidade, Kevin B. Lee, da autoria do professor de cinema e arquivista-investigador da Cinemateca Portuguesa Tiago Baptista. Também teremos um texto da especialista de teoria da imagem e dos media na Universidade Nova de Lisboa, Maria Teresa Cruz, que passará por uma abordagem mediática e estética ao cinema, por via da relação entre as culturas escritas e audiovisual. Finalmente, Rui Matoso, docente na área das Humanidades da Universidade Lusófona, apresentar-nos-á um texto sobre a noção de «imagem especulativa», a partir dos campos da cibernética e do pós-cinema.

Por último, o número contará ainda com uma entrevista a Catherine Grant, um dos nomes maiores na reflexão e criação de ensaios audiovisuais, assim como uma entrevista a Sybille Krämer, conduzida por Maria Teresa Cruz e Maria Augusta Babo, sobre a iconicidade da escrita.

Deste conjunto de vídeos e textos, que aqui se apresentarão ao longo dos próximos meses, o que se espera é fomentar o debate em torno dos ensaios audiovisuais. Como afectam eles a evolução do cinema? Como se mutará o discurso crítico sobre as imagens em movimento? E finalmente, como desenvolver um novo tipo de pensamento, análise e reflexão que procura cada vez mais usar como matéria-prima para a construção de sentido as imagens em movimento e todas as suas potencialidades inerentes?