Corpo Quente, Corpo Frio

 

 

«A cinefilia não consiste em ver filmes apenas, na penumbra, […] consiste em não falar durante hora e meia, estar obrigado a escutar, a olhar, e durante a hora e meia seguinte recuperar o tempo perdido. E se não há ninguém com quem falar, podemos escrever, o que acaba por ser uma forma de falar. […] Entre o que se alucina, o que se quer ver, o que se vê realmente e o que não se vê, o “jogo” é infinito: é aí que tocamos na parte mais íntima do cinema. Mas é necessário que esse jogo seja dito em algum momento.
Serge Daney

 
Este filme nasce de uma vontade: a de registar uma conversa informal entre amigos que tenha como tema o cinema. Os ensaios, escritos com palavras ou com imagens, são, por norma, exercícios de recolhimento, enformando uma distância prudente — dita «crítica» — sobre os filmes. Mas o cinema não existe apenas — diria que não existe fundamentalmente — no domínio logocrático da escrita. Ele pertence à vida e é matéria da vida. Para um cinéfilo, esta afirmação é ainda mais evidente. Mas por que é que essa conversa rugosa, irregular, «disforme», não pode ou não deve ser registada, sobretudo se nela, tantas vezes, nos baseamos para elaborarmos as mais profundas e elevadas reflexões aquando do recolhimento da escrita ou da montagem? Por que é que esse registo é necessariamente pior do que uma crítica? Porque «ainda não arrumámos as ideias»? Mas elas precisam de ser arrumadas? Afinal, não tem interesse a «desarrumação» que a lembrança dos filmes nos provoca? Para colocar estas e outras questões, eu quis convocar num filme a dimensão mais informal e autêntica da cinefilia. Para tal, parti de uma conversa que tive com a minha amiga Sabrina D. Marques. Dois cinéfilos e amigos de longa data a conversarem. Sobre filmes, claro.

A partir daqui — sabia eu — nasceria o assunto para esta experiência. Dessa conversa apareceria como assunto — estava mesmo certo disso, sublinho — um filme qualquer que eu poderia, mais tarde, de cabeça fria, analisar e pôr em montagem. A conversa descontraída, gravada num bar em Lisboa, teve este resultado: Eyes Wide Shut iria ser o corpus desta experiência, sendo que nesse filme estas duas dimensões — a mais quente e informal, dos corpos, e a mais fria e analítica, da mente — são também postas em jogo.

Este filme é um registo e é uma adaptação. Por um lado, a voz quente é registo de uma conversa intimista, despida de artifícios ou de pompa, entre dois amigos cinéfilos. Por outro lado, a voz fria adapta o sumo (ou devia antes dizer o gin?) reflexivo resultante daquela conversa de bar. Essa troca de impressões «sem guião» serviu, para este montador, de inspiração para uma autópsia analítica realizada sobre o derradeiro filme do mais cerebral dos realizadores, Stanley Kubrick. As duas vozes concorrem uma com a outra, mas também se complementam, isto é, também se enriquecem mutuamente. Não há um discurso correcto apenas. Até porque não há um discurso, mas dois que se entrecruzam.

Este filme não teria sido possível sem a Sabrina, cuja entrega e paciência na execução desta experiência foi total e inexcedível. A pensar no amor cinéfilo entre amigos que fica sempre por registar, em conversas tidas à saída do cinema, à volta da mesa de um café ou no caminho de ida e volta para a Cinemateca; em homenagem a todos aqueles que, a cada momento, e por vezes inadvertidamente, envolvem o cinema na vida, digo: obrigado, Sabrina.