Editorial


Há cerca de dois anos, nada nos fazia prever a transformação forçada que o mundo iria enfrentar e a avalanche de problemas que teríamos de resolver em todos os planos da nossa vida. A crise pandémica e consequentemente social, económica, política e cultural, trouxe a prosperidade tecnológica e a afirmação da digitalização no mundo. Os cenários previstos no imaginário artístico e que só a este universo pertenciam, parecem agora fazer parte da nossa realidade, conduzindo-nos a uma sensação de irrealismo – como se vivêssemos num mundo paralelo.

Na era da ‘sociedade digital de risco’, os conceitos-chave que caracterizam o ambiente social desde o surto da pandemia passaram a ser ‘risco’, ‘medo’, ‘pânico’, ‘crise’ e (falta de) ‘confiança’ (Ward, 2020). O vírus que se propagou imparavelmente pelo mundo inteiro relembra-nos a “temível” descrição de ‘medo líquido’ de Bauman: o inimigo invisível que é “difuso, espalhado, confuso, solto, insuportável, livre, imperceptível” e que “nos assombra sem motivo aparente”, podendo “ser vislumbrado em todos os lugares, mas não se vê em lugar nenhum” (Bauman, 2006)[1]. Ainda, de acordo com a sociedade de risco definida por Beck, os efeitos de diferentes controles e medidas governamentais, que visaram impedir o desenvolvimento da pandemia, tiveram o potencial de colocar em causa os “fundamentos da liberdade e da democracia” (Beck, 2009)[2].

Neste sentido, José Gil afirma que temos vivido uma antivida, pois perdemos parte da nossa linguagem – “o toque e a espontaneidade” (Lucas, 2020). Quer isto dizer que perdemos a liberdade da vida, não só pela imposição do afastamento social, mas também por todas as regras que tivemos o dever de obedecer e que limitaram os nossos movimentos, vontades e opções – limitaram assim a liberdade e colocaram em causa a noção de democracia previamente conhecida.

Enquadrada nos séculos XVIII e XIX e em pleno desenvolvimento industrial, Foucault caracterizou a sociedade da disciplina, identificando o confinamento como a sua técnica principal (Deleuze, 1992, p. 215). A organização do trabalho produtivo e em massa, bem como a vida social dividida entre instituições – como o trabalho, a família ou a escola – identificam os diferentes confinamentos, com regras associadas, cumpridas e consentidas pelo ser humano (idem). Ainda reconhecida pelo mesmo autor “como um futuro próximo”, mas amplamente caracterizada por Deleuze, este modelo social é substituído pela sociedade do controle, onde “nunca se termina nada” (idem, pp. 215 – 216). Assim, ainda no início do século XX, a disciplina e o confinamento são substituídos pelo controle fundamentalmente numérico – passamos a ser o que numericamente produzimos e somos progressivamente identificados e controlados através de um algoritmo (idem, p. 219).

Ora, não estava a pandemia a evidenciar este modelo social? Entre teletrabalho e telescola, numa vida confinada e regulamentada por Estados de Emergência, não estávamos nós em plena sociedade do controle? Não estávamos ainda, numa consentida reconfiguração da técnica de confinamento, durante esse período anuladas no tempo e no espaço, colocando em ênfase os princípios do controle?

O impacto da pandemia foi abrangente e esmagador, causando uma queda grave no crescimento económico (Tidey, 2020). Os sectores culturais e criativos, expostos pelas suas principais vulnerabilidades, como a dependência da proximidade física (Weigel, 2020), – a precariedade dos profissionais e restrições orçamentaisencontraram-se entre os mais atingidos. Além disso, a pandemia também teve profundas consequências negativas no gozo dos direitos económicos, sociais e culturais e trouxe ainda efeitos psicológicos e sociais adversos e significativos (Saladino et al., 2020). A mudança drástica nas rotinas diárias devido às medidas de prevenção (como o distanciamento social e o confinamento), dificuldades financeiras e eventual luto, demonstram um elevado potencial para ameaçar a saúde mental de muitos (Pietrabissa & Simpson, 2020). Neste contexto socioeconómico – agravado pela ansiedade, solidão, falta de empatia e depressão (Pietrabissa & Simpson, 2020) – há fortes motivos para acreditar que indicações de que, devido ao seu poder coeso e transformador, as iniciativas culturais e criativas têm um papel central na recuperação (Sacco & Grossi, 2015).

Por outro lado, apesar dos impactos negativos de curto prazo, a crise da Covid-19 também poderia ter sido percebida como um forte incentivo para acelerar a implementação de adaptações e inovações há muito solicitadas. A revolução digital em curso desde 1980 adquiriu um forte impulso com o confinamento da população. Em apenas algumas semanas, as soluções digitais no contexto corporativo, educativo, artístico, cultural ou governamental foram adoptadas num ritmo nunca antes visto, proporcionando um grande estímulo para a disseminação de abordagens alternativas aplicadas no campo da actividade social e económica (Hantris et al., 2020). Ao oferecer novas actividades e serviços culturais – como visitas a museus online, ou serviços de biblioteca ao domicílio – as cidades europeias também responderam de diversas formas aos impactos culturais adversos da crise actual. Assim, juntamente com a digitalização – um dos principais objectivos transversais da Nova Agenda Europeia para a Cultura – o potencial cultural visa promover “uma vasta gama de actividades culturais de qualidade, que permitam a todos participar, criar”, mas também apresenta desafios e oportunidades substanciais.

Neste sentido, face à fragilidade significativa do sector e à necessidade alarmante de aproveitar a oportunidade para “transformar esta crise num renascimento cultural mundial” (Franceschini in UNESCO, 2020), são várias as questões que estão ainda por responder.

Nessa medida, a presente edição da Interact reuniu investigações teóricas e empíricas nos campos da arte, da comunicação e da tecnologia dentro da temática do medo, da incerteza, do risco e da vulnerabilidade, e apresentou as seguintes seis contribuições:

Caio Kenj: Fragmentos heterotópicos ou uma antiprodução das perspectivas contemporâneas

Na sua contribuição, o fotógrafo Caio Kenji apresentou uma selecção de fotos feitas com o olhar voltado a fragmentos localizados fora de um lugar de normalidade (heterotópicos), distribuídos em quatro grandes temas: descartes (um paralelismo entre o acúmulo obsessivo de objectos e de memórias que trazem a necessidade do descarte, que o fotógrafo mira ao sair do quarto para as ruas); mãos (vistas como um instrumento múltiplo e também uma ponte que liga o mundo material ao inconsciente); animais (uma visão de como, no retorno à rua, o contacto com o inumano é inevitável); e verónicas (contraste entre o conceito de imagem verdadeira e ficção científica, tendo a aparição como ferramenta essencial).

Melissa Pio, Rute Cotrim e Débora Costa e Silva: Música, diferentes acordes para medos semelhantes

Neste artigo, Melissa Pio apontou como a música e o ambiente digital se complementaram no contexto do confinamento, para criar uma válvula de escape e uma forma de conexão no meio do medo e das incertezas daquele momento. Isso é feito através da apresentação de duas canções distintas em conteúdo e em ritmo, mas semelhantes na raiz, uma vez que nasceram das mesmas circunstâncias. Enquanto a portuguesa Rute Cotrim relatou como tinha sido o processo de desenvolvimento, de dentro da sua casa, da música “Human”, que aborda a questão da nossa humanidade diante da aceleração da transformação digital, forçada pela pandemia. A brasileira Débora Costa apresentou o samba “Resistir”, nascido após uma série de lives musicais feitas por ela durante o período de confinamento. Uma forma de lidar e enfrentar o medo instalado na ocasião, o que gerou a gravação da canção em estúdio onde também foi gravado um videoclipe, já após o período de desconfinamento. Histórias paralelas, porém, relacionadas. Diferentes acordes para medos semelhantes.

Caroline Souza: Influência pela confiança

No seu ensaio, Caroline Souza procurou fornecer uma reflexão sobre os conceitos de credibilidade e de líder comunitário aplicados à realidade dos influenciadores digitais. Demonstrando a importância da reputação e visibilidade, a autora procede com uma análise sobre a aplicação destes termos na construção da relevância e da notoriedade.

Alba Vieira: Diário da dança (or)di(n)ária ou A dança da peste.

Por sua vez, Alba Vieira apresentou uma contribuição híbrida, de texto, imagem e vídeo. Enquanto os vídeos nos mostraram cenas fragmentadas do quotidiano da pandemia como representação de memórias remoídas, o artigo escrito explorou a dança e o canto como cura para a terra, o ponto de partida e motivação para a produção do vídeo. Uma prática ancestral, encontrada em diferentes comunidades indígenas brasileiras, mas que podem ser entendidas por não indígenas como terapêuticas.

João Carlos Martins: Palavra, Poder, Metáfora e Medo – Mapeamento dos momentos discursivos presidenciais no intervalo pandémico

O texto do João Carlos Martins parte da análise da produção discursiva do poder, após o aparecimento da COVID-19, com o objectivo de delimitar o seu papel na eclosão e expansão do medo em movimento numa mobilização provocada pela pandemia e potenciada pela digitalização da sociedade. A partir das relevantes comunicações do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, divulgadas entre Março e Dezembro de 2020, investigou-se a noção de discurso como ferramenta de análise, com base nas orientações definidas por Michel Foucault na sua aula seminal em 1970. Noutro eixo teórico, também se revisitou o uso da metáfora da epidemia, recorrendo aos textos de Susan Sontag sobre tuberculose, cancro (1977/8) e sida (1988/9). Revelou-se como as metáforas sobre a COVID-19, geradas num processo discursivo de autoridades políticas e sanitárias, definiram a mesma pela sua invisibilidade inimiga, e como vírus democrático numa militarização linguística da doença. Na sua análise, em vez de meramente descrever estruturas do discurso, o autor procurou explicar essas metáforas em termos das características da interacção social e especialmente da estrutura social (Dijk, 2005, p. 20), bem como aprofundar o conhecimento das relações entre discurso, poder e ideologia (Dijk, 2005, p.9) pela autoridade máxima do Estado português.

Instagram, autorrepresentação e controlo: entrevista a Sofia Caldeira

Sofia Caldeira é investigadora auxiliar de Doutoramento no Laboratório CICANT da Universidade Lusófona de Lisboa, onde desenvolve uma pesquisa, essencialmente, em redes sociais, práticas de autorrepresentação, políticas de representação de género, estética do quotidiano e estudos de media feministas. Nesta entrevista, a investigadora partilhou a sua visão sobre questões actuais da autorrepresentação e controlo no universo digital no contexto pandémico, centrando-se na sua observação principal de que as representações do universo doméstico e as experiências de confinamento demostraram elevada diversidade – quer no conteúdo, quer no grau de esteticização – especialmente quando comparadas com os conteúdos até então dominantes numa rede matricialmente visual, como o Instagram.

Ivone Ferreira: Medo e Publicidade

No seu ensaio, Ivone Ferreira partiu de uma campanha da Direcção Geral de Saúde promovida para o Natal de 2020, para reflectir sobre a eficácia da publicidade que usa o medo como argumento, e apontar questões essenciais para investigação futura na área. A autora verificou que, enquanto no início da pandemia, as autoridades públicas focaram-se nas medidas preventivas (como a lavagem de mãos e distanciamento social), em Dezembro de 2020, a DGS mudou a sua estratégia. Largando a publicidade motivadora, através da demonstração de resultados de diversos comportamentos de risco e colocando como protagonistas da campanha vítimas de várias faixas etárias, a entidade recorreu a uma comunicação de apelo ao medo. Embora a alteração do tom tenha sido objectivamente comprovada, a autora reconheceu a falta de estudos de eficácia sobre esta campanha, considerando o mesmo essencial para futuras investigações.

Considerações finais

Com o passar do tempo, lidando com a situação e normalizando o anormal, ganhámos novos hábitos, gestos e vocabulário. O aparecimento da vacina não só trouxe a esperança do antídoto tão desejado contra o inimigo invisível, mas ao mesmo tempo, gerou novos medos e ansiedades, motivados pela desconfiança num outro desconhecido (Bendau et al., 2021). Tornámo-nos todos cientistas instantâneos para conseguir fazer sentido dos acontecimentos e, de acordo com alguns, cobaias vivas dos cientistas profissionais.

Mesmo assim, no início de 2022, a maioria dos países da União Europeia adoptou medidas no sentido de aliviar as restrições relacionadas com a COVID-19. (https://www.statista.com/statistics/1196071/covid-19-vaccination-rate-in-europe-by-country/).

Em paralelo, no dia 24 de Fevereiro de 2022, a longa cuidada paz do continente europeu foi alvo de ataque, representando uma fonte profunda de ansiedade. As notícias sobre a ofensiva russa iniciada contra a Ucrânia, que chocou o mundo, explodiram na agenda social, eliminando quase todos os registos sobre as preocupações relacionadas com a pandemia por parte dos média. O tom de discurso social cuidadosamente optimista, de repente, tornou-se mais uma vez depressivo, nervoso e militar.

Ficam, assim, por responder as questões mais importantes: Será que a convivência diária com o medo nos últimos anos nos fez mais ou menos tolerantes, preparados ou imunes para esta nova fonte de ansiedade e de incerteza? Será que a guerra sobre o inimigo invisível representado pelo coronavírus está mesmo na sua recta final, e podemos encher os pulmões – e a cabeça – com o ar da segurança e tranquilidade? Ou será que o medo que nos tem feito companhia nos últimos dois longos anos não desaparecerá, mas se transformará num medo de um outro invisível, que é capaz de destruir não só a nossa vida, mas todo o meio envolvente natural e construído, e cujo impacto já foi evidenciado nas páginas mais tristes da história da humanidade? Veremos…

[1] Fear is at its most fearsome when it is diffuse, scattered, unclear, unattached, unanchored, free floating, with no clear address or cause; when it haunts us with no visible rhyme or reason, when the menace we should be afraid of can be glimpsed everywhere but is nowhere to be seen. ‘Fear’ is the name we give to our uncertainty: to our ignorance of the threat and of what is to be done – what can and what can’t be – to stop it in its tracks – or to fight it back if stopping it is beyond our power. (Bauman, 2006, p.2).

[2] However, in a world in which the imagination of the threats posed by civilization is freed from the reins of chance with the aim of prevention and is set upon the deliberate triggering of catastrophes, the foundations of freedom and democracy are in danger of being undermined. (Beck, 2009, p.14)

Referências

Bauman, Z. (2006). Liquid Fear. Cambridge: Polity.

Beck, U. (2009). World at Risk. Cambridge: Polity Press.

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