Música: diferentes acordes para medos semelhantes

Introdução, por Melissa Pio

As crises não são poucas. Além da sanitária, há, simultaneamente, crises políticas, humanitárias e econômicas a nos jogar em um constante estado de inconstância. Incompreensão, incerteza, instabilidade, impossibilidade. São muitos os “in”, que marcaram uma fase que nos levou, de fato, para dentro. Literalmente e figurativamente. De dentro das nossas casas, enquanto a maioria de nós enfrentava a sua primeira pandemia, não foram poucos os que acabaram por também se voltar para dentro de suas próprias mentes, seja em busca de refúgio ou de compreensão.

Era mesmo questão de tempo para as internalizações estourarem a tampa, jorrando para fora através daquilo que ainda nos coloca próximos, mesmo que não fisicamente. A música e o digital, neste sentido, mostram-se semelhantes, assumindo o papel de possível antídoto, conectando novamente o que parecia quebrado. Foi neste contexto, de medo e incertezas, sinônimos segundo Bauman (2006), que Rute e Débora fizeram da produção musical um antídoto.

Apresentamos a seguir, histórias paralelas, porém relacionadas. Uma se passa em Lisboa. A outra no Brasil. De uma, surge a dúvida quanto as diferenças entre os humanos que entraram na pandemia e os que dela sairão. De outra, surgiu um clamor por resistência, num contexto romântico. Uma gravada em casa, em pleno confinamento. A outra gravada em estúdio, quando sair à rua voltou a ser possível. Um indie-rock, um samba. Diferentes acordes para medos semelhantes.

Human, por Rute Cotrim

Esta música começou a ser desenvolvida antes de entrarmos em pandemia, mas foi quando a mesma explodiu que passou a fazer sentido ter alguns ajustes e ser partilhada com uma mensagem mais clara. O processo técnico foi complexo, mas mais simples do que previa. A gravação da guitarra e baixo primeiro, seguindo-se a bateria e, no fim, a voz – tudo saiu mais natural do que pensei inicialmente. Nestes meses em que passámos mais tempo dentro de casa do que fora, não havia melhor altura para falar sobre o sufoco de estar fechado e sobre o medo de sair, principalmente quando se tem o conforto das tecnologias e, em última instância, das redes sociais. São essas as ferramentas que nos possibilitam ter mais informação, mas também nos expõem mais, e que nos fazem muitas vezes colocar uma máscara para procurar uma falsa felicidade maioritariamente efémera. Assim, aquando da escrita da letra, pairou no ar a questão: a transformação digital a que estamos a assistir atualmente deixa-nos ser os humanos que éramos antes? Daí surgiu o tema principal desta música, para que haja uma discussão interna em cada ouvinte sobre se nos estamos a focar na paisagem que interessa. Uma música para pensar que foi, ironicamente, composta e produzida em casa, em frente ao ecrã.

 

Resistir, por Débora Costa

Quando começou a pandemia, o medo de morrer e de perder pessoas queridas tomou conta. A sensação predominante era de que as coisas não iam voltar ao normal. Isso me deu um senso de urgência de querer fazer o que eu mais amava e me arriscar mais. O medo da morte me levou a enfrentar um outro medo, o de me expor. Tinha medo de errar, de passar vergonha, de não agradar.

Então comecei a fazer vídeos cantando, depois passei a fazer lives temáticas – fiz tributos a cantoras como Marisa Monte, Rita Lee e Madonna e também escolhi temas como samba, pop rock dos anos 90/2000, divas internacionais, cantoras brasileiras etc.

E conforme fui produzindo mais vídeos e lives, fui também me sentindo mais à vontade para criar músicas. Em maio de 2020, compus Resistir e, aos poucos, fui tomando coragem de cantar a música em lives, mostrar para amigos até chegar a gravação em um estúdio e o lançamento do single em outubro de 2021.

 

Referências:

Bauman, Z. (2006). Liquid Fear. Cambridge: Polity.