Introdução.
O filósofo francês Jean Baudrillard deixou sua marca pessoal num estilo de linguagem próprio dos assuntos corriqueiros e banais, que, para ele, muitas vezes escondiam uma face profunda propícia para o desenvolvimento de grandes indagações, questionamentos críticos e indignações repulsivas.
Uma das características bem marcantes e pessoais no seu modo de compor ideias e conceitos é, sem dúvida, o uso freqüente dos elementos do fragmento e da alegoria, que, de certa forma, operam como estratégias didáticas para a construção do seu pensamento filosófico anárquico-crítico frente aos fenômenos culturais da contemporaneidade.
Saudado como autor pós-moderno, pós-estruturalista, pós-marxista, niilista e até mesmo como filósofo da negatividade, entre outras designações, Baudrillard se destacou pela originalidade no tratamento de questões contemporâneas de crítica intensa às ideologias hegemônicas e manipuladoras atualmente exercidas por grande parte dos meios tecnológicos de comunicação e informação, tais como: televisão, imprensa escrita e internet.
Influenciado fortemente pela estética da fotografia e pelas ideias de Walter Benjamin e Andy Warhol sobre reprodução técnica das formas cotidianas de arte, Baudrillard emprega o fragmento como recurso estilístico e simbólico da linguagem, e como método de desconstrução da dimensão aurática e epifânica de diversos elementos totalizantes e presentes nas culturas dos media.
Warhol jogou astutamente com os signos imagéticos difundidos na esfera da cultura popular, como as celebridades e as marcas famosas, dando a elas o estatuto de mercadoria facilmente consumível e barateada, como aquelas que ocupam imensas gôndolas de supermercados.
Este insight de Warhol pode ser visto em várias falas de Baudrillard, por exemplo, quando ele menciona, que no campo digital, “não há mais distinção entre homem/máquina: a máquina se situa-se nos dois lados da interface” (Baudrillard: 1999, p. 147). E quando também faz a seguinte indagação: “Quando todos se convertem em atores, não há mais ação, fim da representação. Morte do espectador. Fim da ilusão estética.” (Baudrillard: 1999, p. 147)
Para Baudrillard, o fragmento é um modo perceptivo de captar a singularidade contemporânea do mundo dos media, por isso ele faz o uso de aforismos, emitindo ideias, valores e conceitos que expressam a brevidade do tempo e a circularidade que norteia a descontinuidade, assim como o indeterminado, o imprevisível, e o incontrolável.
Com um olhar atento à convergência dos media eletrônicos, percebe facilmente sua natureza vertiginosa no processo de desmaterialização física irrestrita dos meios convencionais de comunicação e informação, que suscitam para ele novos campos de dominação, controle e domesticação técnicas da consciência humana.
Deste modo, o digital representa, para ele, tanto o anseio de liberdade quanto novas formas de controle e domesticação da mesma liberdade, justamente por se propor a criar modos ilusórios de uma liberdade aparente.
Há no ciberespaço a possibilidade de realmente descobrir alguma coisa? Internet apenas simula um espaço de liberdade e de descoberta. Não oferece, em verdade, mais do que um espaço fragmentado, mas convencional, onde o operador interage com elementos conhecidos, sites estabelecidos, códigos instituídos. Nada existe para além desses parâmetros de busca. Toda pergunta encontra-se atrelada a uma resposta preestabelecida. Encarnamos, ao mesmo tempo, a interrogação automática e a resposta automática da máquina. Codificadores e decodificadores – nosso próprio terminal, nosso próprio correspondente. Eis o êxtase da comunicação.
BAUDRILLARD (1999: p.148)
Deste modo, o desejo inócuo de liberdade autêntica no mundo virtual é desfeito pelo conhecimento amplamente fragmentário do mundo que ele revela a todo o momento, condicionando a percepção ilimitável de expressão da liberdade humana.
E para se opor a um espaço fragmentado nada melhor do que o próprio fragmento como antídoto reflexivo, como num exercício contínuo de metacognição, metacrítica e metaconhecimento pluritransversal, como estratégia de resistência à pura alienação e domesticação do pensamento crítico.
Para Baudrillard, portanto, o fragmento é uma postura libertária num mundo em que se fragmenta a ideia de liberdade, pois para desconstruir os mecanismos de opressão é fundamental compreender tais mecanismos, em sua real natureza bruta, e empregá-los como fonte de atitude filosófica e estética.
Aliás, a ironia, a desconfiança e o humor sarcástico, beirando ao puro niilismo, são fortes ingredientes constantes na estética do fragmento de Baudrillard, cujo objetivo é desacreditar inteiramente os discursos totalizantes travestidos de verdades inquestionáveis, como aqueles tão presentes atualmente nas formas de ódio irracional e idiotizado que invadem e abastecem, com freqüência, as redes sociais via internet.
Estrategicamente, o fragmento desfaz os nexos das argumentações ingênuas, lançando o olhar investigativo do filósofo em trilhas e bifurcações de um imaginário inusitado.
Pois se, para ele, a técnica da virtualidade tecnológica reacende horizontes de uma nova felicidade humana, é por conta do seu poder inimaginável de subtração do real concreto da experiência humana, “por eliminar sub-repticiamente a referência às coisas” (Baudrillard, 1999, p. 149), lançando o ser humano em um vazio pungente (amargo e doloroso), quando se torna consciente de que tudo que faz é extensão incomensurável do modus operandi automatizado das técnicas.
Ou seja, nesse campo da fragmentação ostensiva, o sujeito não é sujeito de suas ações, é apenas mero coadjuvante (fragmento do sistema maquínico), com ilusão ingênua de poder de ação, servindo somente como instrumento de objetificação/coisificação técnica (transformado em objeto, produto, mercadoria, sem essência de dignidade).
Além disso, o fragmento desfaz todo o caráter grotesco intrínseco da banalidade cotidiana de como os fatos são doravante apresentados, se tornando elementos entorpecedores de sentidos humanos, tais como: dor, sofrimento, empatia, solidariedade, coletivismo.
Estética e filosoficamente, o fragmento opera como um antídoto à ausência da expressão do pensamento crítico, pois sua ambigüidade e dualidade o tornam um campo frutífero para o cultivo do mistério, da opacidade e da incompletude do pensamento, que pode sofrer inúmeras atualizações a cada momento, tendo em vista que a percepção dos fenômenos observados venha a se amplificar.
Fragmentos e Estética Fotográfica.
Para Baudrillard, as imagens cotidianas possuem um caráter sedutor, e a fotografia representa o aparato técnico da instantaneidade, roubando muitas vezes um momento do nada, de ausência de sentido, e daquilo que pode não ser real, mas que pode vir a ser pela decodificação simulácrica.
O conhecimento geral da imagem não é o que interessa, mas o contrário disso, o não conhecimento, ou a ausência de conhecimento que a imagem é capaz de revelar por ser puro fragmento de alguma situação, lugar, ocasião, que emerge como acontecimento de relevância e pertinência num olhar fotográfico reconfigurador de nuances obscuras.
Não é a verdade querendo se explicitar pelo uso estratégico de uma imagem que importa aos olhos de Baudrillard. Pelo contrário, é a sua inteira dissolução opaca em inúmeros estilhaços sem aparente conexão, como no processo das imagens roubadas, aleatoriamente, do cotidiano, provindas de um pequeno instante simplório.
Também não é o que espectador tem a dizer das imagens, previamente decodificadas, por contextos de sentidos e de referências luminescentes e doravante inquestionáveis. É justamente o oposto de toda essa relação unilateral entre sujeito e objeto, para dar corpo então ao que as imagens têm a dizer do seu observador/espectador/leitor/intérprete.
Portanto, ele procura, filosoficamente, reverter o processo que nutre a relação sujeito-observador e objeto-observado que faz parte do campo de análise semiótica da imagem e da fotografia.
Não é mais o olhar de quem vê que interessa, mas o campo de visão para o qual o espectro da imagem se direciona de forma a captar a realidade profunda que a permeia. Ou seja, um poder de subversão que o filósofo lança sobre as imagens que incansavelmente invadem todos os lugares e poluem os olhares, sem qualquer referência explícita de correlação.
Por isso, Baudrillard agencia o poder mítico indestrutível do simbólico com o objetivo de penetrar a superfície impermeável dos jogos de códigos que invadem a comunicação cotidiana.
Neste tocante, as metáforas e alegorias aderem como signos intuitivos nômades, na busca por se substanciar um pensamento dinâmico, móvel e autônomo, que envereda por todas as vertentes do conhecimento, ilimitadamente, sem exceção e trégua: percorrendo campos elucidativos de todas as ciências e humanidades imagináveis, a partir da criação de vínculos perceptivos inusitados.
Seu intuito não é ter a pretensão de constituir um olhar especializado e finalista da realidade observada, mas engendrar visões pelas quais seja possível fazer facilmente circular, fluir, transitar e migrar conhecimentos de um espaço de relação para outro qualquer, com livre-arbítrio interpretativo e conceitual.
As metáforas e alegorias concebem uma circularidade infinita e transmutável entre ideias, conceitos, valores e conhecimentos. São também elementos estilísticos constituintes do pensamento fractal do autor, que se propõe desenhar esboços inacabados, intuir impressões imprecisas, escavar silêncios incomunicáveis e desvendar ruídos entorpecentes.
Além disso, a estética do fragmento de Baudrillard tem teor experimentalista, em termos de linguagem, concebendo neologismos e se interrogando sobre fenômenos incompreensíveis, a partir do engenho criador de uma prosa especulativa, cujo objetivo é resistir inelutavelmente contra o discurso da homogeneidade, da padronização, da pasteurização, clicherização, e, sobretudo, da indiferença.
Outro recurso estilístico empregado como efeito especial de linguagem são os seus aforismos, ou seja, fragmentos textuais (textos curtos) que têm uma máxima de fundo moralizante enquanto princípio de correção de condutas questionáveis.
São também fragmentos de teor filosófico, expressos de modo assistemático, caótico, sem o estabelecimento de regras fixas e dogmáticas na condução do pensamento, e que trabalham com o levantamento de hipóteses.
Baudrillard procura utilizar os aforismos como método desconstrutivo das verdades presunçosamente eternas, lançando a elas o olhar cruel de uma condição de suposta efemeridade, muitas vezes traduzido como negatividade ou niilismo pungente.
No livro Fragments (BAUDRILLARD: 2004), um compêndio de entrevistas do filósofo, são mostradas várias perspectivas de como os fragmentos espelham a configuração de sua prosa multirreferencial, com diversos papéis de criticidade, que norteiam a construção do seu pensamento filosófico original.
Dentro dessa ótica de pensamento filosófico, os fragmentos podem assumir várias conotações de sentidos: fragmentos intempestivos, ativistas, aforistas, fractais, antropológicos, fatalistas, viróticos, além de fragmentos inteiramente fragmentados.
Cada estilo fragmentário do seu texto demonstra seus anseios como pensador: engajamento político, humor sarcástico, indignação, preocupações estéticas e filosóficas, preocupações com a condição humana e com o futuro da humanidade.
Fragmentos e Metáforas Cotidianas.
No livro Tela Total: Mito-ironias da Era Virtual e da Imagem, ele lança mão do seu niilismo irônico, cheio de metáforas cotidianas, com o intuito de sintetizar um olhar sobre os vários fenômenos culturais em cena.
As metáforas são parte de uma estratégia de desfazimento da banalidade das imagens que invadem os media eletrônicos incansavelmente, o que, para ele, é a encarnação do vazio imediato e mediático.
Assim, ele expõe diversas metáforas que irão compor a estrutura conceitual dos seus fragmentos, tais como: vírus, fantasma, ectoplasma, faxina, ilhas, sombras, espelhos, esponjas, doença da vaca louca, clones, universo paralelo, Big Brother, reality show, meteoro, sexualidade, impotência sexual, pornografia, Disneylândia, doenças contagiosas, epidemias, pandemias etc.
Eis alguns trechos com fragmentos metafóricos de Baudrillard:
A vaca louca é uma encarnação da vaca sagrada sob a forma de vaca variada. Contrariamente ao exemplo da Índia, onde o animal sagrado divide com o homem doenças infecciosas, num modo endêmico, o bovídeo, condenado à carnificina do açougue, vinga-se passando do estágio endêmico ao estágio pandêmico.
(BAUDRILLARD: 1999, p.148)
O vírus biológico “sabe” de algum modo que pode se aproveitar do vírus técnico da informática e do vírus mental do embrutecimento para desenvolver-se e explorar ao máximo a sua revanche.
(BAUDRILLARD: 1999, p.148)
Assim, ele sai do senso comum, apontando elucidações filosoficamente impensadas, com efeito indagativo devastador, em que o fragmento torna-se elemento poroso e ácido frente ao simbólico das aparências e ilusões dos discursos mediáticos.
Segundo Sandford (2016), Freud descreve a inter-relação entre sonho e inconsciente como algo fragmentário e incompreensível em contexto isolado, vindo a adquirir uma dimensão de completude ampla quando compreendida como totalidade onírica.
Portanto, a aparência delirante do sonho falseia o seu sentido mítico, obscuro, sombrio e misterioso, muito explorado por Baudrillard, em seus fragmentos alegóricos, como enigmas de oráculos, profecias e gnoses distópicas.
Segundo Baudrillard (1991, p.197), a cena dialética e crítica se esvaziou com a expansão das aparências, as quais passaram a adquirir valor institucionalizado. E as estratégias de sedução tornaram-se cada vez mais usadas para alimentar a proliferação de aparências atraentes no mundo contemporâneo.
Baudrillard se define como niilista, compreendendo o papel do pensador niilista como um de destruir as aparências em benefício do sentido, isto é: o campo da representação, a história, a crítica, o mítico, a estética, a ética etc. (BAUDRILLARD, 1991, p. 197)
Fragmento: Modelo ou Contra-Modelo Perceptivo?
Segundo o próprio filósofo (1997), o exercício contínuo de uma escrita fragmentária é a planificação de uma escrita também de teor democrático, pois cada fragmento textual criado constitui um itinerário perceptivo próprio de cada realidade criticamente exposta.
A autonomia libertária do autor pode ser vista em todo o seu esforço intelectual para responder ao desafio proposto pela estética da escrita fragmentária, que torna todos os assuntos igualmente valiosos na dimensão do pensamento crítico.
Dentro da sua estética do fragmento, cada linha pode ser vista como a profundidade de um parágrafo, cada parágrafo com a profundidade de uma página inteira, cada página vista como o teor de um capítulo, e cada capítulo contendo um livro. E, a partir desta estética filosófica radical, o fragmento torna-se um ponto de contato com qualquer coisa, qualquer assunto do mundo do conhecimento, sem barreiras epistemológicas intransponíveis.
Pois, para Baudrillard, mais vale a densidade elíptica do fragmento do que a linha reta do texto objetivo, que é direto e linear. Suas metáforas, alegorias e aforismos operam como a quinta essência na sua escrita especulativa e no seu experimentalismo filosófico.
Mistério, opacidade, paradoxo, sagrado, profano, transcendência, imanência, circularidade e fractalidade são alguns dos conceitos que nutrem o engenho criativo do filósofo, em sua aventura por decifrar códigos secretos da comunicação e da incomunicabilidade nos tempos da hiperconectividade digital.
Bibliografia.
BAUDRILLARD, Jean (2004), Fragments, translated by Chris Turner, New York, NY, Routledge.
BAUDRILLARD, Jean (1999), Tela Total: Mito-ironias da Era do Virtual e da Imagem, trad. Juremir Machado da Silva, Porto Alegre, Sulina.
BAUDRILLARD, Jean (1997), Fragments: Cool Memories III, 1991-1995, London.
SANDFORD, Stella (2016), “Fragments of a Dream: Freud, Transdisciplinarity and Early German Romanticism”, Online in: https://www.radicalphilosophyarchive.com/issue-files/rp198_dossier_sandford_dream.pdf, acesso em: 25/08/2020.
SMITH, G. Richard (2010), The Baudrillard Dictionary, Edinburg, Edinburg University Press.