Fragmentos heterotópicos ou uma antiprodução das perspectivas contemporâneas

Descartes (não o filósofo)

Entre os esquecimentos propositais do olhar e os cantos escuros e esquinas empoeiradas, queremos recordar com clareza mesmo que jazidos em ciscos e misturados ao caos externo (e extremo). Algumas imagens grudam e se repetem, em diferentes terrenos discursivos, separá-las não parece uma direção, como separar os utensílios da cerimônia do chá. O sentido não se apresenta sem a conexão dos objetos, suas forças e linhas.

A mira está para as rachaduras, não só a mira, os dedos também apontam para as rachaduras e tentam adentrar, tanto para levar os dedos para esse espaço desconhecido, quanto para trazer mais uma fresta de luz para dentro desses buracos, num ímpeto flâneur de uma criança num conto dos irmãos Grimm. Já estamos cansados de falar sobre o “mundano”, “banal”, “real” ou “virtual” separados ou grudados com cola-de-sapateiro de má qualidade e injetada de maneira displicente e com os sentidos ansiosos pelo movimento dos ponteiros do relógio da parede descascada. Nesses espaços, os ruídos são lei. Tic-Tac.

Reencontro em ruas quaisquer, memórias de infância, descartes sagrados e profanos, escatologia anotada em marca-páginas, árvores e animais feitos de plástico translúcido, matéria amorfa. Nada mais líquido que o sólido? Tudo é, de certo modo, gasoso, volátil? Besteira.
Movemos as imagens sobre as linhas do tempo, reposicionamos as sequências infinitamente, não como slides, mas como um rolo de filme, sem cortes e sem linearidade (nessa trama nada é linear), ou como tijolos, em que cada configuração nos apresenta uma nova narrativa. Assim, nesse espaço, podemos visualizar um paralelismo entre o acúmulo obsessivo de objetos e de memórias – descartes se tornam necessários – assim como no quarto em que aguardamos as lembranças, precisamos esquecer para prosseguir no caminho.

…talvez por causa do grande retardamento do tempo, saímos de casa e encontramos um mundo que cochila. Não é o mundo dos humanos nem o da natureza que está adormecido – é o mundo inanimado das pedras, dos minerais, dos objetos. O mundo inanimado em botão… com os olhos de câmera lenta da infância, contemplamos sem respirar enquanto esse domínio latente da vida vai revelando aos poucos sua pulsação. (Miller, 2005, 332)

 

Mãos

As mãos medem a distância, mexem no relógio, acenam para um outro, desenham mapas, escondem o rosto, contam as horas, os dias. No campo das artes, seguram pincéis, moldam esculturas, apertam o disparador da câmera, atuam como pés, posam de modelo, misturam tinta. Enfiar os dedos na rachadura para ver mais fundo, numa tentativa de abrir conexões, iluminar o tato, desfazer um espaço desconhecido e remontá-lo de forma familiar.

Pela noite elas se tornam os olhos – na cozinha, um termômetro – de volta à rua transformam-se em linguagem, descartam itens obsoletos, e depois voltam para a sua posição e disposição física inicial.

As espirais também estão contidas nas mãos, mais especificamente na ponta dos dedos, impregnados na singularidade das digitais, podendo apontar para o cosmos ou para dentro de nós mesmos, sem distinção, uma ponte que liga o mundo material ao inconsciente.

Animais

Ao caminhar pelas ruas, o contato com o inumano é inevitável. Os cavalos correm ao encontro de nosso inconsciente. Cavalgo as memórias sem separá-las do que vejo. Uso a câmera para afagar os panfletos com imagens de gatos perdidos. Os cachorros latem sem som por detrás das vitrines. Sento e assisto a miríades de outros animais correndo dentro da praça de vidro. Pego o ônibus, vou à praia, no caminho de volta me deparo com um elefante, quatro metros de largura por três de altura, sem profundidade, me assusto, tento não encará-lo, mas, instintivamente, grudo meu olhar no dele, tento me acalmar, visualizar a cena isolando e focando em alguns aspectos, pés brutos, grandes orelhas abertas como asas, pele resistente e craquelada, flores roxas, grama bem verde, tromba imponente, presas cruéis, cola, junções, remendo, dois colorbar, um de cada lado do elefante, fico tranquilo.

Inanimados, eles se movem então em outros lugares, campos transcendentais cujas imponências tentam se fazer presentes graficamente, signos em objetos utilitários, decoração do nada. Adornos para “sínteses conectivas”, nos termos de Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo, ao mesmo tempo produção e produto. A “produção de produção” (2010, 17), incessante invenção, movimentos contra-estanques, uma antiprodução produtora disparada pela arte.

Verônicas

A ficção científica, por contraste, “se revela como um escândalo, um arrebatamento, uma quase insuportável e inesperada irrupção no mundo real”. Além disso, a aparição é a ferramenta essencial da ficção científica; é o que não pode ocorrer e, no entanto, é produzido, em um ponto e um momento preciso, no coração de um universo perfeitamente sondado, do qual se acreditava que o mistério havia sido banido para sempre. (Ghirri, 2012, 186, tradução minha)

Veronica, do grego Berenike, “imagem verdadeira”. Veronica – Vera – verdadeiro / Icona – ícone Acheiropoieta (grego bizantino: αχειροποίητα – “não feitos pelas mãos”; Singular: acheiropoieton) são um tipo particular de ícones que acredita-se terem sido criados de forma milagrosa e não pelas mãos humanas. Invariavelmente, trata-se de imagens de Jesus ou da Virgem Maria.

Crê-se que Verônica teria com um véu limpado o rosto de Jesus ao longo do caminho para o Calvário, onde ele foi crucificado. Nesse véu teria ficado impressa a representação do rosto de Jesus. Nenhuma referência à Verônica e seu véu é encontrada nos evangelhos canônicos, as lendas apenas se cruzam na “Bíblia em Francês” de Roger d’Argentuil no século XIII. Esse pedaço de tecido ficou em Roma durante períodos entre o século XIII ao XV. Após o grande saque a Roma de 1527, surgiram diversas histórias, onde o véu teria sido destruído, permanecido em Roma ou também passado por diversas mãos. Em 1999, o professor jesuíta alemão, Heinnrich Pfeiffer, professor de História da Arte na Universidade Pontifícia Gregoriana, anunciou em uma coletiva de imprensa ter achado o véu em Manoppello na Itália. Segundo a tradição local, o pedaço de tecido teria chegado à cidade pelas mãos de um peregrino em 1506, depois disso também teria sido roubado novamente e depois vendido.

“Qual peregrino a nós vindo pra ver,
Talvez da Croácia, a Verônica nossa,
que, por sua antiga fome, ainda a rever
resta, insaciado, e um mudo apelo esboça:
‘Senhor meu Jesus Cristo, Deus veraz,
então foi essa a aparência vossa?’
assim eu me sentia, frete à vivaz
benevolência deste que, no mundo,
cismando, já gozara dessa paz.”
(Alighieri, 2009, 103/110)

O Véu de Manoppello é um ícone do rosto de Cristo (Santo Rosto). Sua característica particular é ser semitransparente. A face é visível em ambos os lados (frente e verso) e, dependendo das condições de iluminação e observação, apresenta algumas diferenças nos detalhes anatômicos. Uma análise deste ícone permitiu-nos esclarecer alguns aspectos do possível mecanismo físico subjacente ao seu comportamento óptico incomum. É um tecido de fibra de linho constituído por fios muito finos com espessura de cerca de 0,1 mm, separados por distâncias até o dobro da espessura dos fios, de modo que cerca de 42% do Véu é espaço vazio. As fibras que constituem os fios de linho podem ter sido cimentadas por uma substância orgânica de composição química semelhante à celulose, presumivelmente amido, eliminando o ar entre elas. Tal estrutura faz com que o comportamento óptico do meio seja intermediário entre os de um meio translúcido (fios finos de linho cimentados) e um transparente (espaço vazio entre os fios).
(De Caro, 2018, tradução minha)

Referências

Alighieri, D. (2009). A Divina Comédia (I. E. Mauro, Trad.). São Paulo: Editora 34.
De Caro, L. (2018, October 25). Imaging Analysis and Digital Restoration of the Holy Face of Manoppello – Part I. Retrieved February 10, 2022, from Heritage Journal:  HYPERLINK “https://www.mdpi.com/2571-9408/1/2/19/htm” \l “B7-heritage-01-00019″https://www.mdpi.com/2571-9408/1/2/19/htm#B7-heritage-01-00019.
Deleuze, G. e Guattari, F. (2010). O Anti-Édipo (L. B. L. Orlandi, Trad.). São Paulo: Editora 34.
Ghirri, L. (2012). The Complete Essays (1973-1991). Londres: Mackbooks.
Miller, H. (2005). Plexus (S. Flaksman, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.