Em certa medida, há diversos modos inventivos e surpreendentes de se narrar histórias (histories) ou mesmo estórias (stories), para se utilizar a distinção designativa em inglês no que se refere, em primeira instância, à investigação e ao estudo de fatos e acontecimentos realizados no passado da humanidade e, em segunda instância, ao poder do engenho criativo do ser humano de comunicar seus pensamentos, valores, crenças e sensações pessoais.
No primeiro caso, figura o olhar racional do cientista que observa atentamente o fenômeno de interesse, para então registrá-lo, procurando, no entanto, não se envolver com aquilo que observa, embora saibamos que muitas vezes isto não se torne possível, de fato. Já no segundo, vislumbra-se a liberdade expressiva do escritor (artista) no uso desprendido da linguagem bem como a licença poética de como o tema é apresentado, sem a necessidade do rigor excessivo da razão instrumental, ou mesmo muitas vezes, até se opondo a ele, em detrimento de se questionar seu uso diante da força expressiva do interior humano insondável.
Neste contexto, obras literárias instigantes como Cloud Atlas [A Viagem] (2012), de David Mitchell, têm sido recentemente adaptadas ao formato cinematográfico com o objetivo de entrelaçar discussões em torno de temas de significado profundo no campo da história, ciência, tecnologia, filosofia e valores humanos.
Outro caso interessante de obra cinematográfica ímpar é Prometheus (2012), de Ridley Scott, que não é adaptação de obra literária, de teor científico ficcional, mas sim uma referência a outra produção fílmica do cineasta, realizada bem anteriormente a ela.
O Humano e o Maquínico: Utopias e Distopias.
Nos dois cenários ficcionais, a máquina ocupa um espaço significativo de omnipresença e até mesmo de omnisciência, em que a distinção entre o humano e o tecnológico muitas vezes se dessubstanciam inteiramente, não sendo mais possível se identificar, de modo claro, o que é o humano ou inumano enquanto sua réplica perfeita ou quase que perfeita.
Em Cloud Atlas (2012), duas das seis estórias narradas contêm relações mais explícitas com a tecnologia. Uma das estórias é ambientada no mundo futurista denominado Nova Seul, cujo fato se passa no ano de 2144.
Somni 451, interpretada pela atriz Donna Bae, é uma clone em série que trabalha em rede de fast food, condenada a repetir as mesmas tarefas todos os dias de sua vida, com ar de passividade, abnegação, agindo sempre com gestos bem delicados semelhantes aos de uma boneca ao estilo anime, passando constantemente por constrangimentos e abusos de clientes, sem poder reagir ao fato, por correr o risco de ser desligada do quadro de atendentes. Até que um dia aparece um clone rebelde, Zhou Xun, com quem ela se envolve, despertando nela o sentimento do que é estar realmente viva e, provendo a ela um sentido real para a sua existência a partir da revelação de como a sua classe era tratada, mediante o seu destino final como alimento de outras garotas clones. O que desperta um sentimento de profunda melancolia, compaixão e indignação, no que ela passa a liderar um grupo de clones rebeldes.
A história de Somni 451 demonstra que mesmo em um cenário vivencial de seres manipulados pela técnica, em que figurem como reféns e objetos de extensão do seu poder de controlo, é possível haver mudança no comportamento e na dimensão do seu olhar consciente. No caso de Somni 451, a experiência com a morte é que revela outro significado relevante para a vida, pois é sintomática de angústia, perplexidade e inquietude, no que nos lembra os apontamentos de Heidegger (1993) acerca do Ser-para-a-morte, em que, para ele, a morte é a consciência da finitude do ser, sendo uma experiência e saber que podem enriquecer o sentido do Ser-para-a-vida.
Outra história de Cloud Atlas, associada à personagem Somni 451, mas não muito clara aparentemente, trata de um período pós-apocalíptico, vivido na ilha do Hawaii. Zachry, o personagem de Tom Hanks, é o líder de uma tribo que venera Somni como sua deusa protetora. No entanto, Meronym (Halle Berry), a estranha de um grupo tecnologicamente evoluído, denominado de prescientes (clarividentes, prudentes, feiticeiros), ajuda-o a investigar o templo de Somni em busca da verdade.
Há dois contrapontos curiosos nestas duas histórias interconectadas. A história de Somni 451 remonta a um futuro tecnológico inteiramente desumanizado, em que a tecnologia se torna apenas um dado comum na vida quotidiana das pessoas. A história de Zachry permeia um futuro sem o conforto da tecnologia, de vida simples, mas que também tem seus sinais de forte barbárie. Os prescientes representam aqueles que simbolicamente podem recompor o elo perdido entre a técnica e a magia, e entre a razão e a sensibilidade e o regresso à humanização.
De um ponto de vista estético, Prometheus (2012) representa um metafilme explicativo das raízes originais do cenário histórico do filme Alien [O Oitavo Passageiro] (1979), dirigido por Ridley Scott há 37 anos, recriando minuciosamente cada detalhe do ambiente de gestação da criatura temerosa do cinema de ficção científica e terror, focando passo a passo os objetos figurativos em cena bem como as ações humanas predecessoras, que desencadeiam sua efetiva emergência como ser vivente aterrador.
A narrativa fílmica de Prometheus procura decifrar, continuamente, a relação íntima entre a origem da criação do alienígena voraz, sem sentimentos de piedade, cujo instinto é apenas sobreviver, bem como da espécie humana, dentro do espectro existencial que inter-relaciona vida e morte, num eterno retorno confluente.
A cena introdutória do filme mostra, a princípio, um ritual de sacrifício e morte em que um ser alienígena ingere algo misterioso que o esfacela inteiramente, cujos pedaços caem mergulhados na água de um rio, dando origem ao ADN da espécie humana. Milhões de anos após este fato, dois cientistas idealistas encontram uma pintura rupestre que se conecta a outras investigadas, e que pode ser interpretada como um argumento explicativo da origem do ser humano vinculada a seres de outro planeta, os quais são gentilmente apelidados de engenheiros, ou seja, os verdadeiros projetores da espécie humana.
Etimologicamente, o termo engenheiro provém do latim «ingeniu», significando gênio, talento, engenho, ou seja, se refere à capacidade mental inventiva do homem, a qual se traduz pela sua competência para desenvolver ferramentas e objetos utilitários, bem como a habilidade de resolver problemas tecnológicos, de fundo prático e bastante complexos. Não obstante, também se refere à técnica de transformar a natureza, de modo planejado, para fins socioeconômicos.
No entanto, o que se revela durante a trama de Prometheus é justamente a incoerência entre o papel atribuído pelos cientistas, de modo ingênuo, aos chamados engenheiros e, a sua finalidade objetiva, que jamais fora a de criação da vida humana, a qual teria acontecido como fruto de um experimento fatal indesejável, produzida por mero acaso.
Prometheus, no filme, refere-se à nave de expedição científica, financiada por uma grande empresa corporativa, cujo objetivo, a princípio, é o de investigar a origem do ser humano, na busca das respostas às questões filosóficas essenciais em relação à nossa existência: «De onde viemos? Qual o nosso propósito? O que acontece quando morremos?». Perguntas estas que acompanham a humanidade desde que o ser humano tomou consciência do seu status quo diferenciado na natureza, mas que apesar de todo o progresso técnico-científico permanecem sem respostas racionalmente convincentes, tornando a investigação pela verdade uma busca contínua e incessante.
A nave Prometheus remete simbolicamente para o mito grego do titã Prometeu que desejou a igualdade entre humanos e deuses e que, por isso, teria sido expulso do Olimpo. Existe, portanto, no filme um tom de conclamação do retorno de Prometeu para este enfrentamento ou reconciliação inevitável, que não apenas é o embate literal entre homens e deuses, mas sobretudo uma alegoria que expressa a tensão permanente entre dogmas científicos e religiosos e entre razão e fé, mas também: entre masculino e feminino, objetividade e subjetividade, técnica e sensibilidade, raciocínio lógico e intuição, mundo sagrado e profano, aparência e essência, desnorteio e lucidez, individualidade e coletivismo, humanidade e desumanização.
Mas Prometeu também traz outro significado embutido em sua ação afirmativa, em relação ao desígnio das ciências e das técnicas, buscando nos seus usos permanentes o senso de indagação acerca da responsabilidade ética perante os seus efeitos e consequências não previstas e desastrosas para a vida em geral.
«Não se pode extinguir a capacidade de antecipar, essa capacidade que os gregos haviam atribuído a Prometeu, o inventor das técnicas, cujo nome significa literalmente aquele que vê por antecipação [Pro-methéus]. É essa capacidade que diminuiu no homem de hoje, que não é mais capaz de antecipar, nem mesmo de imaginar os efeitos últimos do seu fazer. É preciso evitar que a idade da técnica marque este ponto absolutamente novo na história, e talvez irreversível, em que a pergunta não seria mais: “O que nós podemos fazer com a técnica?”, mas, sim: “O que a técnica fará conosco?”.» (Galimberti, 2006, p. 827).
Esta diminuição de consciência crítica apurada pode ser vista a todo o momento em Prometheus, uma vez que o sentido de verdade se modifica a cada desvelamento alethéico, com completa perda de ilusão em uma crença otimista a respeito da origem bem como do destino humano. O que nos leva à necessidade não só de interpretar o conhecimento da existência humana enquanto Dasein heideggeriano (dentro da concepção daquilo que está aí jogado, sem nenhuma redenção), mas sim dentro da necessidade urgente de se compreender algo ainda nebuloso ou pouco compreendido para se abrir ao outro, ao emergente, ao totalmente novo, que tanto pode ser temido e desconfortável como revelar o sentido mais humano do que é ser humano, para intervir em seu destino, de modo criativo.
Isto pode ser verificado no final da história do filme, quando todos morrem, exceto a cientista Elisabeth Shaw, que não deixou de lado suas crenças e valores na ciência e no espírito, ou seja, no visível e no não-visível, portanto, no racional conjugado ao sensível e intuitivo. E também o androide inteiramente lógico e frio, que esteve sempre a serviço do seu criador, sem relutâncias éticas ou morais para atendê-lo prontamente, mas que nutria um senso de admiração descomunal pela cientista, no tocante à sua firmeza de caráter indefensável. Isto retoma ao filme original de Alien, quando também a única sobrevivente é uma mulher, a subtenente Ripley, da nave espacial Nostromo1.
No final da história, a cientista Elisabeth Shaw decide que não quer voltar para casa (Terra), mas sim encontrar o verdadeiro planeta dos alienígenas para «compreender» por que eles desejavam afinal matar a todos, deixando uma mensagem de alerta para quem se aproximasse do planetoide, o ponto de partida para o início da história de Alien (1979).
Por outras palavras, a busca da verdade da existência humana, que norteou toda a constituição da trama, continua em aberto como um mistério insondável e inquietante, cujas respostas estão longe de serem respondidas por qualquer técnica avançada. Em Prometheus, o desenvolvimento da técnica não se mostra suficientemente capaz para ajudar o homem a se comunicar com o outro (os engenheiros alienígenas), muito menos a se proteger do pesadelo de sua ganância. Aliás, é por conta da ingenuidade, da pretensão, arrogância e principalmente da falta de comunicação e compreensão que o homem acaba por gestar o monstro abominável que pode representar a sua possível aniquilação. Alien parece conotar, alegoricamente, o pesadelo tecnológico da incomunicabilidade e incompreensibilidade humanas com suas consequências infindáveis e irreversíveis.
Tempo e Espaço: Modus Pensandi/Modus Sentiendi
Notadamente, a inter-relação tempo-espaço se corporifica de maneiras bem distintas nos enredos que constituem as duas criações fílmicas, isto do ponto de vista da parte constituinte da narrativa, enquanto realidade aparentemente verosímil; e da narração, enquanto objeto de criação do imaginário simbólico, sensível, fantástico e surreal.
Cloud Atlas, por exemplo, dimensiona seis narrativas e/ou narrações, ou seja, mescla elementos históricos coesos do passado, que desembocam no presente atual ou próximo e ao mesmo tempo se refletem num futuro inteiramente ficcional, cada qual apresentada por meio de episódios vivenciais distintos e intercortados, vagamente sem nexo, contudo conectados, em sua essência, por relações causais de tempo e espaço. Neste aspecto, vários atores e atrizes atuam em diversos papéis numa miscelânea de representações de personagens femininas, masculinas, jovens, velhas, heterossexuais, homossexuais, pobres, ricas, brancas, negras, orientais, etc. Ao final do filme, são apresentados todos os atores e atrizes reais em contrapartida com as personagens vividas, com suas vestimentas e truques de maquiagem, deixando claro como nossa percepção nem sempre consegue captar o óbvio diante dos próprios olhos, ou seja, quando ela já parece refém da cegueira da aparente ilusão de realidades forjadas.
Didaticamente, o filme aos poucos vai se desfragmentando numa tentativa de prover substância aos níveis de conexões profundas entre os espaços, tempos e vivências singulares que tem suas ações interrompidas, demonstrando que pequenas ações realizadas ou, mesmo um simples ato, de valor por vezes pouco relevante, podem atravessar séculos e, deslocar-se por espaços longínquos impensáveis, desembocando em efeitos e consequências imprevisíveis, além de inspirar revoluções marcantes.
O título Cloud Atlas, literalmente Atlas das Nuvens, permeia uma dimensão a-espacial e atemporal, somente possível de existir no imaginário sensível do ser humano. É, portanto, por assim dizer, um mapa de cartografia imaginária, inspirado no modelo físico da Teoria das Cordas, que pressupõe a existência de múltiplos universos concomitantes e imperceptíveis, onde poderiam existir mundos paralelos em que os indivíduos poderiam ter réplicas suas vivenciando situações idênticas e/ou distintas. A Teoria das Cordas se espelha na analogia das cordas musicais com suas vibrações sonoras, assim como também se propõe se tornar uma teoria do tudo, ou seja, que permita conectar diversas teorias físico-matemáticas, lembrando-se que no filme, Atlas das Nuvens designa uma suite musical, ou seja, uma composição que reúne um conjunto de movimentos instrumentais dispostos em uma unidade de sentido para que possam ser tocados, de modo ininterrupto. Além disso, Atlas das Nuvens designa também uma metáfora gnóstica e etérea em relação a algo encoberto, opaco, misterioso, oculto, como uma relação de tempo e espaço que, a estarem plenamente sintonizados, pudessem provocar vibrações de sentidos, representando as inúmeras histórias de vidas interconectáveis.
Já a criatura Alien, tanto presente em Alien quanto em Prometheus, pode ser compreendida simbolicamente na relação humana que se estabelece com o estranho ou o estrangeiro (dentro do ideário criado por Albert Camus), assim como com o intruso, o forasteiro (outsider), o indesejado, o incontrolável ou imponderável em sua ação de ser, existir e incomodar. Pressupõe tanto uma alegoria da tentativa de controlo pela técnica como da inevitável perda total de seu controlo. Assim como também a incapacidade humana de se colocar no lugar do outro, de compreendê-lo em sua essência interior.
Em termos de escala de tempo-espaço, Prometheus é a recriação do cenário imaginário predecessor a outra história que havia sido anteriormente narrada — Alien. Isto produz o efeito de uma narrativa dentro de outra narrativa que aponta para o acontecimento do passado.
A Morfogênese do Pensar e do Agir.
Muitas são as ideias e conceitos científicos e filosóficos contemporâneos empregados de modo direto ou indireto nos dois filmes. De certo modo, os dois filmes focalizam a necessidade do aprofundamento de questões no tocante ao modo de agir e de pensar, as quais não poderiam se distanciar dos valores humanos de convivência, coexistência, sabedoria, intuição, coletivismo e solidariedade.
Em Cloud Atlas, por exemplo, é nítida a recorrência à pedagogia do conceito de Gilles Deleuze, quando o autor reforça a ideia substancial de que os conceitos somente deveriam servir o propósito de libertar o pensamento humano, e não ao contrário do que sua função muitas vezes se emprega no tocante à conformidade interpretativa e ao seu condicionamento perceptivo delimitativo, os quais nos impedem de ampliar nosso campo de visão da vida como um todo enredado.
Deste modo, sua metáfora do rizoma para se interpretar o conhecimento da vida e do mundo é pedagogicamente libertária, com potência de individuação e de transcendência subjetiva, pois requer compreender a natureza do conhecimento como uma rede de articulações livres, horizontais, sem hierarquia claramente definida e, do ponto de vista psicanalítico, somente moldada pelo advento da mente humana, por conta de suas necessidades vitais de formalização e abstração.
«A filosofia sempre se ocupou de conceitos, fazer filosofia é tentar criar ou inventar conceitos. Ocorre que os conceitos têm vários aspectos possíveis. Por muito tempo eles foram usados para determinar o que uma coisa é (essência). Nós, ao contrário, nos interessamos pelas circunstâncias de uma coisa: em que casos, onde e quando, como, etc.? Para nós, o conceito deve dizer o acontecimento, e não mais a essência. » (Deleuze, 1992, p. 37 apud Bianco, 2005, p. 5)
Deleuze se rebela, portanto, em relação aos conceitos universais ou às chamadas categorias abstratas e gerais de representação do conhecimento, preferindo inclusive a adoção do termo «noção», por considerá-la mais plástica, móvel e sensível, compreendendo que a representação e a imagem de seu embasamento elucidativo seriam incapazes de pensar a dimensão da diferença, pois condicionaria a percepção livre e selvagem enquanto objeto de temor à tranquilizadora identidade do conceito.
Por isso, ele então propõe que o conceito passe a adquirir feição flexível para expressar as experiências subjetivas do devir em permanente trânsito. E é justamente esta visão que é mencionada em Cloud Atlas, dentro do seu teor de mistura de gêneros literários e cinematográficos, como prosa (romance), poesia (lirismo poético), suspense, ficção científica, terror, drama e ensaio crítico-filosófico, rompendo radicalmente com a visão canônica de análise interpretativa, uma vez que os gêneros transitam e migram, formando uma rede de conexões, onde tudo conecta tudo: espaços, tempos (passado-presente-futuro), personagens, atores, gêneros estéticos, ciência, tecnologia, arte, filosofia, história, geografia, religião, valores humanos etc.
Outro autor relevante para se compreender Cloud Atlas é Jean Baudrillard. Segundo o autor (2013), é necessário reaprendermos a nossa percepção para sabermos como se pensar por meio de fragmentos desconexos, recompondo seus enlaces perdidos, uma vez que esta consciência crítica aguçada nos encaminha para o sentido também de nossa consciência histórica não mais fundamentada em realidades únicas e verdades absolutas.
«Sou um dissidente da verdade. Não creio na ideia de discurso de verdade, de uma realidade única e inquestionável. Desenvolvo uma teoria irônica que tem por fim formular hipóteses. Estas podem ajudar a revelar aspectos impensáveis. Procuro refletir por caminhos oblíquos. Lanço mão de fragmentos, não de textos unificados por uma lógica rigorosa. Nesse raciocínio, o paradoxo é mais importante que o discurso linear. Para simplificar, examino a vida que acontece no momento, como um fotógrafo. Aliás, sou um fotógrafo.»
Em relação ao cinema, Deleuze reforça sempre o seu papel constituidor no processo de construção da acuidade crítica, necessária à libertação do pensamento e à individuação da criticidade frente a um mundo povoado pela técnica em escala global.
«A enciclopédia do mundo e a pedagogia da percepção desmoronam, em favor de uma formação profissional do olho, um mundo de controladores e controlados que se comunicam através da admiração pela técnica, nada além da técnica. Por toda parte a lente de contato. É aqui que seu otimismo crítico se converte em pessimismo crítico. .» (Deleuze, 1992, p. 93 apud Bianco, 2005, p. 3)
Deste modo, para o pensador francês, os atributos da arte e a da filosofia deveriam impregnar todas as práticas de pensamento libertário, genuinamente criador e de resistência às visões ingênuas, manipuladoras e totalitárias.
Segundo Galimberti (2006), a técnica estaria intimamente relacionada à condição do surgimento do homem enquanto ente racional, não sendo a técnica necessariamente criação da inteligência humana, mas sim o elemento de desenvolvimento da própria racionalidade do homem.
Ele também argumenta que, a princípio, não haveria distinção entre natureza e cultura, levando-se em conta que a técnica teria possibilitado a cultura existir, uma vez que seria parte constituinte do homem. Fala também da técnica como uma segunda natureza do homem, que não apenas serve para alavancar a cultura, mas se traduz como própria da cultura. Sendo que sem a técnica, o homem jamais poderia se reconhecer como humano, no sentido de despertar a sua consciência como ser inteligente e racional.
Mas, para o autor (idem), quando a tecnologia sai do controlo do seu criador, para controlá-lo e subordiná-lo, por meio de ideologias, isto pode torná-lo incapaz de reagir, produzindo o que o filósofo define como niilismo passivo, ou seja, um processo de descrença e desencantamento pela técnica e pela cultura, o que torna necessário repensar o papel de reinvenção da técnica para se dar lugar novamente à capacidade de antecipação da realidade, para intervir e transformá-la.
Estas questões são fundamentais de serem pontuadas, pois o universo de muitos filmes de ficção científica tem como pano de fundo indagações a respeito da técnica reinventada para servir a propósitos éticos ser humano.
Notas
1 Nome inspirado no romance homônimo do escritor inglês de origem polonesa Joseph Conrad (1857-1924), publicado em 1904, em que a ação ocorre na cidade latino-americana imaginária de Costaguana, cuja trama resvala sobre a disputa da mineração de prata na região, atraindo indivíduos gananciosos que implantam um regime de sucessivas tiranias, os quais corrompem cidadãos de grande reputação moral. A analogia direta entre o nome do romance e da nave espacial está no fato desta ser uma nave rebocadora de minério, cujos interesses corporativos ocultos da empresa contratadora acabam sendo extrapolados pelo senso obstinado de mercantilização e desrespeito ético à vida humana em vista do proveito lucrativo insaciável, traduzido pela obtenção do alienígena, a qualquer custo, por conta do seu grande potencial como tecnologia de arma bélica supostamente indestrutível.
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