Esteticização do Mecanismo: «Plateau», de Paulo Lisboa

Mestres das máquinas, operadores, inspectores e supervisores – os seres humanos sempre pensaram estar ao comando da técnica – veja-se esta paradigmática «mensagem da indústria para si».

 

Mas da mesma maneira que se encara a técnica como um veículo de auxílio e emancipação, surgem, com a mesma proporção, as reacções mais negativas que, para Gilbert Simondon, mais não são do que produto da imaginação: «In this case, then, once through an imaginative process the machine has become a robot, a duplicate of man, but without interiority, it is quite evidently and inevitably nothing other than a purely mythic and imaginary being.»

A máquina, desde que ocupou o lugar de indivíduo técnico, – um lugar preenchido pelo Homem aquando da era do utensílio – gerou uma profunda desestabilização cultural. Libertar os objectos técnicos do regime de escravatura a que estão submetidos e emancipá-los através de uma real integração na cultura é a proposta de Gilbert Simondon. Uma completa cultura técnica dotar-nos-ia de compreensão para descobrir «como este estranho é na verdade humano» – diz o mecanólogo, acrescentando que é justamente a realidade humana existente na máquina aquilo que está aprisionado e escravizado. No desenlace do Modo de Existência dos Objectos Técnicos esclarece-se que uma tal dialéctica está muito estreitamente vinculada à errada ideia de que a máquina possa de algum modo estar a substituir o homem no processo produtivo.

O objecto técnico deve ser conhecido em si mesmo para que o seu relacionamento ao homem seja válido e constante. Daí a necessidade de uma profunda reforma cultural.

Emancipar e compreender a técnica através da esteticização do mecanismo foi a opção plástica de Paulo Lisboa. O autor propõe-se ser um coordenador e orientar o «tempo» da performance da máquina, estendendo-lhe uma espécie de partitura visual. Mas já lá iremos. Até lá, lembre-se que esta «condução» é Simondon quem a sugere:

«The conductor can direct his musicians only because, like them, and with a similar intensity, he can interpret the piece of music performed; he determines the tempo of their performance, […]. This is how man functions as permanent inventor and coordinator of the machines around him.»

Voltemos ao vídeo de Lisboa. Num primeiro momento vê-se um projector de 16 milímetros e a sua projecção. Poder-se-ia supor estarmos na presença de um filme, realizado ou não pelo artista. Mas não se trata disso. O que corre nos carretos do dispositivo mais não é que uma pinhole em movimento. O autor furou a película com um alfinete, cada frame, e o resto fez a máquina num sopro de luz eléctrica. Lá está, a tal partitura visual de que falámos – estendida pelo artista ao projector para sua interpretação.

A câmara fotográfica, que sempre se voltou para o exterior assimilando o espectro lumínico e tornando-o imagem, volta-se agora para o seu interior.

O acto fotográfico, tal como Philippe Dubois o sintetizou, é uma subtracção do espaço uma vez que o fotógrafo arranca fragmentos ao real. Em «Plateau» deparamo-nos com o inverso. O que interessa arrancar está lá dentro: é o interior da câmara que é capturado para fora. A projecção torna-se, portanto, um quase estudo «anatómico» da máquina, fenomenizados que estão os filamentos em projecção – trémulas vísceras maquínicas. É desta inversão de perspectiva que brota uma imagem-técnica das entranhas do mecanismo. E libertar a máquina do regime de escravatura poderá bem passar por este virar do avesso. Tal como outrora os artistas contribuíram para o avanço da medicina através do desenho anatómico (veja-se o trabalho de António Fernando Cascais sobre a cultura visual da medicina, por exemplo em: http://www.youtube.com/watch?v=UA0fCD7Trxw), a arte poderá igualmente desencadear a tomada de consciência do mecanismo.

Por extensão, pode-se considerar que Paulo Lisboa inverte e desconstrói um certo raciocínio cibernético. Ao contrário de uma caixa negra, em que o seu interior é desconhecido e que se estrutura numa relação de feedback, ou retroacção, o dispositivo apresentado e coordenado por Lisboa é exposto do avesso, ou seja, está aberto. De caixa negra passa-se subtilmente à discursividade de uma camera lucida autonomizada, mantendo-se a mediação – de input e output – onde todos os elementos funcionam em rede como um sistema visual de reconhecimento maquínico.

Com «Plateau», Paulo Lisboa passa por três estágios na sua relação com o dispositivo. É coordenador mas é também um operador ou assistente que a lubrifica. E será, por último, um espectador da projecção.

Sobre a assistência técnica, veja-se o modo de funcionamento do projector Bell and Howell (a partir do minuto 5:00)

A especialização de cada estrutura é uma especialização da unidade positiva, funcional e sintética que se libertou de efeitos secundários que poderiam amortizar o próprio funcionamento. Com Simondon sabemos como o objecto técnico melhora através de uma redistribuição interior em unidades compatíveis, eliminando riscos ou antagonismos existentes na divisão primitiva entre elementos.

Assim, a especialização desejada não é atingida função a função mas sinergia a sinergia, diz Simondon. Ou seja, o que constitui o sistema real num objecto técnico não é o funcionamento individual mas o sinérgico grupo de funções. É por isso que, nessa busca de sinergias, a concretização poderá ser uma vertente da sua simplificação. É aliás o que percebemos com o filme sobre a operação e manutenção do projector.

O objecto técnico concreto é aquele que não está dividido sobre ele mesmo e os efeitos secundários que possam surgir já não deverão comprometer o desempenho global da máquina. No caso vertente, falamos de inovações ou individuações ao nível dos elementos que evitam o sobreaquecimento, que permitam maior precisão na focagem ou na protecção da película. Neste sentido, num objecto técnico concreto como o projector, uma função é alcançada por várias estruturas associadas sinergicamente, enquanto num estádio primitivo e abstracto dos objectos técnicos cada estrutura é designada para cumprir uma função específica e tendencialmente única. Resumindo, e segundo o mecanólogo Simondon, a essência da concretização é a organização de subsistemas funcionais, como a performance mecânica, a eficácia óptica e a perfeição sonora, reunidos num todo único.

Conforme este princípio, poderemos compreender a redistribuição de funções trazida por uma rede. É por este motivo que Simondon assegura que a «concretization of technical objects is conditioned by the narrowing of the gap separating science from technics.»

A partir do «modo de existência dos objectos técnicos» procurou-se uma modificação na perspectiva filosófica sobre as máquinas. Esta integração, tal como a propõe o filósofo francês, que não era possível ao nível dos elementos nem ao nível dos indivíduos, e que é possível ao nível dos conjuntos técnicos, é precursora da sua inclusão na cultura. É que a tecnicidade tende a residir nos conjuntos formados por homens e máquinas. A acção maquínica reúne estruturas heterogéneas e funções por géneros, e o significado é ganho a partir das relações entre as funções específicas que os elementos maquínicos desempenham e o humano como coordenador da acção. É este o caso da instalação de Paulo Lisboa.

Mas acresce mais um dado: não há duas lâmpadas iguais. O filamento da lâmpada é sempre diferente, por mais pequena que essa variação seja. Se a lâmpada fornecida pelo auxiliar Lisboa tivesse sido outra, outra seria a projecção. Mas também não haverá sempre a mesma potência eléctrica, o que altera progressivamente a própria projecção; que será ainda condicionada por infra-aquecimentos, infravibrações, potenciais entropias no sistema – ad infinitum na contigencialidade. Portanto, estamos perante uma produção que está sempre em mutação. E por mais imperceptível que essa inconstância o pareça aos olhos do espectador (a não ser que passasse o dia inteiro em frente à projecção), não o é para a máquina.

Lisboa mostra o modo de existência dos objectos técnicos a partir do seu interior. Mas, para além de condutor e de auxiliar, é também, por fim, um espectador da reverberação técnica da máquina.

Em «Sobre a Tecno-Estética», a sua carta a Jacques Derrida, Gilbert Simondon esclarece que a máquina teria bastado para uma experiência estética. A máquina é autor e dispensa até qualquer filme. Funciona por si mesma e é bela em si mesma. A principal operação envolvida não é a pura contemplação mas sim a acção. É «um prazer de acção» que define a obra.

Simondon propõe-se regenerar a filosofia a partir da máquina e até a experiência estética. Diz haver «um espectro contínuo que liga estética à técnica» uma vez que os objectos técnicos poderão mediar essa experiência. Desta forma, suplantam a própria arte. Sobretudo porque, no seu modo de funcionamento, vão constantemente à natureza – como é o caso da electricidade. É que, por vezes, seguindo o mecanólogo em «tecno-estética», a beleza da natureza, na sua subtileza, apenas será perceptível por meio de objectos técnicos.

Consideramos assim ser possível proceder a um alargamento da tecno-estética simondoniana ao trabalho de Paulo Lisboa: acresce ao movimento mecânico do projector a película furada que revela um belo intrínseco ao dispositivo e que estava oculto. Essa deliberação é a obra de arte.