1.
Andamos a evocar os 50 anos de Maio de 68, por todos considerado como um dos momentos históricos de viragem na arte contemporânea. Claire Bishop1, refere mais dois: 1917, ano da revolução russa; e a queda do comunismo. Cinco anos antes, Charles Esche e Will Bradley2 tinham falado num quarto momento, anterior: 1871, a Comuna de Paris. A diferença de Maio de 68 em relação aos outros momentos é sobretudo esta: em vez de amarrar as artes a prescrições do poder político, lançou pelas ruas a esperança de uma «Imaginação ao poder».
Da explosão que tal slogan transporta e provoca focar-nos-emos nos aspectos artísticos. E neles, na questão da ambiguidade, que as neovanguardas que se seguiram a Maio vieram a valorizar, como era próprio da época barroca que elas recuperavam: a obra teria tanto mais valor quanto maior a sua ambiguidade, quanto maior a diversidade de sentidos que ela permitisse. Não esqueçamos esse ponto de partida.
2.
Nem este ponto de passagem: «tudo o que é sólido se dissolve no ar», eis o programa que, em 1982, Marshall Berman3 repesca do Manifesto Comunista. Os padrões, códigos e regras socais e políticos derretem-se numa modernidade líquida, diz Zygmunt Bauman4: passamos a viver numa inconstância e incerteza em que cada indivíduo ou grupo faz as suas imaginativas escolhas. E não há, segundo Bauman, uma reconstrução de parâmetros «sólidos».
É aí que eu discordo. Temos assistido, justamente no campo das artes, a uma série de padronizações que criam uma agenda para a imaginação. Porquê? Porque é difícil viver à vontade no maelstrom de que Berman fala, encontrar o próprio mundo e a si próprio em perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia, ambiguidade e contradição. Paul Virilio escrevia em 19935: «Já só há representações momentâneas, representações de que as sequências se aceleram sem cessar, a ponto de nos fazerem perder toda a referência sólida.» Só que a realidade líquida (ou a percepção líquida da realidade) parece que nos últimos tempos tem levado a uma necessidade de referentes sólidos. Tudo o que é gasoso se solidifica no tempo; o ar passa rapidamente a líquido e o líquido a sólido: por vezes o ar até se ressublima directamente em sólido.
Tendemos a procurar, como agora se diz, «zonas de conforto», de repaysement que nos salvem das angústias do maelstrom. Por exemplo, na fisicalidade, seja nos diversos cultos do corpo seja nas várias técnicas para viver o aqui e agora. O que se passa com as artes? As teorias, sobretudo as universitárias, sempre procuraram fixar num qualquer sentido estável a polissemia e ambiguidade das criações artísticas. Como alertou Eduardo Lourenço6, «De marajás, os críticos tornaram-se cornacas aflitos pela marcha desordenada do mundo.» Com a agravante de que muitos desses críticos cornacas se foram tornando curadores e programadores, que em muitos casos, independentemente do tamanho, vão treinando e conduzindo os seus elefantes numa agenda que parece ser política, e em que se destacam actualmente três ou quatro grandes temas, como o pós-colonialismo, as questões de género e a ecologia. Como é quase impossível aceder à visibilidade sem passar por esses crivos, e como os poderes municipais e estatais também vão alinhando por essa agenda, os artistas criam obras dentro dela, de modo a obterem fundos e críticas, precariedade oblige. Ou seja, são agora os próprios artistas que reduzem os discursos a monossemias. Em grande parte por culpa do actual sistema de produção e distribuição ou exibição da arte. Valeria a pena fazer um levantamento dos editais dos concursos das várias artes em Portugal, onde se encontra bem explícita a quase obrigatoriedade de seguir uma agenda, algo impensável há uma década. Ao fim de uns poucos anos, já os avaliadores mas também os artistas, os jornalistas e os estudantes olham para as obras ou os projectos em função desses filtros, e se entusiasmam ou não conforme os encontrem mais ou menos evidentes. É claro que sempre houve filtros, movimentos, estilos, escolas: mas trabalhar dentro dos parâmetros do construtivismo ou do simbolismo era seguir princípios criados nas próprias artes (e por vezes bem livres e libertadores, como no movimento dadá).
3.
Telegraficamente, vejamos o verso e o reverso desta situação. O que se ganhou? Muito. Uma saída do torpor, do grand ennui e do elitismo de muitos criadores modernistas; o abandono de jogos puramente formais e desumanizados; a recuperação do sentido e da crítica onde por vezes só existiam sentidos; o resgatar de vozes, histórias e arquivos abafados por contextos e discursos dominantes, relatos de minorias étnicas, sexuais, desastres ecológicos; uma relação com a comunidade; uma ecologia da relação, da colaboração, da participação7; nos melhores casos, tudo isto feito com paixão, ironia, humor, desvio, exagero paródico (nos piores casos, tudo ficando apenas como figuras retóricas para obter financiamentos8).
Filipe Pinto9 aponta certeiramente o problema:
«quando a arte tenta fazer política, as suas manifestações adquirem geralmente um carácter óbvio, ingénuo ou mesmo adolescente, prescritivo ou paternalista, em franca contradição com a intenção de liberdade e libertação – de emancipação e igualdade – que as justificaria a priori. […]
Os discursos que pretendem fazer abrir os olhos, pretendem fazer nascer sujeitos – sujeitos conscientes, que consigam ver a verdade escondida […] –, mas constituem-se, paradoxalmente, como estratégias de sujeição.»
Como escreveu Jacques Rancière em O Mestre Ignorante, «É o explicador que precisa do incapaz e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar qualquer coisa a alguém é, sobretudo, demonstrar-lhe que não a consegue compreender por si próprio.» Assim, é a própria potencialidade subversiva e libertadora da política que é anestesiada, reduzida a polícia. A arte só é realmente política quando, muito mais do que referir eventos ou agendas políticas, tem uma presença alternativa que subverte o nosso modo de ser no mundo. O efeito ideal de uma arte política «é sempre o objecto de uma negociação entre opostos, entre a legibilidade da mensagem que ameaça destruir a forma sensível da arte e a estranheza radical que ameaça destruir qualquer significação política.»10
4.
Se Berman já via uma «diminuição do espectro imaginativo» no modernismo, tanto o da forma pura como o da revolta pura como o da versão pop, mais ainda o espectro se empobrece se seguirmos todos essa agenda. Se deixar de haver confiança na arte, se ela passar a viver vigiada. Torne-se claro que os temas referidos são importantíssimos: o problema é o modo como se constituem em agenda, imposta às práticas artísticas. Não apenas são poucos os temas em que quase todos trabalham (porquê só esses três? Poderíamos referir outros tantos de igual pertinência, a começar pelas desigualdades sociais), como esses temas têm uma existência prévia, não são descobertos ou levantados pelas artes, que passam a ser apenas decorrências deles. Essa arte é, para usar os termos de Almada no Manifesto Anti-Dantas, «UM AUTOMATO QUE DEITA PR’A FÓRA O QUE A GENTE JÁ SABE QUE VAE SAHIR…»
5.
A este respeito, e em contra-corrente, muitos autores podem ser convocados11. O grande Mukarovsky já distinguia entre a «realidade que a obra representa», que se supõe anterior à própria obra, e a realidade a que a obra alude, e que, com a intervenção do leitor, a obra vem instaurar. Wolfgang Iser falava disso com outros termos, representado e figurado: «o horizonte final de um texto não é um horizonte de sentido, mas, sim, um imaginário» — «difuso, proteico, instável e informe, arbitrário e não-fixo, ao contrário do sentido, que se caracteriza pelo seu grau de precisão». Um imaginário cuja distância em relação ao real pode ser encurtada como em certas fases como a que agora atravessamos mas para mais tarde ser de novo distendida.
Heidegger distinguia entre representação e correspondência, Entsprechung, analogia entis. Foucault entre representação e ressemblance, todos preferindo e bem fundamentadamente, nessas dualidades, o pólo que escapasse à mera representação. A metaforicidade como origem maior da linguagem, mais do que a referencialidade, defendia Paul de Man. Sem esquecer a luta de Benjamin (e já de Goethe) contra o símbolo, «coincidência entre sujeito e objecto»: a alegoria benjaminiana é o contrário dessa fusão perfeita, porque há distância entre significante e significado. Pierre Francastel sublinhava a autonomia da linguagem artística, a existência de certas relações de estrutura ou disposição entre o sistema de sinais que representa e o objecto representado. O próprio Adorno sublinhava que, na arte, a relação entre significante e significado não é denotativa nem coerente: é ambígua, enigmática, polissémica, resiste ao sentido em geral e ao sentido ideológico em particular. Em Ibsen ou em Pina Bausch ou em Fernanda Lapa também há questões de género, mas é por não serem lineares que elas são inquietantes.
6.
É curioso que, apesar do anunciado fim das grandes narrativas, tenhamos agora, por todo o lado, narrativas e a propósito de tudo se fale de storytelling. É por um lado o bom sinal de que ganhámos consciência de que tudo é narrativo e de que podemos mudar as nossas narrativas. Qual é o problema? Parece ter-se perdido ou desvalorizado a dimensão ficcional nessas narrativas. Se repararmos, os grandes tópicos das artes são actualmente de historiadores, não de poetas. Pretende-se desenterrar o que a história abafou. Ora, já Aristóteles sabia que historiador e poeta diferem «em que diz um as coisas que sucederam e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular.»12 Lá vai o tempo em que Borges via o mundo como um epifenómeno da literatura, como se nós é que tivéssemos sido sonhados pelas personagens e não elas por nós. Actualmente, é cada vez mais a arte que se arrisca a ser um epifenómeno. Em todas as artes, teatro, cinema, mesmo a literatura, a ficção é uma categoria quase abandonada. «O mundo em que vivemos já não é o da mimesis» – é o «universo da mimesis perdida». A arte «oferecia uma compensação para uma realidade julgada insuficiente, oferece agora realidade em troca do sentimento de irrealidade que a “realidade” em que estamos produz. Escrever consiste em pôr real no lugar em que ele falta, isto é, nas nossas cabeças.»13 Onde fica a tensão, defendida por Stierle, em que o mundo é horizonte da ficção e a ficção é horizonte do mundo enquanto hipótese de um outro mundo?
Há também uma desvalorização do dramático, que passou a espectáculo, e do poético, que é intrigante demais, sem nome, sem classificações. Numa conferência-performance o dramático e o poético são quase sempre reduzidos, porque as cenas de dança ou teatro são amostras que ilustram o discurso ideológico. Desvalorização também do trágico, porque nos exercícios de boa consciência não há lugar para dilemas, nem para contrários que não se resolvam numa resposta já dada, nem para o cepticismo que suspende o juízo. Desvalorização até da emoção, porque, como reconhecia Adorno14 um ano depois do Maio de 68, a arte militante acarreta um endurecimento, «produto da maldição social, forma do protesto solitário», cerebral, sem emoção, e facilmente se transforma «em insensibilidade pura e simples».
7.
Como ultrapassar esta fase, este empobrecimento do espectro imaginativo? Não pelo pensamento dos fracos ou dos que defendem os fracos, mas pelo pensamento fraco, como Gianni Vattimo e Rovatti15, na esteira de Heidegger e Nietzsche, o pensaram: para destronar a estabilidade e a unidade. Pelo gaguejar, defende Deleuze, optando por uma linguagem menor. Evitar a representação, seguindo o caminho aberto por Nietzsche e Kierkegaard. Não usar classificações prévias dos indivíduos, classes ou conflitos, que «já estão normalizados, codificados, institucionalizados. São “produtos”. Já são uma representação, que por isso pode ser representada ainda melhor em cena» ou no papel, num movimento narcísico de reconhecimento. Deleuze pretende «substituir a representação dos conflitos pela presença da variação, enquanto elemento mais activo, mais agressivo»: deixar passar tudo através da variação contínua, como se fosse sobre uma linha de fuga criadora; dar prioridade à diferença, ao processo, ao devir, ao tornar-se16.
Deleuze considera que é precisamente essa diferença, essa variação ou movimento perpétuos que nos põem em contacto com o real. Também no pensamento fraco de Vattimo, que vale a pena comparar com essa linguagem menor de Deleuze17, o Ser surge como movimento, envio, invio, che si mette in strada e si manda. Cito: «A oscilação e o dépaysement; são esses os únicos meios pelos quais a arte, no mundo da comunicação generalizada, pode (não ainda, mas talvez enfim) instituir-se enquanto criatividade e liberdade.»18
8.
É fundamental a arte poder recuperar a possibilidade de não olhar para onde todos a mandam olhar, a capacidade de interromper o discurso, a liberdade de escolher ser potência mas também impotência, a perversão, o uso diferente do que era suposto e pressuposto, a relação entre o não e o sim, o cepticismo que suspende o juízo. As falhas por onde a luz entra. A relação com o transcendente, também. E a capacidade de «Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.»19
Tenhamos a coragem de voltar ao maelstrom, apesar das incertezas e angústias. «As más notícias são que estamos a cair pelo ar, não há nada a que nos agarrarmos, nem paraquedas. As boas notícias são que não há chão.» (Chögyam Trungpa Rinpoche)
Não é fácil, não é evidente, não é estável, mas é assim que a poiesis vive. Como A. R. Ammons20:
«I speak, though, in a way,
the best I can,
for I may be understood
where I do not understand.»
Notas
1 Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship, Londres: Verso, 2012.
2 Will Bradley e Charles Esche (orgs.), Art and Social Change: A Critical Reader, Londres: Tate-Afterall, 2007.
3 Tudo o que é Sólido se Dissolve no Ar, Lisboa: Edições 70, 1989.
4 Modernidade Líquida, Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
5 L’espace Critique, Paris: Seuil, 1993, p. 132.
6 O Canto do Signo: Existência e Literatura, Lisboa: Presença, 1994, pp. 15-22.
7 Cf. Nicolas Bourriaud, Relational Aesthetics, Dijon: Les Presses du Réel, 2002 (ed. or: 1998).
8 Cf. por exemplo Fernanda Maio, A Encenação da Arte, Leiria: Textiverso, 2011.
9 Trabalho do seminário «As Artes da Cena Contemporânea», NONA FCSH e Filipe Pinto, http://wrongwrong.net/artigo/2-poesia-e-simultaneidade.
10 Jacques Rancière, O Mestre Ignorante: Cinco Lições sobre a Emancipação Intelectual, Ramada: Edições Pedagogo, 2010, pp. 78-79.
11 Para não sobrecarregar este texto de citações, remeto esta secção para o meu livro Os Outros da Arte, Oeiras: Celta, 1996, que tem aliás um índice onomástico onde poderá encontrar todos estes autores, bem como Stierle, que adiante evocarei também.
12 Poética, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1992, p. 115.
13 Charles Grivel, «Le roman sans fiction», in Schulz-Buschhaus e Stierle (orgs.), Projekte des Romans nach der Moderne, Munique: Wilhelm Fink Verlag, 1997, p. 67.
14 Teoria Estética, Lisboa: Edições 70, 1982.
15 Gianni Vattimo e Pier Aldo Rovatti (orgs.), Il Pensiero Debole, Milão: Feltrinelli, 2010.
16 Cito do magnífico manifesto «Un manifeste de moins», in Carmelo Bene e Gilles Deleuze, Superpositions, Paris: Minuit, 1979. Traduzi e comentei partes deste texto no meu livro Drama e Comunicação, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, pp. 290-299.
17 E ainda com a «low theory» com que, noutro contexto, Judith e Jack Halberstam procura desconstruir modos normativos de pensamento.
18 Gianni Vattimo, La société transparente, Paris: Desclée de Brower, 1990, p. 82.
19 Manoel de Barros, O Livro das Ignorãças, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p. 13.
20 Selected Longer Poems, Nova Iorque e Londres: W.W. Norton, p. 8.