Os Equívocos do Efémero nas Artes Performativas

Apesar de associarmos geralmente as artes performativas ao efémero, do ponto de vista do seu registo, especialmente se o entendermos de uma forma mais ampla do que a sua mera inscrição documental ou testemunhal em arquivos ou em museus, tal associação pode levar-nos a uma perspetiva equivocada.

Efetivamente, é fator inequívoco que as artes performativas possuem especificidades próprias que têm a ver com o seu acontecimento ao vivo, ao momento do aqui e agora, «irrepetível», correspondente ao encontro entre criação e receção. Contudo, não só esse caráter performativo, num contexto de ampla hibridização, tem vindo a ser amplificado no mundo das artes, como também as artes performativas, e mesmo a denominada arte da performance, considerada na sua ontologia caso limite de «efemeridade» e «não reprodução» (Phelan 1993), possuem registos e materialidades várias que constituem a entidade processual do evento performativo.

Tendemos a esquecer, por exemplo, que o referente (ou referentes) de onde se parte pode ser já um constituinte da obra artística, sem a qual esta não poderia tomar forma. Ovídio nas suas Metamorfoses expressava bem esse processo com a célebre frase «De formas mudadas em novos corpos» com que abre o seu livro. Não nos esqueçamos que diversos autores da sua época tinham já escrito sobre outras metamorfoses nas quais ele se inspirou, e que, por sua vez, a partir dos fragmentos narrativos das suas Metamorfoses se geraram diversas novas formas, desde o campo da literatura às artes plásticas (Caravaggio, Michelangelo, Rafael, etc.) e às artes performativas. Por exemplo, no Fausto de Goethe temos a célebre dupla de Filemo e Báucia que é retirada das Metamorfoses de Ovídio; e ainda Romeu e Julieta, a celebérrima peça shakespeariana, foi inspirada no fragmento narrativo de Píramo e Tisbe, presente nessas mesmas Metamorfoses, um enredo amoroso apelidado de Romeu e Julieta da antiguidade, cujos pais dos protagonistas são rivais.

A História das artes está repleta de inúmeros exemplos como estes. Centremo-nos para já nalgumas peças de Beckett, como a peça Not I, que teve o seu referente no quadro Degolação de São João Baptista de Caravaggio, de 1608. Há testemunhos desse mesmo processo e declarações do próprio Beckett da sua viagem a Itália em 1971 (Armstrong 1990: 69-70). Poderíamos dizer que do referente à peça há um processo por vezes pouco evidente e não fossem esses registos testemunhais não daríamos conta das relações inesperadas das obras e processos artísticos. Mas o que dizer de outro referente do imaginário beckettiano que tem por base a figura indolente de Belacqua, aquele que espera no purgatório da Divina Comédia de Dante Alighieri e que se evidenciou como um elemento-chave para a leitura de diversas das suas peças (Waiting for Godot; Play; Come and Go, etc.)?

Por outro lado, podemos esquecer-nos até que as suas peças para além do texto possuem quer uma dominante rítmica, que tem a sua ancoragem num olhar sobre os preceitos da composição musical, quer uma dominante objetual que tem subjacente o seu interesse, inclusive como crítico, pelo campo das artes plásticas.
Simplificamos e esquecemo-nos de que o teatro é mais do que algo somente efémero, ou somente presente no aqui e agora de uma apresentação a um público. Porque é importante simplificar, sob pena de termos de especificar tudo que excede, tudo o que torna singular uma peça.

Isto no que diz respeito à conceptualização de uma obra performativa, porque depois há a concretização da mesma e aí há que saber quem foram os intérpretes e restante equipa técnica e criativa que lhe deram forma. E, geralmente, também a esse nível tendemos a simplificar, nas nossas memórias públicas e individuais, essa autoria na figura de uma só pessoa, ou de poucas pessoas, geralmente o autor/diretor artístico e equipa de interpretes, ao invés do seu coletivo. Poderíamos ainda acrescentar a divulgação, os lugares onde esta peça toma forma e todas as suas condicionantes.

Esta descrição tem por objetivo apenas dar a ver que há várias materializações neste processo que tendemos a naturalizar quando rotulamos as artes performativas como algo meramente efémero. Estes múltiplos registos e materialidades ficaram mais ou menos evidenciados na exposição que foi apresentada em 2007 no centenário do nascimento de Beckett no Centro Georges Pompidou, onde a par da obra deste autor foram incluídos quer algumas obras dos seus referentes (o exemplo da obra do pintor Bram Van Velde), como obras de artistas contemporâneos que criaram a partir do seu imaginário (Jasper Johns, Mona Hatoum, Bruce Nauman, entre outros).

O imaginário das suas peças tem levado mesmo à criação de instalações em museus e em galerias. Dois exemplos, entre inúmeros outros, são os de Alexandra do Carmo, que reinstalou as palavras de Vladimir e Estragão num museu irlandês com o título A Willow (or Without Godot) (2006), ou Vasco Araújo que em Happy Days: Didascálias (2010) desenvolveu uma visita fotográfica a uma casa vazia a que juntou as didascálias da peça beckettiana.

Geralmente quando pensamos no arquivo e musealização das artes performativas procuramos os resquícios desse trabalho efémero. Todavia esses restos surgem-nos sempre com um estatuto fragmentário, disperso, uma recomposição à posteriori. Por outro lado, muitos dos eventos que hoje são significativos para nós e sobre os quais temos curiosidade podem não estar disponíveis nos arquivos, sejam eles bibliotecas, museus, coleções privadas, ou, mesmo que o estejam, podem estar presentes de forma tão dispersa e oculta que acabamos por ter dificuldade em recompor alguns dos traços dominantes da sua história.

Estas questões que são válidas para qualquer arte performativa têm vindo a ganhar centralidade em torno da arte da performance, género que até recentemente seguia uma ontologia, já referida, da «não reprodutibilidade», defendida por Peggy Phelan (1993), mas que tem vindo a ser questionada por diversos autores, como Philip Auslander (2006), Diana Taylor (2003), ou André Lepecki (2010), o primeiro dando conta de que a documentação é ela própria performativa e que o registo faz parte desse carácter, os segundos remetendo para a dimensão da incorporação desse arquivo no próprio corpo social ou no corpo do intérprete. É de notar que a própria Phelan, que defendeu que a performance não pode ser registada, sob pena de se tornar outra coisa, no mesmo livro, defende que a hibridização tem expandido esse conceito, apresentando-se esse carácter performativo quer na relação que estabelecemos ao olhar para um quadro (e aqui não podemos deixar de pensar o que o confronto de Beckett com a obra de Caravaggio produziu), quer de uma manifestação social, entre diversos outros exemplos. Esses momentos não podem ser reproduzidos, mas podem ter fontes diversas e deixar ecos, que podem ressurgir em tempos variados, sob diversas formas, mais ou menos próximas do original. Remetem para processos de memória e indexações complexas. Devido a essa complexidade, diversos autores têm vindo mesmo a introduzir a oralidade ou o depoimento da testemunha como matéria das suas performances. Podemos lembrar o trabalho de Sophie Calle Last Seen (2010) para o Museu Isabella Stewart Gardner. A artista entrevistou diversos visitantes e membros da equipa do museu, pedindo-lhes para descreverem as pinturas que tinham sido roubadas do museu. Depois transcreveu esses depoimentos e colocou-os ao lado das fotografias das galerias, tornando-se essas descrições obra. Outro caso é o trabalho recente de Tino Segal que tem vindo a desenvolver performances em museus, apenas autorizando a sua reapresentação através de contratos orais.

Estes trabalhos vêm afirmar que o acento na relação, na interação, não é necessariamente desprovido de materialidade. É preciso dizer que não é só um texto escrito, um objeto plástico que representa matéria. Um som, um depoimento oral, um corpo, possuem uma materialidade. E a verdade é que muitos desses eventos de performance têm vindo a ter diversos ecos: apesar de Tino Segal defender o não registo oficial das suas performances, encontramos inúmeros registos não autorizados na internet, textos a descrever essas peças, e inúmeros artistas a tentar retransmitir esses processos.

A performance já está nos museus. No futuro, serão provavelmente esses registos, desde as gravações, aos textos, às reperformances, aos testemunhos dos que a elas assistiram que continuarão a vida desses eventos. Enquanto houver fragmentos na memória pública, ou em memórias privadas as materialidades da obra estarão sempre presentes.

Estas evidências colocam-nos assim perante um estatuto menos específico das artes performativas e da performance art. Por um lado, sabemos que não nos é possível reproduzir as peças de Shakespeare como este o faria, ou a sua equipa, uma vez que muitos dos seus trabalhos foram coletivos e que nem todas as suas peças chegaram até nós; sabemos que apesar de Beckett ter deixado indicações muito específicas sobre como gostaria que as suas peças acontecessem, isso não garantiu a reprodução como o original.

Por outro lado, não deixa de ser verdade que a recriação contínua de «repertórios» garante a vida dessas obras performativas: que são texto mas também são memórias e adaptações ao tempo. Nesse sentido, o que a recriação e incorporação nos arquivos e museus nos tem mostrado é que uma performance não é assim tão específica.

Um último exemplo: a peça de Ernesto de Melo e Castro Música Negativa, que voltou a ser apresentada no dia 12 de Fevereiro de 2017, na ZDB, no âmbito de uma reperformance do Concerto e Audição Pictórica, não procurou reproduzir a peça tal como ela aconteceu em 1965, ou mesmo em 1977 quando foi filmada em 16 mm por Ana Hatherly, mas também o próprio artista nunca o fez. Entre 1965 e 1977 Ernesto de Melo e Castro reapresentou, por diversas vezes, e em diversos contextos, esta peça que simbolizava o silêncio imposto durante a ditadura portuguesa até 1974. E importa também referir que Melo e Castro não se define nem como artista plástico, nem como homem de teatro, mas antes como poeta experimental ou poeta visual, e foi a partir daí que criou esta e outras peças que podemos incluir hoje na história da performance art portuguesa.

Em suma, a incorporação do performativo nos arquivos e nos museus é um de entre os vários processos de preservação da memória; a ela juntam-se as leituras dos curadores/programadores culturais e dos seus públicos. Não é necessariamente a adição de muitos restos da obra que nos dá um melhor eco de uma obra performativa: as leituras que sobre elas fazem aqueles que as apresentam, o modo como as apresentam e as relações que estabelecem com outras obras, tudo isso preserva e recria uma obra performativa, dando-lhe mais vida.

 

Bibliografia

Armstrong, Gordon S. 1990. Samuel Beckett, W.B. Yeats, and Jack Yeats: Images and Words. Londres e Toronto: Associated University Presses.

Auslander, Philip. 2006. The Performativity of Performance Documentation, PAJ 84, 1–10.

Lepecki, André. 2010. The Body as Archive: Will to Re-Enact and the Afterlives of Dances, Dance Research Journal 42(2), pp. 28-48.

Phelan, Peggy. 1993. Unmarked: The Politics of Performance. Londres: Routledge.

Taylor, Diana. 2003. The Archive and the Repertoire: Performing Cultural Memory in the Americas. Durham: Duke University Press.

 

Nota

Este texto teve por base a comunicação apresentada no Museu Nacional do Teatro e da Dança, no dia 22 de Março de 2017, no âmbito do ciclo Debater o Intangível, dedicado ao tema «As Artes Performativas e a Incorporação do Imaterial: Arquivos e Museus», organizado por Hélia Marçal e Daniela Salazar e com a participação de José Carlos Alvarez (Director MNTD) e Luís Castro (Karnart C.P.O.A.A).