A Estética da Opacidade na Lírica Feminina Musical: O Embate Indissolúvel entre o Analógico e o Digital nos Ecos da Alteridade


A questão da feminilização do mundo tem ocupado o espaço presente das discussões e debates no meio acadêmico no campo da comunicação e áreas correlatas. No entanto, percebe-se ainda um grande vácuo em relação a esforços de apontamentos intelectuais que elucidem e exemplifiquem como esteticamente este modo idiossincrático pode ser atestado nas produções culturais evidenciadas de autorias femininas contemporâneas: escritoras, poetas, artistas plásticas, pensadoras, cientistas, compositoras, entre outras, com repercussões para os estudos no campo da comunicação digital.

Neste tocante, Elizabeth Fraser e Adriana Calcanhoto, cada uma ao seu modo perceptivo particular, representam exemplos de trobairitz1 contemporâneas, no sentido de cultuarem conscientemente a perspectiva da tradição da lírica feminina na canção popular, a partir de suas indagações, inquietudes e questionamentos sociais e poéticos.

Na canção «Trobar Nova»2 (Canção Nova), por exemplo, Calcanhoto evoca repetidamente os conceitos estéticos que deram forma ao trovadorismo medieval: trobar clus (canção fechada), trobar leu (canção ligeira), trobar ric (canção requintada), trobairitz (trovadoras) e trobar nova (canção nova). Esta mesma repetição sintética de termos que se ressignificam a cada som silabicamente recantado, às vezes operando como reforço semântico, às vezes como desconstrução simbólica, podemos encontrar em letras de Fraser, como na canção «Aloysius», do disco Treasure (1984): «Silly silly saliva, Sassy shear near / She should’ve / She sighed the grove / Ska pop / As pum / Sa po». No entanto, percebe-se aqui, particularmente, uma disposição de palavras cujo efeito do som de sua sequência tenta produzir uma atmosfera de transcendência além da linguagem pragmaticamente comunicativa.

Em ambos os casos, entoa-se um círculo de sons melodicamente reiterados, na tentativa de se enaltecer o poder de força expressiva do feminino, que impera na busca essencial pela autonomia das palavras reverberadas, cuja sintaxe aleatória reformula relações de significados objetivos, dando lugar a uma acuidade sensível que se contrapõe ao rigor sintático-gramatical racionalizante, uma vez que o senso lírico feminino, conforme o esforço poético destas artistas, agrega sentidos que ecoam como uma espécie de mantra semântico melódico imprevisível.

A tradição das trobairitz se reforça na imagem de grandes intérpretes e compositoras que procuram demonstrar sua inquietude frente à necessidade vital de um modo próprio de ver e sentir o mundo que não reforce a todo custo a visão dominante da razão objetiva e inócua a outros olhares destoantes.

Na canção «Vambora», Calcanhoto (2001) utiliza o recurso do fluxo da memória e da força de expressão autônoma da palavra:

Entre por essa porta agora
E diga que me adora
Você tem meia hora
Pra mudar a minha vida
Vem, vambora
Que o que você demora
É o que o tempo leva

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Por que meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
“Dentro da noite veloz”

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
“Na cinza das horas”
(in http://letras.mus.br/adriana-calcanhotto/869/)

Ao ouvir atentamente a canção, percebe-se a alternância de sensações e sentimentos, ora de ternura, tranquilidade, introspecção; ora de nervosismo, pressa e desespero. Durante o processo de circularidade do conteúdo poético, as emoções modificam-se aquando da pronúncia melodiosa de cada palavra reiterada. A memória transita num vai e vem, ziguezagueando o ambiente na busca de um elemento de suprema afetividade. Fruto da declaração de amor de Calcanhoto por sua companheira, de longa data, a atriz e cineasta brasileira Suzana Moraes (1940-2015), filha primogênita do poeta e compositor Vinícius de Moraes, esta canção estabelece um jogo íntimo entre a presença feliz e a ausência atormentadora do outro amado. Duas referências poéticas encerram o sentido mágico do afeto amoroso que a cantora quer explicitar em relação ao desejo pelo encontro sonhado: «Dentro da noite veloz» (do poeta Ferreira Gullar) e «Nas cinzas das horas» (do poeta Manoel Bandeira) — a dissonância entre o tempo acelerado e o tempo breve, contrastando com o sentimento amoroso perpétuo.

Já Fraser faz uso de uma técnica de vocalização melódica denominada glossolalia3 e puirt a beul4 (música bucal). Tanto a glossolalia quanto o estilo de música bucal remetem para uma técnica de canto silábico que esconde o sentido claro daquilo que se quer expressar, o que produz certo nível de incompreensibilidade textual. Para confundir mais ainda o ouvinte, a compositora emprega metáforas inusitadas, linguagem assonante e aliterada, fazendo uso frequente de palavras-valise joyceanas. Isto pode ser notadamente comprovado em canções como «When Mama was Moth»:

Sunburst and snowblind
I see the fear running down my brook
While mama was clear, one more book
Chills all start screaming
Ribbed and veined
When mama was moth, I took bulb form
Body electric
Writhe in vain

Explosol e cego-em-neve
Vejo o medo escorrendo por meu rio
Enquanto a mãe era clara, mais um livro
Calafrios todos põem aos gritos
Torácica e venosa
Quando a mãe como mariposa, eu em forma de bulbo
Elétrico corpo
Contorce-se em vão
(in http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2009/06/elizabeth-fraser.html), tradução de Ricardo Domeneck)

Segundo Domeneck (2009, online), a tradição poética de Fraser remete para o tempo dos trovadores medievais como Arnaut Daniel e Beatriz de Diá, «podendo ser analisada como LITERATURA, mas completando-se apenas em performance, como poesia verbal (textos), vocal (oralização) e visual (vídeos e performance gestual)».

Como critério de opacidade simbólica, Elizabeth Fraser adere ao recurso estético da idioglossia5. Deste modo, ela procura expressar uma linguagem secreta, de acesso restrito, cujo teor opaco é superdimensionado pelos efeitos digitais de sons enevoados e etéreos6. Do ponto de vista do processo criativo, nas suas canções interpretadas performaticamente, várias camadas de sons de vozes, contendo diversas tonalidades de timbres são ricamente trabalhadas, na busca de um efeito etéreo, transcendente, que hibridiza e obscurece significados e significantes, numa intermitência evanescente e crepuscular.

Elizabeth Fraser

Elizabeth Fraser (Fonte: http://www.thelineofbestfit.com/reviews/live-reviews/elizabeth-fraser-meltdown-the-royal-festival-hall-london-070812-102206)

Tanto Fraser quanto Calcanhoto manifestam uma noção de escrita textual literária e poética, cujo meio da canção popular transcende regras e normas da linguagem da comunicação habitual. Isto traz à tona uma sonoridade de efeitos de sentidos ambíguos, dispersos, expressos de forma não linear.

A idioglossia, por exemplo, afugenta a clareza perceptiva das palavras e das suas relações intersintáticas causais. Nesta acepção, a linguagem vocalizada torna-se componente abstrata e melódica da canção, ou seja, passa a se constituir parte inteiramente inseparável, entre o que normalmente se conjuga como letra e melodia em uma canção popular. Já Calcanhoto, pelo círculo crescente de repetições de palavras e frases emotivas, acopladas aos arranjos melódicos e ao caráter de entonação interpretativa, sugere novas ressignificações, que somente têm lugar no campo do sentido delicadamente musicalizado.

 

Opacidades Estilizadas.

A técnica de vocalização de Elizabeth Fraser atualiza contemporaneamente o papel da traiboritz medieval à medida que sua performance interpretante, em forma de canto gutural, aliada aos efeitos de montagem e colagem digital do Cocteau Twins, se traduz pela busca de uma linguagem opaca, enevoada, misteriosa e indecodificável, empregada com o objetivo de exprimir verdades secretas, raramente tratadas.

O efeito disso é a voz de uma alétheia contemporânea da era digital, em que a estética tecnológica empregada reproduz um jogo de linguagens, entre o que se afirma e o que se nega relutantemente, o que se esconde e se revela explicitamente, o que se esquece e o que se lembra, de modo marcante.

Calcanhoto também realiza experimentos estéticos com a tecnologia digital, em busca de sonoridades plásticas que misturem, hibridizem e revelem formas expressivas disruptivas, bem ao teor estético da antropofagia de Oswaldo de Andrade e do tropicalismo de Caetano Veloso. Toda esta experimentação de sons estilizados reforça o seu ponto de vista libertador do que aprisiona o ser em suas limitações, as quais podem desembocar em preconceito, intolerância e desafeto, pois ao abrir-se esteticamente para as possibilidades ilimitadas da arte, é possível também abrir-se a novos horizontes da compreensão da existência humana.

Num comparativo entre a fusão de letra e melodia das duas artistas, percebe-se uma dialética constante entre contrapontos sensitivos, que vão da ternura plena à acidez visceral, da alegria jovial à melancolia existencial. O que expõe certo senso de alteridade contínua, em suas percepções, numa espécie de posicionamento e enfrentamento das questões existenciais propostas pela arte e pela vida, como se arte e vida jamais pudessem se separar do sentido da existência humana. O grau de alteridade, em suas canções, reforça uma necessidade de acolhimento e sociabilidade contínua, ou seja, a partir desta visão acalentada não pode haver temas restritivos de expressividade humana, no campo da arte, ao conceber-se que o papel da arte é a humanização e a formação sensível do ser humano.

Para Maffesoli (1997, 1998), existe uma distinção conceitual entre sentir e entender, pois sentir está na ordem de conjugação dos afetos e não no campo do racionalismo meramente contratual, que esvazia o significado de riqueza da vida comum, por essência policultural e polissêmica, não havendo, portanto, um sentido previamente determinado, mas sentidos que são testados e vividos no decorrer da experiência e maturidade de cada um.

Neste contexto, sentir relacionar-se-ia, portanto, ao campo do poder aurífico e desaurífico da canção, que trata do mistério de toda a criação artística e da capacidade de transfiguração poética de uma obra, para impregná-la de sentidos perceptivos anticonvencionais e desdogmatizantes, ensinando-os a pensar de um modo ainda não pensado, porque não pôde ser sentido, já que não faz parte do conjunto de nossa experiência vivencial.

Ainda nos apontamentos de Maffesoli (2014, p. 43), o símbolo é a recusa dos dualismos provenientes da tradição judaico-cristã e sua inequívoca herdeira: a civilização ocidental. O símbolo é também um grande elo de ligação afetiva, transformando o ambiente social e natural num misto inextricável, num vaivém permanente entre «o visível e o invisível, o material e o imaterial, o real e o irreal, que acabam nesse surrealismo que pode ser considerado como a especificidade da época pós-moderna».

 

O Digital como Feminilidade e Alteridade.

O filósofo Durand (2012) estudou algumas das principais metáforas femininas do imaginário simbólico, tais como a água, a corrente, o rio, a fenda, a caverna, a noite, as cores, a música, de entre outros elementos evocativos da natureza, a fim de estabelecer analogias circunstanciais entre o mundo exterior e interior em um nível de interpenetração viva e contínua. Elas refletem metáforas líquidas e circulares que também são empregadas para caracterizar o fenômeno da cultura digital, em seus aspectos de criação, mutação e mistura de formas, o que nos leva a supor que o digital é feminino, em seu caráter estético. Além disso, Durand (idem) denota como a música também simboliza a imagem da mulher que se despe, que mostra e esconde o rosto e o corpo, numa alusão mítica à imagem do mito grego da alétheia (desvelamento/verdade).

No entendimento de Levinás (2004), o eu perante o outro constitui-se em senso de solidariedade, ou seja, de identificação sensível com a dor do outro, sendo que o ser-em-si-mesmo se define como a possibilidade ou potência de superação dos limites compreensivos no entendimento pleno do Ser diferente do si próprio (indivíduo). Isto é o que, dentro da percepção do filósofo, leva então à noção do ser-com-o-outro, no que ele também chama um «pensar outramente», pensar, portanto, o outro modo próprio de Ser do sujeito.
Concebe-se que a opacidade pode ser também compreendida como um método de alteridade, em que o aspecto de camuflagem de sentidos, contemplando quase que um mistério indecifrável e, por vezes, até inteiramente insondável (incapturável), incomunicativo, corresponde ao engenho poético criador de uma linguagem transcendente (ou, melhor dizendo, translinguagem), cujas sensações codificadas expressam um lirismo poético que provém da afetividade relativa às palavras escolhidas ou colhidas perceptualmente.

Na canção «Esquadros», Calcanhoto apresenta suas angústias e perplexidades diante da impotência frente aos acontecimentos quotidianos que a violentam constantemente, os quais se apresentam sempre de maneira distanciada por aparatos quotidianos como telas, janelas, automóveis, remoto controle, que dividem e separam o mundo entre classes e diferenças sociais:

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção
No que meu irmão ouve
E como uma segunda pele
Um calo, uma casca
Uma cápsula protetora
Ai, Eu quero chegar antes
Para sinalizar
O estar de cada coisa
Filtrar seus graus
O estar de cada coisa
Filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo
Divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome
Nos meninos que têm fome

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela
pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, meu mostro
Eu canto para quem?

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê? Minha alegria, meu cansaço? Meu amor cadê você? Eu acordei
Não tem ninguém ao lado

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço? Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle.
(in http://www.vagalume.com.br/adriana-calcanhoto/esquadros.html

 
A dor relutante e inelutável da cantora questiona o próprio sentido do seu cantar assim como o propósito do seu ofício como intérprete do mundo na forma de arte. Percebe-se no jeito angustiante da melodia tanto um senso de alteridade, que quer se abrir ao outro, para acolhê-lo, ao mesmo que a impotência diante dos fatos quotidianos da vida que são distantemente observados: a miséria, o sofrimento, a solidão, a alienação, o egoísmo, a falta de solidariedade. Nesse contexto, ela elabora uma espécie de metacanção consciente da realidade do mundo e do papel relevante do cantor popular, na tentativa de aliar a reflexão sobre o processo criador à função do seu sentido estético-social na vida cotidiana.

Outra característica de Calcanhoto é a alegoria do desconcerto interno que se reflete na caracterização da desordem do ambiente exterior ao seu redor, como na canção «Metade» (2001):

Eu perco o chão, eu não acho as palavras
Eu ando tão triste, eu ando pela sala
Eu perco a hora, eu chego no fim
Eu deixo a porta aberta
Eu não moro mais em mim

Eu perco a chaves de casa
Eu perco o freio
Estou em milhares de cacos, eu estou ao meio

Onde será que você está agora?

Eu perco a chaves de casa
Eu perco o freio
Estou em milhares de cacos, eu estou ao meio

Onde será que você está agora?
(in http://www.vagalume.com.br/adriana-calcanhoto/metade.html)

A partir deste movimento entre as supostas dualidades, Calcanhoto procura fazer emergir de forma visível o invisível e o indizível do ser feminino interiorizado, ou seja, do vazio do lugar que habita em correlação ao vazio que emana de si próprio pela solidão e pela falta da companhia de alguém, cristalizado pela metáfora da morada do Ser, no sentido heideggeriano, sem a essência do Ser.
Já em «Inverno» (2001), prevalece a o pensamento metacognitivo ou complexo:

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir

De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial

Há algo que jamais se esclareceu
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei

Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só
no deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir

De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial

Há algo que jamais se esclareceu
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei

Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só
no deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar

Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar

Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar

No dia em que fui mais feliz…
(in http://www.vagalume.com.br/adriana-calcanhoto/inverno.html)

Segundo Morin (1986, an passim), o pensamento complexo é o pensamento que pensa o próprio pensamento, com relação ao seu método reflexivo, as relações entre natureza e mundo do conhecimento (cultura), racionalidade e sentimento, arte e ciência. Sendo assim, para ele, a prosa e a poesia, bem como as artes em geral, representam a grande Escola da Complexidade, pois permitem a compreensão da vida humana em sua essência singular.

Na canção «Inverno», texto da autoria do poeta e seu parceiro musical Antonio Cícero, em homenagem à cineasta Suzana Morais, elucidam-se os limites da sua própria percepção da realidade das coisas bem como do seu próprio conhecimento de si. Apoiada em um método de lacunas e digressões (Quadros, 2002, p. 162), a compositora interpreta o sentido da canção, reconstruindo seu pensamento no que concerne às situações que a envolvem, «chegando ao ponto culminante de se autoquestionar a respeito de seus próprios pensamentos e sensações». Sendo assim, ela evita certezas concretas, expondo um turbilhão de dúvidas crescentes a permear o seu pensamento confuso, conturbado, enevoado. O indefinível conjuga-se a partir do excesso de expressões indagativas: «um avião», «não sei», «algo que jamais se esclareceu», «naquele dia mesmo». Tais apontamentos não conseguem, de certa maneira, consubstanciar completamente o pensamento e as sensações, «fragmentando-os em blocos de relações que ora articulam-se, ora fragmentam-se novamente».

Nesse tocante, Quadros (idem, p. 162-163) acresce ainda os seguintes elementos observados:

As digressões emotivas conduzem a um determinado grau de perplexidade no sujeito, que, no entanto, é contido pela diluição da emoção com base no uso da voz interpretativa, a qual se articula, constantemente, ressignificando o olhar sobre o entendimento da situação e dos vários pontos de vista enunciados. Empregando a relação entre técnica interpretativa e emoção contida, a cantora auto-regula suas emoções. Deixa às vezes a emoção fluir mais naturalmente, mas controla os impulsos da expressividade exacerbada, contendo-a, diluindo-a, e estabelecendo, assim, uma postura de autocontrole, ou seja, de busca de racionalidade diante do desafio imposto. O trecho de verso que inicia a canção, e enuncia sua temática «No dia em que fui mais feliz» repete-se reiteradamente, a cada momento, acrescentando um olhar, uma emoção e um lamento. Este verso, também, enuncia o desfecho, a conclusão do tema, o que denota, por sua vez, a noção de um «tempo circular» na canção, ou seja, o «aqui» e o «agora» prolongam-se, mantendo um elo de ligação indissociável no espaço da memória poética que tenta presentificar, ou eternizar o momento da emoção perdida. Assim, o tempo decorre, mas o espaço da memória prolonga-se, virtualizando a emoção e os sentimentos.

Por outro lado, na canção «Alice» do grupo Cocteau Twins, trilha sonora do filme Stealing Beauty [Beleza Roubada] (1996) de Bernardo Bertolucci e, posteriormente de The Lovely Bones [Um Olhar do Paraíso, no Brasil e Visto do Céu, em Portugal], Fraser encadeia vozes com diversos timbres agudos e graves em que o nome «Alice» é evocado distintamente:

Then I lost him ache
Shudder shock of pale
My, my true love
Nicolo (whatever his last
name was, sounds like eperdu?)
these days are smoking days
Though he won’t see
(Deceived me) You deceive me
(With you) Erase it I will not
(to stay) Touching a helix (didn’t she know alex?)
(I I will plead) Blotting an excuse you
(alice, alice, alice, alice, alice)
would share,
(alice, alice, alice, alice, alice)
who shall
(alice, alice, alice, alice, alice)
replace
(alice, alice, alice, alice, alice)
You
When I lost him ache
Shudder shock of pale
My, my true love
Nicolo(?) This mess I smoke away
And he won’t see
(pushing me) Oops she fell
(with you) Racin her bike
(so you) touching her lies
(not me)
(in http://letras.mus.br/cocteau-twins/205712/)

A partir de algumas comparações entre letra e melodia, percebe-se um jogo sonoro dissonante e uníssono, ao mesmo tempo polissêmico e polifônico. Como se as vozes representassem os elos entre infância ingênua e a maturidade feminina, mas também entre petulância infantil diante da reprovação adulta, numa alternância entre o etéreo e o mundano, o inocente angelical e o amadurecimento amargo e trágico, com violência e morte à figura da mulher. No final, após o desfecho do entrave vocal, percebe-se pela evocação atmosférica da canção o desejo obstinado de uma única voz permanecer, que é a voz liberta da fala da menina, que se contrapõe ao mundo adulto, sem redenção para a inocência e o sonho idílico de um amor profundamente puro.

Com base numa análise geral do conjunto do trabalho poético e musical destas duas artistas inquietantes, é possível claramente perceber o caráter de pesquisa apurada, que elas realizam para compor esteticamente suas obras, tendo consciência do papel que representam como artistas contemporâneas, buscando incessantes modos expressivos para conjugar pensamento e sensibilidade, a partir de um filtro interpretativo por meio da lírica feminina.

 

Bibliografia

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Notas

1 Feminino de «trobador», ou seu cognato «troubadour», em inglês (trovador). Designa as mulheres occitânicas trovadoras provenientes dos séculos XII e XIII, as quais desenvolveram forte tradição na oralidade poética desta região europeia. «Trobar» significa, grosso modo, achar, fazer versos.

2 Segundo Moisés (2004), de acordo com os estudos literários acerca do período medieval, houve duas correntes trovadorescas significativamente importantes: 1) «trobar leiu», ligeiro, cujo objetivo era buscar uma expressão lírica cristalina, simples, sem o uso de meros artificialismos de linguagem, e 2) outra de característica intencionalmente hermética, subdivida em «trobar clus» e «trobar sic». A corrente «trobar clus» era conceitualmente mais fechada, apesar de ser de cunho esotérico, sendo que seus adeptos acreditavam obstinadamente que tinham algo de profundo a transmitir (comunicar), e, por isso, buscavam fórmulas enigmáticas, repletas de conceitos agudos e obscuros. A corrente «trobar sic», no entanto, deixava de lado inteiramente a agudeza conceitual em detrimento de uma engenhosidade artesanal, propondo-se superar obstáculos formais que evidenciassem certo senso de virtuosidade lírica, a partir do emprego de palavras raras, esdrúxulas, imagens insólitas, de caráter ornamental. Analogamente, estas duas correntes herméticas utilizavam recursos expressivos comuns tais como metáforas, apóstrofes, metonímias, sinédoques, aliterações etc.

3 «Glossolalia», composta pelo termo grego «glossa» (língua/linguagem) e «laleõ» (falar, conversar, produzir sons), refere-se à noção que vem da antiga tradição cristã protestante do indivíduo que é dotado da capacidade de «falar em línguas», designando um modo comunicativo de linguagem secreta, comum em cultos pentecostais e carismáticos, subentendida como uma linguagem natural inteiramente desconhecida pelo seu falante, não aprendida, a priori. A glossolalia consiste em articulações silábicas que dificultam na compreensão da clareza do sentido, o que sugestiona diversas interpretações em aberto. Podem ser observadas técnicas como o deslocamento do acento, ritmo frasal diferente, entoação estranha, ruptura da sintaxe e da morfologia habitual, uso imprevisto da pausa, variações no tom da voz, bem como no seu volume, velocidade e intensidade. («Glossolalia», in A Dictionary of Psychology, editado por Andrew M. Colman. Oxford: Oxford University Press, 2009; «Glossolalia», in The Skeptic’s Dictionary).

4 «Puirt a beul», forma plural de «port à beul» (tune from a mouth), é um canto de procedência na tradição gaélica escocesa e irlandesa, conhecido mais popularmente como «mouth music» (música bucal ou «melodia na boca»). Neste estilo musical, a ênfase maior é dada no ritmo e som do que no sentido da canção, sendo a melodia caracteristicamente mais relevante do que o conteúdo a ela relacionado, pois seu objetivo é auxiliar, imitar ou completar sons de instrumentos musicais, servindo como memória social da existência de tais instrumentos na cultura destes povos.

5 Segundo o dicionário online de Português, «idioglossia» é um termo médico que se refere à «articulação imperfeita de sons sem sentido; consiste na substituição de sons silábicos por outros, em que a criança fala de modo ininteligível». Refere-se também a um estilo de língua idiossincrática, falada somente por um pequeno grupo de pessoas e que muitos especialistas associam ao que denominam como «criptofasia». A criptofasia é também conhecida como língua dos gêmeos. Curiosamente, Cocteau Twins, a banda da qual Fraser foi compositora e intérprete [1979-1997], significa «Os gêmeos de Cocteau» [Jean Cocteau], o que é uma referência indireta ao artista francês multifacetado (poeta, romancista, ator, dramaturgo, pintor, cineasta, ensaísta) [1989-1963]. No entanto, segundo relatos, este nome teria sido extraído do título de uma canção de outro grupo escocês, Simple Minds (Mentes Simples) [1978], numa referência a dois homens obcecados pelas obras de Jean Cocteau. Um detalhe importante acerca disso é que no romance Les Enfants Terribles (As Crianças Terríveis) [1929], de autoria de Cocteau, o tema tratado é justamente a linguagem silábica secreta de dois irmãos, Paul e Elizabeth, o que poderia explicar o valor estético das letras compostas por Fraser, com sons silabicamente particionados e distorcidos, por meio de acordes sonoros digitalmente retrabalhados.

6 Segundo o dicionário online de Português, «etéreo diz respeito ao éter, característico ou particular do éter, que tende a ser volátil fluido». Em termos figurados, é o que «não faz parte do que é material»; portanto, de teor «celestial, divino» e também o que expressa «delicadeza», «puro». Os termos «ethereal wave» (onda etérea), «etheric wave» (onda etérica) ou simplesmente «ethereal» (etéreo) servem para designar um subgênero do rock gótico dos anos 1980, que se desenvolveu acentuadamente no Reino Unido. Suas principais características eram a estilização de várias matizes de paisagens sonoras atmosféricas a partir do uso de guitarras dissonantes, contendo efeitos plásticos de ecos e delay (atraso de sons), com cadências que sobrepunham camadas sobre camadas. Os aparelhos de delay eram utilizados para diminuir o som atrasado, cuja repetição podia criar a atmosfera de um eco vindo de uma montanha, por exemplo, em que o som repetido iria desaparecendo aos poucos. Isto servia para criar a atmosfera de sons da natureza. Os ecos repetidos e sobrepostos criavam reverberações, ou seja, sons totalmente indistinguíveis. Caracteristicamente, a música etérea dos anos 80 empregava vozes femininas enevoadas, celestiais e murmuradas, fortemente influenciada pela chamada música ambiente.