Foley Acusmático: Motivos Sonoros


«Foley Acusmático» é um projecto de investigação que visa conjugar dois campos sonoros distintos, defendendo-os como conceptualmente análogos. A pesquisa dedica-se à teorização de uma prática específica da sonoplastia cinematográfica (Foley), que ressoa também na composição musical acusmática*. Tendo em conta que a Arte Foley visa a sonorização de uma acção visual e que a composição acusmática renuncia à visualização da fonte sonora, à partida esta conjugação é contraditória. Não obstante, o estudo do «objecto sonoro» permite esta articulação, conduzindo-nos ao que possivelmente sintetiza esta simbiose: o conceito de «motivo sonoro»1. Este artigo foca-se na primeira fase de investigação do projecto, centrada maioritariamente no «objecto sonoro» na arte Foley2.

 

Sonoplastia: Um Diálogo não Verbal.

Nos dias que correm, poucas são as abordagens em que o Cinema ainda é considerado a Arte da Imagem em Movimento. Embora subjugado para segundo plano, é certo que o som — na sua essência fruto do movimento — ocupa o seu próprio lugar. Ainda que tenham sido necessárias várias teses que o defendessem, na verdade desde os primórdios que a sua significância foi posta em prática3. O Foley surge como uma necessidade de dar corpo, presença e credibilidade à imagem. Esta necessidade começa nos musicais não perante a voz, nem perante a música, mas perante os passos e outras acções manifestas. Numa análise extensiva do desenvolvimento desta prática, Ament demonstra o quão importante era que os passos estivessem em conformidade com o movimento. Para a credibilidade da acção, eram contratados bailarinos profissionais para desempenhar as acções em Foley. Como a própria afirma, «Foley é o diálogo do corpo»4.

No entanto, não só de diálogos (verbais) e passos se desenhava a sonoplastia dos filmes nos anos 20/30. Exemplo disso é Applause (Mamoulian, 1929). Tratando-se de uma comédia musical, não seria de estranhar que se focasse essencialmente na voz e na performance gímnica dos corpos. Não se pode esquecer que o som veio tomar o lugar de uma orquestra e que por esta altura a tecnologia ainda não permitia uma captação minuciosa do som directo. Esta limitação tecnológica era simultaneamente causa e consequência: por um lado limitava a captação sonora adequada aos sentidos naturais, por outro não contribuía para a formação de uma consciência sonora que beneficiasse essa mesma percepção. Ainda assim, o filme tem momentos sonoros bastante pertinentes que anunciam uma arte por vir. Mamoulian é, aliás, referido como um dos realizadores mais criativos da sua geração. Applause, sendo o seu primeiro filme, permite uma análise e compreensão da história do cinema, a todos os níveis: a mobilidade da câmara, o uso do diálogo, o entendimento da diferença entre a mise-en-scène teatral e a cinematográfica5. Neste caso, interessa-nos o som em três momentos particulares: a chegada à estação, a recusa do chamamento e a ponte de Brooklyn.

Quando a heroína chega à estação central de comboios (20’), vinda de um convento, todo o caos sonoro nesta cena é causa para a sua aflição, mas também reflexo da mesma. Este caos esmaga e choca, análogo à mudança radical na sua vida. É interessante contrastar este tipo de abordagem com a de Jacques Tati, que décadas mais tarde nos ensina a ouvir som a som, com mais ou menos vigor, mas cada um no seu lugar em vez de todos a marcar posição simultaneamente. Enquanto Tati nos revelou a possibilidade de uma composição sonora definida através do uso de sons-ruído, em 1929 nem o microfone nem o ouvido estavam aptos para discernir estes mesmos ruídos como fontes sonoras.

O outro exemplo é ainda bastante baseado na linguagem, no recurso ao diálogo/monólogo, fora de cena, a representar a «recusa do chamamento do herói» – um passo necessário na sua jornada6. Neste excerto (a partir de 42’20”), a heroína caminha em sentido contrário a esse mesmo chamamento. Fora do enquadramento, ouve-se tudo aquilo que não se vê: os desafios mundanos, a ameaça à sua integridade física e moral. Os sons entram e saem de cena, num verdadeiro compasso dinâmico que contrasta com a continuidade do enquadramento visual. A relação entre o áudio e o vídeo é, talvez pioneiramente, contrastante: à vulnerabilidade sonora propõe-se a determinação visual da heroína que caminha sem hesitar. De outra feita, em consonância com a imagem, temos aquilo a que hoje facilmente chamaríamos «passeio sonoro».

Por último, o momento que prenuncia uma arte por se revelar, em que som e música são indissociáveis. Aqui, não se pode categorizar o objecto auditivo como sonoro ou musical, por ser ambos. Por esta altura, a surgimento da Música Concreta em França ainda estava a mais de uma década de distância. Ainda assim, os movimentos futuristas já tinham produzido materiais como «A Arte do Ruído», de Luigi Russolo (1913). Consequentemente, não é de estranhar que Mamoulian tenha ele próprio escrito «A Sinfonia do Ruído» (1927), ainda a propósito da sua prática enquanto encenador na Broadway. Hoje em dia, facilmente se poderia intitular este segmento como «paisagem sonora», aos 47’15”. Este momento, em que a ponte de Brooklyn nos é apresentada, pode ser descrito sonoramente com o termo que Murray Schafer introduziu ao descrever as camadas de uma paisagem sonora: keynote7. Neste caso, as restantes camadas (sound-signals e soundmarks) ficam ao critério das personagens e do espectador8. O recurso a um som marcante delineia as características sonoras deste espaço. Esse delinear é imediato e intuitivo, opera quase ao nível do inconsciente. Este som, ainda que estrangeiro à imagem, não se questiona. Se racionalmente poderíamos questionar a sua verosimilhança, ou a sua fonte, não o fazemos em parte porque não é intrusivo, em parte porque se harmoniza com a materialidade da ponte. Trata-se dessa tal composição estética que valida a experiência. À semelhança do momento do «passeio sonoro», todo o desenho de som de Applause é claramente um exemplo de como a arte sonora como a ouvimos hoje pode bem ter começado como uma prática cinematográfica, para depois então se emancipar da imagem. São momentos que revelam consciência de que o aparato era composto por dois sentidos: o visual e o sonoro. Mais do que uma composição sonora, são também exemplos de uma composição estética através do som.

 

 

Quatro anos mais tarde, o mesmo realizador proporciona-nos outro exercício de composição sonora, contribuindo indubitavelmente para que o som seja um recurso linguístico profundamente enraizado na linguagem cinematográfica desde os seus primórdios. Desde a comicidade dos filmes de Chaplin (de cada vez que o actor tem de transportar algum objecto nos seus habituais trabalhos de backstage, trata-se sempre de objectos pesados, de difícil arrasto, o que contribui para a fisicalidade que constitui a personagem) aos filmes de Hitchcock, que recorrem ao som para informar as personagens de determinadas acções (em Blackmail, também de 1929, o vilão sabe que a polícia o vem capturar porque ouve o sino apenso à porta da tabacaria). Todavia, esta ferramenta sonora não era só informativa. Era também material de composição musical, como de resto se pode ver e ouvir na abertura de Love me Tonight (1932):

 

 

Esta abertura esclarece o momento sonoro que se vive no início da década: a arte sonora não se emanciparia enquanto vinculada a uma imagem. Neste excerto, a abordagem familiarmente musical é reflexo da necessidade de facilitar a percepção das acções através de objectos sonoros. A sonoplastia já contribuía para uma montagem fluida, mas o som ainda tinha de justificar a sua presença por meios que fossem aceitáveis ao ouvido comum. De resto, a abertura do filme conduz a atenção do espectador através do som, conforme aquilo a que convém dar ênfase visualmente. Ainda assim, nem tudo o que se ouve se vê, e vice-versa. Este momento asserta então a necessidade de escolher um foco que seja uma combinação entre o auditivo e o visual. Os alicerces da narrativa estão em estabelecer uma perspectiva, um ponto de vista, sem descurar que esse ponto de vista possa ser também um ponto de audição. Trata-se de um exercício de focalização, o que permite entender a perspectiva de uma personagem em específico. Essa perspectiva permite elucidar o espectador acerca da sua posição enquanto testemunho da história que se conta. Acima de tudo, trata a questão da perspectiva como uma ferramenta de orientação perceptual9. Em Love me Tonight, também se denota a velocidade com que todo o aparato sonoro evoluiu, não só tecnicamente mas sobretudo no entendimento do medium em si, na medida em que deixa de ser um recurso literário e passa a ser também fonte de criação musical10.

 

Focalização Sonora: O Ponto-de-Audição.

«Point-of-audition sound always carries signs of its own fictional audition.» (Altman, 1992)

Anna Karenina (Brown, 1935) foi um produto do star-system, mas foi também reflexo de um medium (o sonoro) já em vias de se estabelecer e ser aceite, que funciona enquanto linguagem, mas também enquanto ferramenta de criação ficcional. Em menos de uma década, o cinema deixou de ser uma arte da mímica, da representação teatral. O ultrapassar deste lado mímico foi em grande parte fruto do advento sonoro. Por esta altura, o Cinema é já uma técnica de representação singular, consolidada no movimento e no diálogo. Em suma, uma nova forma dramatúrgica que é só sua. Sob esta perspectiva, o som ainda é um meio técnico que atinge o seu fim. Porém, há indícios deste meio enquanto ferramenta linguística. Em Anna Karenina, há um cavalo abatido a tiro. À semelhança do momento já referido em Blackmail, esta acção acontece fora de cena, e informa quer o espectador e quer a personagem sobre o destino do animal (50’16”).

Não obstante, este recurso dramatúrgico não se reduz ao seu carácter informativo. Este filme defende o som enquanto sugestão. Essa ideia de sugestão é um dos alicerces do conceito de motivo sonoro e será desenvolvida quando de direito. A determinado ponto, ainda distante do momento em que a heroína enfrenta a sua travessia, uma personagem transiente suicida-se na estação de comboios. Este suicídio é apresentado exclusivamente através do som: o que visualizamos não é o que ouvimos. Visualmente, temos a reacção da heroína ao ouvir o mesmo que o espectador. Sonoramente, é uma espécie de montagem de atracções sonora: começa com o martelo a quebrar o gelo do comboio (9’50”)11. Por ora, este martelar é uma espécie de compasso de espera, um presságio. Mais tarde, será premonitório. Até agora, o ponto de audição é, de certo modo, geral. Não está vinculado a uma personagem em particular, é igualitário interna e externamente. Entretanto, regressa-se (visualmente) à conversa banal das personagens. O martelar continua em fora de campo, criando uma espécie de compasso de espera que claramente anuncia algo — até mesmo porque chega a interromper a trivialidade da conversa, deixando a heroína desconfortável. O comboio finalmente inicia a marcha. Afastamo-nos para um plano aberto e ouvem-se gritos. Está «contado» que alguém se suicidou no trilho do comboio, e a confirmação visual chega posteriormente.

Perto do fim, voltamos à estação de comboios (1:27’27”). Neste momento, há toda uma cacofonia que nos separa de Anna Karenina. Lentamente, o ruído é menor, o comboio parte, a música muda para um ritmo e um tom menos festivos. As pessoas vão deixando a estação. A música agrava-se quando a heroína vê o painel de passagem partido, eventualmente causa do suicídio anterior. A música é de facto um recurso linguístico, mas é também um recurso demasiado directo e impositivo. A música ilustra, não sugere. Um crossfade mostra-nos uma elipse temporal. A estação está vazia, já é de noite. Isso diz-nos que a heroína ali ficou, a pensar. É então neste momento que voltamos a ouvir o martelo — esse tal compasso de espera, em prenúncio. É também um recurso à musicalidade dos objectos que produzem som, mas neste caso não pelo lado de entretenimento como em Love me Tonight. Aqui, há uma fusão de som e música tal como em Applause: aquela que rompe a fronteira, que não permite categorizar particularmente o que é som e o que é música12. Este martelar em Anna Karenina é, então, um motivo sonoro, sugere-nos a ideia do suicídio. Transmite ao espectador a sugestão do que vai acontecer, permite-lhe antecipar essa possibilidade. Diz-nos, sem impor, o que a heroína está a pensar. Assim, estabelece um ponto-de-audição particular, associado a uma ideia em específico (em vez de a uma generalidade, como constava anteriormente). O martelar acelera, demarca. A música continua, mas em segundo plano. Já não impõe o entendimento da cena, tem apenas aquela função clássica de facilitar a montagem, e suavizar a passagem/percepção do tempo, até que entramos em crescendo. Torna-se mais óbvio o que Anna está a pensar. O martelo acelera, até em modo assíncrono. A música em crescendo, mais sons entram na composição: o sino, o assobio, a chaminé, regressa a cacofonia. Anna está próxima do comboio, que arranca. Um som semelhante ao do martelo continua, sabendo-se que não pode ser o martelo mas aceitando-se que combina com o movimento visual, combina com a fixação premonitória. Pode soar ao mesmo, sendo outro objecto. Deixou de estar vinculado à acção, à correspondência visual — não deixando de o estar. De acordo com a teoria que o projecto Foley Acusmático tenta defender, esta é uma liberação sonora — à semelhança da proposta musical de Edgar Varèse13.

 

 

Em suma, este excerto traz-nos a possibilidade do som enquanto sugestão, desafiando a distinção entre som e música o que em última instância é também um desafio entre o conteúdo diegético e extradiegético. A consciência da possibilidade de criar um ponto de audição, que orienta a perspectiva, que focaliza ao apropriar-se da percepção do espectador e ao conduzi-la, permite-nos compreender som enquanto movimentador da narrativa. Esta concepção aproxima a prática sonora no Cinema da prática sonora na Música Concreta, fundamentada na audição desprovida de referências visuais ou objectivas. Mais importante, permite-nos pensar o som para cinema como composição musical.

 

Motivo Sonoro: A Sugestão

Manifestamente, a sonoplastia cinematográfica nem sempre foi criativa ou justa ao seu potencial. Para além dos exemplos já referidos, filmes pioneiros que arriscaram a equidade audiovisual, temos também casos tão contrastantes como Singing in the Rain (Donen e Kelly, 1952) Le vacances de Mr. Hulot (Tati, 1953). No primeiro caso, temos uma abordagem simplista e até pejorativa da introdução do som no aparato cinematográfico. Uma ilustração anedótica do uso do microfone em estúdio, objectos que produzem apenas ruído e perturbam o diálogo — em específico a cena em que o colar da personagem Lina Lamont (Jean Hagen) interfere com a captação do diálogo e não permite perceber as palavras. Até mesmo a ideia de que o microfone é um objecto estático, imóvel, e como tal os actores tinham de falar apenas naquela direcção14. Aqui, o som é inimigo do diálogo e da música, não deixando de ser simultaneamente advogado da verdade e ferramenta da mentira: torna-se impossível sustentar o (falso) talento de Lina Lamont; através do som percebe-se a sua incapacidade de representar e de fazer o que é necessário, mas também se mostra como o som é a ferramenta maior da ficção cinematográfica, um artefacto que corrige e expande a limitação visual. Se por um lado repõe a verdade, por outro permite a sua própria construção fictícia15.

Na mesma altura, temos o exemplo tão peculiar de Jacques Tati. Qualquer dos seus filmes é um exercício sonoro. O seu sentido rítmico está presente em Les vacances de Mr. Hulot, mas também em Playtime (1967), Mon Oncle (1958), entre outros. Em comum têm uma abordagem sonora minimalista, que maximiza o seu carácter. Cada personagem, cada objecto, cada cena tem um som. Na maior parte dos casos, todos esses sons têm também uma camada de humor que valoriza a cena. É caso para afirmar que Tati usufruiu de um recurso já estabelecido e como tal pôde quebrar essas convenções já existentes e estabelecer as suas próprias. Desta feita, o trabalho deste realizador, a par com os seus assistentes sonoros, é um exemplo de composição sonora. Para além de cada acção ser construída com base nos sons que produz, e ser através disso que a dramaturgia se constrói, os seus filmes introduzem a ideia inovadora de caracterização sonora. Por exemplo, em Les vacances de Mr. Hulot há uma porta que produz um som irrisório (no restaurante do hotel). Aquele som não obedece à convenção de realismo. Porém, todo o universo sonoro do filme acaba por sustentar e tornar aceitável que aquele som aconteça ali. Mais do que isso, é uma ideia sugerida pelo realizador e aceite pelo espectador. Faz parte. Ainda no mesmo filme, e logo no início, há uma viagem de carro. Dois carros a serem conduzidos. Dois carros que produzem um som absolutamente diferente um do outro. Essa diferença permite-nos entender as personagens, julgá-las pelo som que lhes é associado — até mais do que pela aparência visual. Desta forma, a possibilidade de um motivo sonoro asserta-se numa prática que caracteriza as personagens sonoramente: o espectador não precisa de ver a personagem para saber que dela se trata.

Um exemplo claro do que um motivo sonoro pode ser está em Once Upon a Time in the West (1968); certo que se trata de um exemplo musical: a harmónica de Frank é o seu som de marca, do início ao fim.

 

 

No entanto, para entendermos o que pode ser um motivo sonoro, teremos sempre de considerar que se trata de uma adaptação do conceito de Leitmotiv: um padrão musical que é associado a uma ideia específica. Neste caso, a ideia de motivo sonoro é consequência de uma época em que a sonoplastia se desenvolveu em vários campos. Assim sendo, «Foley Acusmático» defende uma prática em que o desenho de som em cinema é equivalente a compor uma paisagem sonora. Usufruindo destas (já não tão) novas áreas, como a Ecologia Acústica, a Música Concreta e a Arte Sonora em geral, é possível desenvolver uma prática cinematográfica que se emancipa da imagem. Por outras palavras, é uma prática que pode pensar o desenho de som para cinema como uma peça radiofónica – sobrevivendo ainda que desvinculada da imagem.

Exemplo disso, a sonoplastia de Madame B. (Bal e Williams-Gamaker, 2014) é composta por inúmeros exemplos de objectos sonoros e os respectivos padrões musicais que originam, os motivos sonoros das personagens, situações.

 

 

No caso, Emma Bovary (Marja Skaffari) enfrenta o vazio de numa sociedade onde não tem um papel activo. Numa cena em que a personagem está aborrecida, com pouco que fazer, todos os objectos na sua sala de estar são simultaneamente interessantes e fonte de aborrecimento. Nesta cena em particular, Emma entretém-se com a chávena de chá e a colher. Neste momento, é-me permitido usar esse som e expandi-lo, retirá-lo da imagem, torná-lo significante. Esta cena específica é um exercício de focalização sonora. Há também um tiquetaque do relógio de sala que acompanha as distracções da personagem: de cada vez que Emma se interessa por um objecto, o relógio pára — pára como ela, no tempo, naquele espaço, no vazio que nunca conseguiu ocupar. Mais importante do que isso, este som da colher de chá torna-se um signo daquele momento. Mais tarde, é-nos possível evocar pensamentos, sugerir ideias através deste som. Em qualquer momento o espectador entenderá o que uma cena significa, se esta camada for adicionada16.

Todavia, esta emancipação não representa necessariamente um rompimento com ou um manifesto contra as convenções cinematográficas. Nem tal faria sentido, uma vez já expostas as razões pelas quais se pode defender a arte sonora como fundadora dessas mesmas convenções. Por outro lado, também é necessário evidenciar que não se trata de uma prática restrita ao cinema minimalista ou experimental. Trata-se de criar um universo bi-sensorial que caracteriza uma realidade que existe sobre si mesma. Trata-se sobretudo de recorrer aos objectos disponíveis e de os potenciar. Prova de que isso não é exclusividade do cinema independente, temos por exemplo o caso da personagem Valentina (Lily Cole) em The Imaginarium of Doctor Parnassus (2009). Esta personagem usa um objecto sonoro: uma pulseira de guizos no tornozelo. Isso não só nos permite atribuir-lhe um reconhecimento sonoro como resolve a intriga no final da história: o seu pai, não sabendo do seu paradeiro, ouve-a passar na rua identificando-a de imediato (tal como o espectador). Desta forma, um motivo sonoro assenta na ideia de objecto sonoro. O recurso a esse objecto pode criar um padrão que se torna parte da caracterização de uma personagem. Eventualmente, este padrão adquire uma camada musical também, proporcionando uma experiência estética que vai além de códigos de entendimento e se valida sobretudo pela criação de uma ficção. Desta forma, o que todos estes exemplos têm em comum é uma prática sonora potencialmente acusmática: uma prática visualmente emancipada.

 

A Questão Acusmática

Foley Acusmático é uma teoria que surge através da prática assente na ficcionalização sonora. O recurso ao termo «Foley» não reduz o conteúdo sonoro a acções isoladas, mímicas. O termo visa apenas uma especificidade auditiva que tem por base a procura de um som definido, certeiro. Nesse contexto, abrange todas as camadas que constituem o desenho de som — essas camadas que compõem a paisagem sonora de um filme, ainda que com particular interesse pelos objectos materializáveis. Trata-se de uma partilha de conceitos entre o desenho de som para cinema e uma terminologia que está regularmente associada à arte sonora acusmática. Inevitavelmente, a abordagem é diferente. A referência visual estabelece uma diferença fundamental na forma como nos relacionamos com os sons. Por exemplo, em Ijspaard (Gamaker, 2014), o som do comboio tem um peso narrativo que dificilmente se atribuiria acusmaticamente17:

 

 

À semelhança de Madame B., ao longo dos 90 minutos de filme, há uma tentativa de caracterizar o enredo sonoramente. Nesse sentido, a catarse final pôde ser sintetizada sonoramente na sequência final do filme. Todos os sons que se evocam pertenceram à caminhada do herói. Acima de tudo, resumem essa caminhada (aqui simbolicamente visual) e anunciam a resolução da intriga18:

 

 

A diferença fundamental está na questão «o que é o objecto sonoro?». A música concreta reivindicou principalmente um objecto a ser ouvido apenas em termos acústicos, pela sua propriedade auditiva, desprovendo o som da sua referência não só visual mas também social, cultural, histórica – qualquer uma. Claramente, essa renúncia não pode acontecer no contexto cinematográfico, ao se tratar de uma relação bi-sensorial. Contudo, essa não é a maior diferença. A questão do objecto em Foley incide-se também na questão acústica, auditiva, mas inversamente. O som que um objecto produz pode não ser o som a que vai associar-se visualmente. Desta forma, a questão acusmática encontra-se em escolher o objecto pelo que é em si ou talvez pelo que se ouve em si. Várias são as reivindicações, na música concreta, de que o som é o que é em si, independentemente do significado que transporta. Então, o som Foley é conseguido com base naquilo que significa e não naquilo que é objectivamente. Por isso, teoricamente, será o objecto-sonoro (em Foley) o objecto real ou o objecto a que se associa visualmente, na ficção? É nesta questão que se forma o projecto «Foley Acusmático»: no facto de a arte sonora (acusmática) ter também uma dramaturgia particular, porém construída através de nomenclaturas emprestadas.

Neste sentido, poder-se-ia perguntar o que é o objecto em si, quando inserido num desenho de som vinculado a outro medium. Como pode esse objecto ser apenas som, se agregado a uma imagem? No fundo, o que se questiona é a possibilidade de uma audição reduzida, se o som não está reduzido a si mesmo19. Da mesma forma, pode questionar-se o inverso: como pode o som sobreviver enquanto ideia concreta se reduzido à sua natureza abstracta. Sem uma referência, todos os sons operam ao nível imaginário recorrem à referência cultural existente na memória de cada um. Qualquer som pode ser qualquer objecto, desde que o sujeito-ouvinte lhe atribua um padrão, o padrão a uma ideia, a ideia a um motivo sonoro.

 

Adenda

O projecto Foley Acusmático foi posteriormente apresentado na República Checa, a 25 de Setembro de 2015, através da Czech Radio (105 FM, Praga) e na BludnyKamen Gallery, em Opava, podendo essa apresentação ser ouvida aqui.
Esta apresentação contou, além da Fundação Calouste Gulbenkian, com o apoio dos Barandov Studios Cinepost: Sound4Film .

 

Notas

* Foley Acusmático é um projecto financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, através da Bolsa de Valorização Artística e Profissional em Artes no Estrangeiro.

1 «Motivo Sonoro» é uma adaptação do termo «soundmotif», que por sua vez deriva de Leitmotiv. No contexto desta pesquisa, motivo sonoro tem uma conotação musical nem sempre considerada em teorias da narrativa ou da montagem cinematográficas.

2 Schaeffer, P. (1966) Traité des objets musicaux. Paris: Éditions du Seuil.

3 Altman, R. (org.) (1992) Sound Theory/Sound Practice. Nova Iorque: Routledge.

4 Ament, V. (2009) The Foley Grail. Burlington: Focal Press.

5 Para uma análise tecnicamente contextualizada, ver Fischer, L. «Applause: The Visual and Acoustic Landscape», in Weis, E. e Belton, J. (orgs.) (1985) Film Sound. Nova Iorque: Columbia University Press.

6 Christopher Vogler dividiu a Jornada do Herói em 12 passos. Para uma consulta detalhada, cf. http://www.thewritersjourney.com/hero%27s_journey.htm.

7 Schafer, M. (2005) Soundscape: Our Sonic Environment and the Tuning of the World. Rochester: Inner Traditions Bear and Company.

8 Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut (Bresson, 1956) é exemplo do que um sound-signal pode fazer pela narrativa. É também exemplo da diferença entre motivo sonoro no contexto desta pesquisa e motivo sonoro num contexto de montagem fílmica.

9 Bal, M. (2002) Travelling Concepts in the Humanities. Toronto: University of Toronto Press.

10 Ze soboty na nedeli [De Sábado para Domingo] (Machatý, 1931) é exemplo da combinação possível entre medium vs. conteúdo sonoro. Existindo outros, a relevância deste está precisamente por acontecer no mesmo ano de Entuziazm (Simfoniya Donbassa) [Entusiasmo] (Vertov, 1929), que por sua vez é um paralelismo de Chelovek s kino-apparatom [O Homem da Câmara de Filmar] (1927). Entuziazm poderia ser intitulado «A Mulher da Rádio». Em Ze soboty na nedeli a pertinência está na composição sonora para além da utilização do medium.

11 Cf. http://filmphilosophy.squarespace.com/1-sergei-eisenstein.

12 Esta diferenciação é um alicerce primário do surgimento da Música Concreta, em França. É também o fundamento principal de toda a obra de John Cage, pioneiro da música aleatória e minimalista, fosse através de instrumentos tonais ou de sons quotidianos. É através desta simbiose entre som e propriedades musicais que poderei fundamentar o recurso à criação de motivo sonoro, como ferrramenta de focalização. Sobre John Cage, cf. http://www.ubuweb.com/sound/cage.html. Sobre música concreta, cf. http://www.britannica.com/EBchecked/topic/399309/musique-concrete.

13 Cf. http://music.arts.uci.edu/dobrian/CMC2009/Liberation.pdf.

14 Esta ideia é um pouco análoga à própria imobilidade das câmaras, no início actividade, porém inversa, uma vez que foi a invenção da perche que as tornou móveis. Sobre este assunto, cf. Lastra, J. «Reading, Writing and Representing Sound», in Weis, E. e Belton, J. (orgs.) (1985) Film Sound. Nova Iorque: Columbia University Press.

15 A título de curiosidade, Singin’ in the Rain não é o único exemplo em que o advento sonoro serve de trama narrativa. Em Sunset Blvd. (Wilder, 1950) a protagonista Norma Desmond (Gloria Swanson), sofre as mesmas consequências de Lina Lamont: a nova técnica torna-as obsoletas aos olhos dos produtores.

16 Para mais informação sobre este projecto, cf. http://www.miekebal.org/artworks/films/madame-b/. No caso, o projecto permite a constatação do que os conceitos objecto-sonoro e motivo-sonoro podem ser. Quer na versão longa-metragem, quer na versão instalação, existe uma paisagem sonora através da qual se entende a personagem principal. Para um excerto, cf. http://soundcloud.com/sarapini/emmasoundscape.

17 Para uma reflexão entre a relação entre som e narrativa, cf. «Staging Sound Fiction» in http://sarapinheiro.com/writings_en.php#pos5

18 Neste caso, nos créditos finais do filme optámos por sequenciar de novo os objectos principais que constituíram a história. A diferença entre uma trajectória e a outra é evidentemente causada pelo vínculo à imagem no caso visual, e a libertação no caso dos créditos finais. Cf. https://soundcloud.com/sarapini/ijspaards-soundmotifs.

19 Como em «reduced listening» (Chion, 1999).