O desafio central que nos coloca Anna Munster em Materializing New Media: Embodiment in Information Aesthetics (Hanôver, New Hampshire, University Press of New England, 2006), obra intimamente ligada à performance digital como uma forma estética, ética, política e social (caótica, indeterminada e híbrida) de resistência aos modos dominantes de uma cultura de informação (racional, eficaz, produtiva) «silenciadora» de novas modalidades do corpo, do espaço e do lugar, do tempo vivo e «ao vivo», do som, do biológico, da vida e do viver desligadas de uma enraizada e limitativa tradição cartesiana (se amamos o computador amamos Descartes, se amamos Descartes ficamos com pouco espaço para a coexistência do corpo com o digital e do digital com o biológico) -– é a formulação de uma genealogia radicalmente diferente, conceptual e estética, para as estéticas da informação na era digital, uma genealogia que evidencie a materialidade dos novos media. Essa genealogia passa necessariamente por pensar a nossa relação digital com as máquinas a partir da importância do corpo, da sensação, do movimento, do lugar e da duração, isto por oposição às ideias de uma transcendência da informação desmaterializada e de uma percepção «descorporalizada».
Para uma materialização dos novos media acontecer, torna-se, assim, indispensável considerar a relação tanto das novas tecnologias como da sociedade de informação com a dimensão corporal da existência. Torna-se necessário incorporar o corpo na reflexão sobre as nossas ligações com os novos media, no fundo, a matéria de experimentação da performance digital, que é também um processo de esbatimento de dicotomias (incluindo a própria lógica binária da cultura digital), de fronteiras disciplinares do mundo da arte, de artificiosas separações entre a arte e a vida e entre a arte e a comunicação. Trata-se de um processo em curso, de futuro indeterminado, em que o que era novo rapidamente se transforma em antigo, chamando-nos exatamente a atenção para o seguinte fato: os antigos media já foram novos media.
E, é bom dizê-lo, o mais primordial medium tecnológico, aquele que nos distinguiu como humanos, foi o próprio corpo, não em oposição ao cérebro, mas funcionando ambos como uma só dimensão da nossa tecnicidade humana, aquela que hoje em dia se afigura exatamente como pós-humana -– tornando-se o espaço, o tempo e o como dimensões aparentemente obsoletas das nossas vidas.
Essa tecnicidade pós-humanista afigura-se para Munster como entrópica e exclusiva, ou seja, como uma força conceptual (um sistema fechado) de oposição à possibilidade de inclusão do corpo na experiência estética contemporânea, manifesta, por exemplo, através de interfaces gestuais com o digital (incluindo os videojogos); sensores de movimento e transmutação do corpóreo em digital; múltiplas extensões mediais do corpo vivo na performance digital (com um sentido de lugar, de duração e de hibridez); ambientes imersivos (não só de «realidade virtual» mas também de «realidade aumentada» e sobretudo de «realidade mista»); percepções de bancos de dados como experiências sensoriais e reflexivas sobre o próprio corpo; amplificações e expansões da consciência do corpo, tanto dos artistas como dos espectadores tornados objetos da percepção, da sensação e da emoção; performatividades sociais e performatividades médicas e consequentes apropriações pelo domínio da arte; explorações na bioart; plataformas experimentais online, etc.
Anna Munster refere, a este propósito, que parte da teorização contemporânea sobre «o corpo» e a sua existência viva confere ao mesmo um papel determinista e distintivo, considerado na sua autonomia e não na relação recíproca e instável, produtora de diferenças, entre o corpo e as novas tecnologias. Mais do que uma mera herança de características substantivas, os corpos individuais na contemporaneidade «casam-se», numa microperspectiva, com os códigos digitais para produzirem «novas e diferentes sensações e novos e diferentes afetos». Numa macroperspectiva, essa nova dimensão da experiência (sensitiva, afetiva, sinestésica e proprioceptiva) dá-se também ao nível social, coletivo e cultural na forma como a informação se transmuta num fluxo global através de condições não estandardizadas de distribuição, transmissão e recepção.
«Under global conditions, time and place have enormuous impact upon the speeds and rhythms at which informatic code and living bodies interact. It is not that bodies, time and space have disappeared from digital culture, but the experience of them has shifted to the arenas of technological speeds, lived intensities and information flows. This emerging digital culture, globally circulating and locally experienced, places humans in differential relations with bodies everywhere. It is the movements, modulations and transformations peculiar to global digital culture that make the political and ethical relations we form (or deny) with other bodies so important. (p. 185)
Num contexto de convergência digital e concomitante apropriação medial, é imperativo compreender, como Anna Munster defende, que os corpos humanos constituem as forças em interação com os novos media mais dotadas de um poder de divergência, de ambivalência, de caos e de interrupção, forças essas que as próprias máquinas parecem não «poder dispensar». O poder expansivo do corpo é, assim, capaz de marcar o ritmo, a interação e a relação que nós temos e somos capazes de ter com os meios informáticos: «Bodies reconfigure digital culture through rhythms of variation driven by place, habit, history, circumstance and accident.» (p. 185)
Contudo, a perspectiva de Anna Munster não é, como já foi referido, determinista. Na origem desta possibilidade, encontra-se a constatação de que o caráter distintivo da cultura digital não é opositor ou exclusivo mas antes sináptico, ou seja, procura o estabelecimento de conexões no decurso das suas variações e falhas, manifestando direções ambivalentes de conectividade e desconectividade. A permeabilidade da cultura da informação implica a análise da materialização digital do corpo como um jogo instável e desigual, com um impacto diferencial entre o corpo e a tecnologia e a tecnologia e o corpo.
«Informatic bodies no longer summon the immediate presence of corporeal existence, which can be affirmed through habitual codes and conventions of visual representation. They disclose a body’s potential for becoming different, for transmutation. Information does not simply represent a body or corporeal experience; it renders the emergent properties and capacities of bodies as mutable states that are variable (and delimited) within certain parameters.» (p. 180)
Desta forma, para Munster, não se pode conceber a tecnologia como uma realidade transcendente à história mas antes como uma realidade imanente a esta. Consequentemente, torna-se enganador partirmos do pressuposto de que a tecnologia moderna atingiu o seu apogeu na era do digital e da cibercultura. Mais ainda, é importante contestar as celebrações pós-evolucionárias e pós-biológicas da máquina, que conferem à tecnologia um lugar utópico e transcendental no desenvolvimento cultural, situando-o espacial e temporalmente «fora do corpo» e «dentro da consciência», como se a emoção se apagasse perante a razão na última estação do «progresso civilizacional».
«Rather than enquire into the overall cultural meaning of the digital, I have specifically looked for the points of intersection that digital flows have with the issues of embodiment. Instead of an interdisciplinary study launched from established disciplines such as media and cultural studies, this project proposes and puts into motion the idea of transversal technological studies. The transversal can be configured as a diagram rather than a map or territory: directional lines cross each other, forming intersections, combining their forces, deforming and reforming the entire field in the process. By taking this transversal route as a proposal for travelling the circuits of new media, it is possible to understand digital culture itself as a series os diagrammatic lines. Its intersections trace points and inflections in an ondulating curvature of code, silicon, carbon, embodiment, socialities, economies and aesthetics.» (p. 24)
Para levar a cabo esta viagem, Munster divide a sua argumentação em cinco capítulos (para além da introdução e do posfácio): um primeiro capítulo intitulado «Sampling and Folding: The Digital and the Baroque»; um segundo capítulo intitulado «Natural History and Digital History»; um terceiro capítulo intitulado «Virtuality: Actualizing Bodies, Abstracting Selves»; um quarto capítulo intitulado «Interfaciality: From the Friendly Face of Computing to the Alien Terrain of Informatic Bodies»; e um quinto capítulo intitulado «Digitality: An Ethico-Aesthetic Paradigm for Information».
No primeiro capítulo, Munster defende que fenómenos da cultura contemporânea como a clonagem, a samplagem de sons ou a produção do espaço urbano como réplica de espaços virtuais modelados pelo computador não podem ser compreendidos sem o recurso ao conceito de «diferencial». Se o clone e a samplagem de imagens ou sons são habitualmente entendidos como fenómenos de replicação perfeita (numa indistinção entre original e cópia), devem também ser entendidos na relação variável dos seus momentos de repetição. Isto significa reintroduzir na análise da cultura de informação o valor do intervalo, da não-captura, do mau funcionamento, do ruído, da perda, e das flutuações aleatórias imanentes à materialidade do digital.
Associado a esta ideia surge o conceito de «dobra». Literalmente, um pedaço de tecido ou papel dobrado é simultaneamente confluente e dissonante ou convergente e divergente. Este conceito torna-se particularmente interessante na resposta à questão: de que é que o digital se desdobra? E, mais uma vez, chama-nos à atenção para uma menos pensada genealogia da cultura digital, aquela que considera o corpo e o código como variáveis relacionadas diferencialmente, com implicações extensíveis à relação entre as categorias do orgânico e do técnico ou do natural e do artificial. Mais do que pensar o corpo e o código como unidades predefinidas capazes de se determinarem mutuamente ou de produzirem assimilações características das figurações do cyborg ou das concepções pós-humanistas, trata-se agora de compreender que viver com as máquinas contemporâneas digitais produz, antes, encontros quotidianos de desdobramento, de divisão e de reverberação, que devem ser entendidos como novas dimensões das nossas experiências corporais.
«The baroque can, in its own time, be seen as marking out a topography in which the relations of connection and difference between lived bodies, material objects, scientia and the passions formed a mesh of enfolded territories. Increasingly these kinds of relations are also becoming a viable mode for articulating the materiality-information relationships of our contemporary digital habit.» (p. 32)
É esta topologia original, que pode ser entendida, num modo temporal, como uma genealogia que produz um vetor do barroco até ao digital, que Munster desenvolve neste capítulo.
No segundo capítulo, Munster defende, basicamente, que o entendimento do digital apenas como uma tecnologia e a compreensão desta tecnologia apenas como um mero código informático tem como consequência um apagamento dos intervalos e das disjunções entre o universo da informação e o universo do mundo natural. Ao introduzirmos a história da natureza na história da cultura digital (de uma forma não redutora), seremos capazes de produzir um acréscimo de significado sobre as estéticas da informação.
Assim, deveremos ter em conta que o universo da informação não é determinado pelas mesmas forças do mundo natural nem transcende a própria matéria, por definição o domínio da natureza. Se traçarmos as histórias «diferenciais» da história natural estaremos mais aptos, segundo Munster, a compreender a «natureza» digital contemporânea, de um ponto de vista já pré-figurado no barroco através das relações articuladas entre o mundo orgânico, a ciência da natureza e a estética, relações essas compreendidas e sentidas de forma essencialmente «apaixonada».
O terceiro capítulo aborda, essencialmente, o paradoxo de a realidade virtual também poder contribuir para a produção de experiências tecnológicas materializadas corporalmente. Isto se considerarmos a necessidade de as estéticas de informação inventarem uma afetividade para a sua cultura a partir das sensações e percepções que a tecnologia produz. Para Munster, o problema que a RV coloca não está tanto do lado da desmaterialização da experiência real do corpo ou no movimento para uma dimensão incorporal da existência. O problema reside, antes, no fato de estas tecnologias reclamarem para si mesmas a virtualidade como uma propriedade única e exclusiva. A RV esconde, na sua definição ontológica, outros modos de ser virtuais, através da tentativa de legitimar o seu estatuto como o único modo de alterar tecnologicamente a nossa experiência do mundo. A RV deve, portanto, ser entendida meramente como um dos modos, entre inúmeros outros possíveis, de organização da própria virtualidade.
«Artists have used strategies of reversal and subversion that promote drift and disorientation over the navigability and task-oriented character of more mainstream virtual spaces. Yet what is nevertheless forming across all kinds of virtual environments, those where time compacts and space intensively unfolds, is the production of a new kind of embodiment.» (p. 108)
No quarto capítulo, Munster aborda a questão das interfaces como dispositivos de interação entre o corpo e o computador, relevando a compreensão das suas diversas manifestações a partir de exemplos concretos de artistas –- David Rokeby, Diana Ludin, Alan Dix, Stelarc, Arthur Elsenaar, Dunning and Woodrow, Justine Cooper, Myron Krueger — cujo trabalho se pode incluir na designação abrangente de «performance digital».
Uma preocupação comum a estes artistas é o desenho de interfaces dinâmicas, simultaneamente evanescentes e palpáveis, procurando-se ultrapassar o preconceito dominante de se entender a interface apenas como um requisito de representação ou tradução da funcionalidade informática para um «utilizador inapto». Deste modo, surgem momentos (coisas produzidas) de exceção, como resposta à tendência de desmaterialização característica da cultura digital.
Na sequência da sua argumentação, Munster utiliza aqui, mais uma vez, os conceitos de «dobra» e «diferencial». A «dobra» designa a interface como uma topologia e um movimento de extensão e envolvimento entre o corpo e o computador, enquanto o «diferencial» indica uma relação irresolúvel entre forças materiais e forças incorporais.
«Digital media involve a translation of the continuity of embodied experience into a discontinuous code, severing the indistinct foldings of intensive corporeality. In the history of interface design, interfaciality has tried to screen out the qualitative differences between the informatic and the embodied registers by attempting to humanize the computer, has attempted, in short, to erase computational and human differences. But it can only do so by pretending that the engagement between humans and digital technologies occurs primarily at the communicative and cognitive levels. The concomitant effect of locating the interface relation there is to rule out the possibility of code engaging embodied experience through the body’s incorporeal dimensions. The undervaluing of “the body” as a brute and inert force emerges as a secondary consequence of interfaciality and produces a desire to assimilate the human to the machine and lose the qualitative difference of the space betwween, the inter-face, altogether. […] Yet it is in those gaps betwween corporeality and information that the interface as a dissonant folding, an interfolding, emerges. Instead of situating bodies as inadequate, we might look at ways in which embodiment can be conceived of as open and dynamic, operating and traversing these gaps; not a propertie that “I” have but something I produce, that is produced, in relation to other bodies and machines.» (pp. 48-49)
No último capítulo, Munster convoca a questão da dificuldade de se estabelecer um paradigma ético-estético para a cultura digital, dada a sua ubiquidade e mutabilidade constante. A defesa de um tal paradigma passa hoje, necessariamente, segundo a autora, pelas dimensões sociais e políticas da existência, não só pelas formas como estamos ligados uns aos outros mas sobretudo pelas formas como estamos ligados ou não às tecnologias, operando-se desse modo conectividades e desconectividades à escala global. A definição da autonomia de um campo artístico, como a performance digital, passará necessariamente por uma prática auto-reflexiva que nos confronte com esta realidade. Não se trata apenas de criar novas experiências perceptivas, trata-se sobretudo de se produzirem novas relações sociais, políticas e éticas, relações essas indissociáveis da legitimação da estética como domínio de experimentação cada vez mais ligado à realidade quotidiana e à ideia de «performatividade social».
Vasco Diogo nasceu em 1970 em Lisboa. Trabalha nas áreas da investigação, do teatro/performance, cinema, vídeo e multimedia. Desde 2009 é professor auxiliar no departamento de Comunicação e Artes da Universidade da Beira Interior (Covilhã). É doutorado em Ciências da Comunicação pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa com a tese Vídeo: Especificidade, Hibridez e Experimentação. Em teatro destaca a sua colaboração, como ator e co-criador, com o Projecto Teatral (1997-2003). Em vídeo destaca as performances ao vivo Just Say No>/em> (2001), Ilustração (2004), Desenhos Animados (2003-2005) e CU* (2005) e a apresentação de instalações e vídeos mono-canal, como Série Y (2001) ou Physical Form (2003), em festivais em França, Alemanha, EUA, Holanda, Bélgica, Sérvia, Canadá e Brasil.