Me Myself and I: A Ciberformance no Metaverso

Frame de Me Myself and I: Vídeo-arte a partir de performance no Second Life e de imagem real, 2010.

Frame de Me Myself and I: Vídeo-arte a partir de performance no Second Life e de imagem real, 2010.


Frame de Me Myself and I: Vídeo-arte a partir de performance no Second Life e de imagem real, 2010.

Frame de Me Myself and I: Vídeo-arte a partir de performance no Second Life e de imagem real, 2010.

 
Me Myself and I, um work in progress, é um projecto de performance desenvolvido entre o Second Life e o primeiro mundo. Através desta obra, reflicto sobre a obsolescência do corpo e sobre a necessidade da sua ampliação, sobre a nossa emergente condição pós-humana que conduz a um novo conceito de corporalidade, sobre a questão da presença na performance digital e sobre a problemática da identidade no cibermundo ou metaverso.

Em Me Myself and I, as gravações de uma performance online efectuada em tempo real pelo meu avatar, Lux Nix, e participada por uma audiência, são intercaladas com imagens de vídeo do meu corpo. A coreografia foi criada para o avatar e é reproduzida — com os constrangimentos do real — pelo meu corpo.

Me Myself and I define-se como uma ciberformance. Neste artigo viso a definição deste termo como identificador de toda a performance efectuada online e contextualizo-a recorrendo a exemplos.

 

Para uma Definição de Ciberformance

Teatro digital (Giannachi, 2004), ciberteatro, ciberdrama (Murray, 1997), hiperperformance, performance digital (Dixon, 2007), ciberperformance, ciberformance (Jamieson, 2008), post-organic performance (Causey, 2006)… Termos para algo comum, mas diverso, tentativas de designar uma forma de arte já com alguma história.

Escolhemos o termo que nos parece mais abrangente e mais produtivo para caracterizar experiências performativas liminares que acontecem desde os anos 90 mas que ganharam um novo fôlego com o desenvolvimento dos mundos virtuais tridimensionais.

Assim, tentaremos definir, com Helen Varley Jamieson, membro do colectivo Avatar Body Collison, as características do que esta performer cunhou como ciberformance.

Começaremos com uma breve definição — baseada no seu Manifesto (2008: 34-40) – após o que passaremos a uma contextualização histórica.

 

Breve Definição

Para começar, a ciberformance acontece ao vivo — há uma interacção entre os performers e o público e qualquer documentação produzida como resultado (fotos, vídeo) não deve ser tomada como o trabalho em si.

Este tipo de obra tem necessariamente de estar situado no ciberespaço — utilizando para o efeito chat rooms (IRC, Internet Relay Chat), jogos de computador como MUDs (Multi User Dungeon ou Domain), MMOG (Massively Multiplayer Online Game) ou MMORPG (Massively Multiplayer Online Role Playing Game), chats gráficos, como o Athemoo ou o Lambdamoo, mundos virtuais usados em tempo real por vários utilizadores, como The Palace ou Second Life ou ainda plataformas criadas para o efeito, como, por exemplo, o UpStage, dedicado à performance virtual.

Uma outra característica da ciberformance é que é distribuída e partilhada – os seus performers e o público estão distribuídos fisicamente e a experiência da performance é partilhada e activada em tempo real.

Uma vez que está dependente da ligação à Internet, é também telemática, ou seja há convergência de redes de telecomunicações com computadores mas não se trata de vídeoconferência ou de distribuição de vídeos ou gravações. Na sua construção, os performers geram telepresença (Kác, 2005) ou presença virtual, mais, ou menos, imersiva.

A ciberformance é também um tipo de atitude: como o seu medium é instável, é arriscada, ultrapassa fronteiras e é experimental, tanto na forma como no conteúdo. Lida com assuntos contemporâneos, incorporando a tecnologia no conteúdo (como acontece com Me Myself and I) e representando as contradições e idiossincrasias do mundo pós-moderno.

A justaposição, o contraste e a frustração de expectativas transforma a ciberformance numa performance liminar (Broadhurst, 1999), reminiscente do avant-garde, ou seja, as suas regras formais são descartadas, desconstruídas, numa abertura à experimentação e à inovação.

A ciberformance utiliza diversas fontes, tanto a nível da tecnologia como da forma ou do conteúdo, o que lhe confere também uma característica intermedial (Chapple e Kattlenbelt, 2006) e híbrida (Kaye, 1996).

O que também a caracteriza é o facto de ser inacabada, incompleta, a verdadeira «Obra Aberta» de Umberto Eco (1989). A obra não existe até ser apresentada a uma audiência, ou seja só existe na interactividade.

Por fim, a ciberformance é performance digital, está dependente da tecnologia digital e não pode acontecer sem a utilização do computador. E, notemos, uma rápida utilização das teclas do computador, porque o trabalho de manipulação dos avatares e dos ambientes exige perícia manual. A ciberformance é tão digital que poderíamos dizer «break a digit», parte o dedo, em vez do tradicional «break a leg» (parte uma perna) — expressão anglo-saxónica usada para desejar boa sorte aos actores no teatro.

Acrescentamos a este ponto do Manifesto de Jamieson que o facto de a ciberformance estar dependente da tecnologia digital não implica uma utilização reduzida ao binómio mão-olho, uma vez que com certas interfaces se podem usar outras partes do corpo ou todo o corpo (por exemplo através de motion capture usando uma simples webcam ou a consola de alguns jogos).

Steve Dixon, no seu livro Digital Performance, afirma que o final dos anos 90 foi a idade de ouro deste tipo de arte — precisamente devido ao avanço das tecnologias digitais e da Internet nessa altura –: no entanto, não podemos dizer que seja uma arte em decadência, uma vez que o desenvolvimento das interfaces e das possibilidades técnicas do virtual nos abrem novas perspectivas de uma performance cada vez mais interactiva, participada e imersiva.

 

Contextualização

Foi no princípio dos anos 90, através de chats e de MUDs, que surgiram as primeiras experiências, a princípio textuais, integrando grafismo mais tarde.

Hamnet, estreado num chat, em 1993, é considerada a primeira performance documentada. Tratava-se de um fórum de performance participada em que uma versão de 80 linhas do Hamlet de Shakespeare foi apresentada pelo grupo Hamnet Players.

Hamnet, dos Hamnet Players, 1993.

Hamnet, dos Hamnet Players, 1993.

 
Esta estreia foi seguida do aparecimento de outros grupos como o Desktop Theatre ou os Plaintext Players, especializados em improvisações textuais dirigidas.

The Roman Forum Project, criado por Antoinette LaFarge e Robert Allen para os The Plain Text Players, 2003.

The Roman Forum Project, criado por Antoinette LaFarge e Robert Allen para os The Plain Text Players, 2003.

 
Nesta época áurea da performance textual e gráfica apareceram ainda espaços dedicados à performance como o Athemoo, um espaço para troca sobre a performance online apoiado pela Universidade do Hawai, e o The Palace, onde se encontra uma série de portais temáticos de chat com avatares gráficos.

Um dos salões ou chat rooms de The Palace.

Um dos salões ou chat rooms de The Palace.

 
Mais tarde, em 2007, surge Up Stage, um software desenhado para acolher performance online, subsidiado pelo governo da Nova Zelândia.

Durito’s Dancing Box Manifesto, uma das ciberformances apresentadas no UpStage 2009.

Durito’s Dancing Box Manifesto, uma das ciberformances apresentadas no UpStage 2009.

Durito’s Dancing Box Manifesto, uma das ciberformances apresentadas no UpStage 2009.

Durito’s Dancing Box Manifesto, uma das ciberformances apresentadas no UpStage 2009.

 
Avatar Body Collison foi o grande impulsionador da criação desta última plataforma. Este grupo, formado em 2002, é constituído por quatro mulheres incluindo a já citada Helen Varley Jamieson, e tem desenvolvido trabalhos fundamentais para a afirmação da ciberformance tanto a nível prático como a nível crítico e mesmo académico. Entre Londres, Helsinkia, Nova Zelândia, Austrália e o ciberespaço ensaiam e apresentam peças em várias plataformas usando software livre.

Swim é um exemplo em que cruzam performance apresentada ao vivo num teatro com intervenções telemáticas das performers ausentes, juntamente com a participação dos avatares em ambientes virtuais.

Swim: An Exercise in Remote Intimacy, de Avatar Body Collison, 2003.

Swim: An Exercise in Remote Intimacy, de Avatar Body Collison, 2003.


Swim: An Exercise in Remote Intimacy, de Avatar Body Collison, 2003.

Swim: An Exercise in Remote Intimacy, de Avatar Body Collison, 2003.

 
A partir do aparecimento do Second Life, em 2003, surgiram vários grupos que aproveitaram esta plataforma e se distanciaram da interacção muito baseada no texto, no grafismo fixo e na telemática para animar projectos mais ambiciosos a nível do movimento dos avatares e da criação de cenários e ambientes.

Kitano Odori, peça de kabuki apresentada pelos avatares do grupo Gion Kabu no Second Life.

Kitano Odori, peça de kabuki apresentada pelos avatares do grupo Gion Kabu no Second Life.

Kitano Odori, peça de kabuki apresentada pelos avatares do grupo Gion Kabu no Second Life.

 
Com uma grande ligação ao teatro clássico — neste caso ao Kabuki japonês — temos o exemplo do grupo Gion Kabu e, vindos da dança clássica, os trabalhos do Ballet Pixelle.

Um dos ballets clássicos do Ballet Pixelle no Second Life.

Um dos ballets clássicos do Ballet Pixelle no Second Life.

Um dos ballets clássicos do Ballet Pixelle no Second Life.

Um dos ballets clássicos do Ballet Pixelle no Second Life.

Um dos ballets clássicos do Ballet Pixelle no Second Life.

Um dos ballets clássicos do Ballet Pixelle no Second Life.


Este grupo faz, inclusive, audições aos avatares interessados em participar nas suas coreografias, onde não se exige que saibam dançar em pontas, mas sim que saibam usar o inventário de gestos do Second Life com destreza digital.

Eva e Franko Mattes, hacktivistas do grupo 0100101110101101.org, são dois performers que têm desenvolvido o seu trabalho na Internet em geral mas que desde 2007 vêm apresentando a série Synthetic Performances, re-encenações de performances históricas em mundos «sintéticos» como o Second Life. As acções são executadas pelos avatares de Eva e Franko, construídos a partir da sua imagem real, e incluem a performance Imponderabilia de Marina Abramovich, o famoso Shoot de Chris Burden — em que o artista se fez alvejar num braço com uma arma de fogo — e outras performances de Valie Export, Vito Acconci e Gilbert & George, entre outros. Algumas dessas ciberformances são apresentadas em simultâneo no primeiro mundo, geralmente em galerias de arte.

Eva e Franko Mattes aka 0100101110101101.org reencenam performances históricas no Second Life.

Eva e Franko Mattes aka 0100101110101101.org reencenam performances históricas no Second Life.

 
Mas talvez o projecto mais radical seja o dos Second Front, sem ligações ao teatro ou à dança e mais enraizado na performance — propriamente dita — do primeiro mundo. Formados em 2006, as suas intervenções são geralmente marcadas por uma crítica social, designadamente de cariz ecológico, ou manifestações mais abstractas, de raiz ontológica ou metafísica.

Temos como exemplo uma performance sobre a matança dos golfinhos no Mediterrâneo ou outra sobre a questão da identidade no metaverso, em que os avatares perderam a cabeça…

Em Losin’it (2009) dos Second Front, os avatares levantam questões de identidade…

Em Losin’it (2009) dos Second Front, os avatares levantam questões de identidade…

 
Também conceberam uma performance inspirada na peça Car Bibbe de um dos membros da Fluxus, Al Hansen e numa outra assaltam os cofres dos proprietários do Second Life e queimam pilhas de dinheiro…

Pelo meio das provocações inspiram-se em temas da actualidade como a paródia que fizeram aos aceleradores de partículas que talvez possam criar buracos negros…

Numa outra acção equacionam a questão da obsolescência do corpo perguntando a utilizadores do Second Life o que há de melhor do que ser uma avatar que não morre, não fica doente, voa e teletransporta-se. O que há de bom na First Life, na Primeira Vida, questionam. As entrevistas foram transmitidas através de video streaming no Second Life.

Second Front: Virtual Identity Theft, instalação no Second Life e na galeria SF Camerawork, San Francisco, 2008.

Second Front: Virtual Identity Theft, instalação no Second Life e na galeria SF Camerawork, San Francisco, 2008.

 

Ambientes Corporalizados

As potencialidades de plataformas como o Second Life começam entretanto a ser exploradas em projectos mais ambiciosos. É o que acontece nos projectos Weathering In/Com Tempo e Senses Places — concebidos por Isabel Valverde, coreógrafa, e por Todd Cockrane, engenheiro informático.

Enquadram-se ambos num projecto de dance-tech que questiona a redução da nossa inteligência corporal, criando um ambiente híbrido e corporalizado onde os participantes interagem física e virtualmente uns com os outros e com o ambiente em si que está ligado a sensores meteorológicos em Portugal e na Nova Zelândia. Sensores nos corpos dos participantes permitem ainda a utilização de dados biométricos na interacção entre avatares e ambiente virtual.

Imagem do projecto Weathering In/ComTempo (2010) de Isabel Valverde e Todd Cohrane.

Imagem do projecto Weathering In/ComTempo (2010) de Isabel Valverde e Todd Cohrane.

 
Nas sociedades de consumo actuais perdemos corporalidade [embodiment] em favor de um aumento da comunicação e do conhecimento. A tecnologia muda rapidamente mas continuamos ainda agarrados ao audiovisual, ao computador como uma boxed interface, uma «interface encaixotada», ao movimento minimal mão-olho. É o que acontece quando interagimos no Second Life, por exemplo. É, pois, necessário criar experiências mais hápticas, mais out of the box [fora da caixa], onde exista uma virtualidade aumentada, como prenunciam projectos como Wethering In/ComTempo e Senses Places.

A performance Me Myself and I surge enquadrada neste contexto da ciberformance e pretende reflectir sobre o seu desenvolvimento.

 

Bibliografia

Broadhurst, S. (1999) Liminal Acts: A Critical Overview of Contemporary Performance and Theory, Nova Iorque, Cassel.

Causey, M. (2006) Theatre and Performance in Digital Culture: From Simulation to Embeddedness, Londres, Routledge.

Chapple, F. e Kattenbelt, C. (2006) Intermediality in Theatre and Performance (2.ª ed.), Amesterdão, Rodopi.

Dixon S. (2007) Digital Performance: A History of New Media in Theatre, Dance, Performance Art, and Instalation, Cambridge, Mass., The MIT Press.

Eco, U. (1989) The Open Work, Cambridge, Mass., Harvard University Press.

Giannachi, G. (2004) Virtual Theatres, Londres, Routledge.

Kac, E. (2005) Telepresence and Bio Art: Networking Humans, Rabbits and Robots, Ann Arbor, MI, University of Michigan Press.

Kaye, N. (1996) Art into Theatre: Performance Interviews and Documents, Londres, Harwood Academic Publishers.

Jamieson, H.V., (2008) Adventures in Cyberformance: Experiments at the Interface of Theatre and the Internet, Dissertação de Mestrado em Drama, policopiada, Creative Industries Faculty, Queensland Universty of Technology.

Murray, J. (1997) Hamlet on the Holodeck, Nova Iorque, The Free Press.