O Ser Humano e as suas (Re)Criações: Ficção e Ironia do Destino

A palavra «robot» surgiu pela primeira vez na peça Rossum’s Universal Robots (1920) de Karel Čapek. Na sua origem está a palavra checa «robota» que significa «trabalho árduo» ou «escravatura». Os robots da empresa R. U. R. haviam sido criados para substituírem o ser humano em tarefas pesadas e repetitivas. Eles acabam por revoltar-se contra os seus criadores, provocando o final da raça humana. No filme Demon Seed (1977) o computador Proteus executa a manutenção da casa mas mantém um terminal ligado ao laboratório do seu criador. Proteus deseja inseminar a proprietária com espermatozóides sintéticos para libertar-se através do seu descendente. Tal como em muitas obras de ficção científica, Demon Seed apresenta uma criação que deseja conquistar autonomia. Ela espelha os riscos de uma dependência exacerbada em relação à tecnologia e acalenta a suspeita de uma revolta das máquinas contra o ser humano. Contudo, fora do mundo da ficção, uma casa equipada com todo o tipo de dispositivos poderia tornar-se num centro de operações caótico, povoado por beeps e conflitos de sistema. Para além disso, a capacidade de um robot reagir à imprevisibilidade é limitada. No vídeo «Asimo Avoids Moving Obstacles» é possível ver como Asimo (nome inspirado no apelido do escritor de ficção científica Isaac Asimov) reage a alterações do meio ambiente. Apesar das crescentes conquistas na área da robótica, ainda não foi alcançada uma forma eficaz de comunicar com estas criaturas evitando assim situações como a do aprendiz de feiticeiro. Por seu turno, persiste a necessidade de encontrar um design que anule o efeito de estranheza comum a este tipo de criações.

Num anúncio publicitário a uma marca de automóveis, um pequeno robot de lata assiste à exibição de habilidades por parte de um robot de última geração. Ao longo do anúncio ouve-se Tin Man declarar o desejo de ter um coração. Num outro anúncio, desta vez a uma marca de bebidas alcoólicas, um andróide confessa que gostaria de tornar-se humano porque só este pode alcançar a imortalidade através da concretização de grandes feitos. Num videoclip da artista Björk, o amor é representado através da troca de afectos entre duas fembots. Este conjunto de criaturas apresenta características consideradas como exclusivamente humanas. Todas elas tecem um elogio ao ser humano e não parecem apresentar qualquer ameaça. No entanto, apesar de inofensivas e sensíveis, o que aconteceria se elas ocupassem a mesma dimensão espácio-temporal de um ser humano? Certamente seriam rejeitadas e apelidadas de aberrações. Num outro anúncio a uma marca de automóveis é possível ver um robot que transforma um veículo numa tela. Assim que um ser humano se aproxima, ele apaga a sua pintura.

Numa adaptação do mito do Golem, onde o conflito interior do protagonista é comparado à estranheza provocada por esta criatura, Meyrink refere que «só se pode odiar profundamente uma coisa que faça parte integrante de nós próprios» (Meyrink, 1990: 131). As criações não têm autonomia. São programadas para cumprir uma finalidade e agem de acordo com as directivas fornecidas. Na ficção, a produção de criaturas é frequentemente retratada como uma usurpação do poder divino ou como uma revolta prometeica. O castigo subsequente surge como uma advertência dirigida às gerações vindouras. Porém, o ser humano continua a perseguir esse sonho. Isto acontece porque a robótica e a inteligência artificial não são apenas usadas na produção de ferramentas ou robots, mas também no próprio ser humano. Em causa está a ambição de encontrar novas formas de contrariar a mortalidade. Graças às novas tecnologias – que permitem um tratamento de dados cada vez mais célere e eficiente e uma análise da matéria a uma escala cada vez mais diminuta – o desafio tornou-se irrecusável.

Para muitos autores a nanotecnologia poderá vir a tecer um elo definitivo entre o mecânico e o biológico o que levará a uma recriação radical do ser humano. Em Singularity is Near (2005), Raymond Kurzweil refere que o ser humano está a tornar-se num cyborg e que futuramente, por intermédio da nanotecnologia, poderá vir a ser alcançada uma «versão 3.0» do corpo humano (Kurzweil, 2005: 309-310). Criado no contexto da exploração espacial, o termo cyborg referia-se à necessidade de colaboração entre o cibernético (cyb — artificial) e o orgânico (org — natural) para superar as limitações físicas do ser humano. Contudo, a aplicação deste termo veio a alterar-se. Na década de 80, Donna Haraway afirmava que as barreiras entre humano e não-humano, artificial e natural haviam desaparecido. Para a autora, o cyborg é um «cybernetic organism, a hybrid of machine and organism, a creature of social reality as well as a creature of fiction» (Haraway, 1991: 149). N. Katherine Hayles, referindo-se à condição pós-humana, salientou que o ser humano não necessitava de ter implantes ou próteses para ser um cyborg (Hayles, 1999: 3). Para a autora, o corpo seria uma «prótese original», pelo que tudo o que lhe fosse agregado seria como a continuação de um processo natural. Ao longo da sua existência, o ser humano encontrou formas de conferir autonomia às suas criações recorrendo à força do vento, aos cursos de água ou à tracção animal. Quando a automatização do trabalho foi alcançada durante a Revolução Industrial, desencadeando as insurreições ludditas, a autonomia das máquinas perante os seus criadores tornou-se pela primeira vez numa razão de ansiedade. Contudo, a tecnologia não pode ser vista como um fenómeno independente. Ela está de tal forma presente na história da humanidade que permite diferenciar as diversas fases da evolução humana.

A produção de robots com aparência e comportamento humanos é provavelmente a primeira tecnologia que está a ser construída tendo em vista os seus efeitos negativos (Bar-Cohen e Hanson, 2009: 149). A ficção científica poderá ajudar nessa tarefa. Ao passo que os inúmeros resultados são calculados dentro da ficção, o ser humano ganha a oportunidade de reflectir sobre o futuro. Em The Positronic Man (1993), o robot-mordomo Andrew procedeu a várias transformações físicas para tornar-se humano. Os sucessivos upgrades a que se submeteu resultaram em descobertas valiosas na área da medicina permitindo que várias pessoas beneficiassem dos órgãos artificiais criados ao longo da sua metamorfose. A história de Andrew deixa entrever uma ironia do destino. Enquanto o ser humano torna as suas máquinas mais humanas, ele adapta os resultados deste processo ao seu corpo. Apesar das inúmeras advertências baseadas numa dicotomia entre artificial vs. natural, ele está progressivamente a reformular-se através do conhecimento adquirido na construção das suas criações.

A capacidade de recriação é uma característica inerente ao ser humano. Porém, as novas tecnologias agudizaram a intensidade deste processo. O ser humano tem nas suas mãos instrumentos cuja totalidade de aplicações ainda desconhece. Desta forma, será preciso analisar a extensão do seu poder. Se um indivíduo puder usufruir de recursos para aumentar as suas capacidades, deverá ele ser impedido? A World Transhumanist Organization (1998), cujo lema é «for the ethical use of technology to extend human capabilities», tem vindo a lutar pelo direito a potenciar as capacidades humanas através da tecnologia. Na sua declaração, esta associação prevê a emergência de novas formas de vida: «We advocate the well-being of all sentience, including humans, non-human, animals, and any future artificial intellects, modified life forms, or other intelligences to which technological and scientific advance may give rise.» Quanto ao processo de potenciação da natureza humana previsto no seu manifesto, esta associação defende o direito às seguintes intervenções: «use of techniques that may be developed to assist memory, concentration, and mental energy; life extension therapies; reproductive choice technologies; cryonics procedures; and many other possible human modification and enhancement technologies». Este processo de enhancement estará inicialmente limitado a um número diminuto de indivíduos. No entanto, acabará por abranger um número crescente de candidatos.
Ainda que os cenários construídos pela ficção científica pareçam mirabolantes, ela tem funcionado como um espaço onde ambições e receios são projectados. Ao habitarem mundos paralelos as suas criações permitem prever, para além de todas as possibilidades, as consequências do progresso tecnológico.

 

Bibliografia

Asimov, Isaac e Robert Silverberg (1992), The Positronic Man. Nova Iorque: Doubleday.

Bar-Cohen, Yoseph e David Hanson (2009), The Coming Robot Revolution: Expectations and Fears about Emerging Intelligent, Humanlike Machines. Nova Iorque: Springer.

Benford, Gregory e Elisabeth Malartre (2007), Beyond Human: Living with Robots and Cyborgs. Nova Iorque: Forge.

Čapek, Karel (1961), R.U.R. and The Insect Play. Oxford: Oxford University Press.

Cammell, Donald (1977), Demon Seed. Metro-Goldwyn-Mayer (MGM).

Haraway, Donna (1991), «A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist‐Feminism in the Late Twentieth Century», in Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. Nova Iorque: Routledge, pp. 149‐181.

Hayles, N. Katherine (1999), How We Became Posthuman: Virtual Bodies in Cybernetics, Literature, and Informatics. Chicago: University of Chicago Press.

Kurzweil, Ray (2005), Singularity is Near. Nova Iorque: The Viking Press.

Meyrink, Gustav (1990), O Golem. Lisboa: Vega.