Tecnologia e Magia – Potências Mágico-Místicas das Imagens Técnicas

A magia possui aplicações e definições complexas baseadas essencialmente na intenção de manipular ou de fazer manifestar determinadas forças, seres ou entidades sobrenaturais no mundo natural, envolvendo uma tendência para a metafísica, bem como um interesse pelo conhecimento dos mundos vegetal, animal e mineral. Marcel Mauss e Henri Hubert (1902) associam a magia a uma condição imagética, visto que esta tem a aptidão para substituir a realidade por imagens. Este atributo das imagens em se relacionarem com mundos invisíveis e mágicos ao superar espaços e tempos através de ambiências virtuais é perceptível nas diversas tentativas humanas de evocar o mágico por intermédio de dispositivos tecnológicos.

A proposta editorial “Tecnologia e Magia – Potências Mágico-Místicas das Imagens Técnicas” propõe portanto considerar as relações da magia e do misticismo com a tecnologia, dando primazia à forma como estas afinidades têm sido interpeladas no campo das práticas artísticas. As imagens técnicas estabeleceram continuamente relações com dimensões sobrenaturais e encantatórias, algo que se revê no advento da eletricidade e do magnetismo no século XIX que, em convergência com o desenvolvimento da ciência, o interesse por superstições e a atração pelo espiritismo e exotismo, vieram redefinir a visão do espetador e a produção de imagens virtuais e imersivas através de dispositivos como a lanterna mágica ou o panorama (Gunning 2004, Grau 2003, Huhtamo e Parikka 2011, Friedberg 1993, Banda e Moure 2012). Parte das atuais expectativas perante a cultura tecnológica estão ligadas a uma virtualização do real que dissolve limitações espácio-temporais suscitando um desejo de transcendência e pós-humanismo. Neste sentido, Erik Davis (2004) usa o termo ‘techgnosis’ para designar o modo como a obsessão pela tecnologia adquiriu antigas qualidades místicas e mágicas desenvolvendo um espaço de informação que “atrai para si mitologias, metafísicas, indícios de magia arcana” (Davis 2004, 115). A presença da magia e do misticismo na esfera digital contemporânea é portanto sintomática de como a tecnologia parece possibilitar parte do lugar transcendental do humano no mundo, onde a imagem digital tornou-se uma forma de repensar a ideia de reencantamento, trazendo-nos de volta à “problemática do ícone bizantino: é uma visualização do invisualizável” (Groys 2009).

Existe assim um número elevado de artistas que trabalham sobre estas forças e energias ‘mágicas’ do tecnológico, por exemplo, através de concepções ligadas ao tecno-misticismo, ao tecno-xamanismo ou ao tecno-paganismo. Este interesse ocorre dentro de profundas transformações culturais e sociais derivadas por exemplo das crescentes políticas de atenção dadas à ecologia, aos mundos indígenas ou às relações entre entidades humanas, não-humanas e extradimensionais. Neste sentido, Isabelle Stengers (2012) defende a urgência de um “reativar” ou “retomar” (“reclaim”), onde certas práticas marginalizadas pelo mundo moderno-capitalista, como a magia, se podem tornar modalidades de resiliência social com potencialidades terapêuticas e sociopolíticas.

É justamente este contexto que se encontra na base do texto Os Novos Místicos: Magia High-tech para o Presente de Alice Bucknell, que aborda um conjunto de artistas contemporâneos, designados pela autora como “novos místicos”, que partilham uma estética psicadélica e narrativas vindas da ficção científica e da paraficção. Estes artistas utilizam o potencial atmosférico das novas tecnologias para ressuscitarem antigos sistemas de crença, vinculando o misticismo a questões contemporâneas para criticarem políticas ligadas à ideia de raças identitárias, ao colonialismo ou ao capitalismo.

Convocando esta mesma competência mágica da tecnologia computorizada, o ensaio …, magia, ritual, techné, subjetividade de Miguel Carvalhais interpela o modo como a computação pode ser expressa em termos semelhantes aos que usamos para descrever os objetivos da magia, propondo que se possa pensar a computação como uma forma de magia e enquanto ritualização de modelos na forma de programas: “na computação encontramos a magia, o acaso, o simbólico e o improvável. Encontramos um círculo mágico, um espaço para o jogo, um estado em que somos simultaneamente livres e manietados pelas regras do processo”. O autor sugere portanto formas de nos aproximarmos dessas inteligências transformando a “experiência interobjetiva que temos desse mundo numa experiência intersubjetiva de um mundo mais-que-humano com que podemos, e devemos, desenvolver empatia, para nele (co)existirmos”.

Esta perspetiva assoma identicamente na reflexão sobre fotografia computacional praticada na obra Espaço latente de Rodrigo Gomes, bem como na conversa do artista com David Revés, onde abordam as conexões entre imagem, Inteligência Artificial, escultura, animismo e magia. Já o ensaio Tecno-êxtases. Visões desde o invisível de Giovanbattista Tusa afirma que vivemos uma nova condição em que a tecnologia se torna tecno-mágica, isto é, uma “máquina cosmomórfica de ritos e mitos que geram um novo sujeito tecno-extático”, e onde a imaginação contemporânea vive assombrada por fantasias de extinção que desafiam todas as “declinações da fenomenologia em que a experiência humana continua a ser o fenómeno fundamental”.

Partindo de uma reflexão semelhante sobre as afinidades entre tecnologia e imaginação contemporânea, o ensaio O Tempo das Imagens de Miguel Leal questiona onde estão hoje as máquinas de produção do imaginário. Partindo da noção de que as imagens são mediadoras da nossa relação com o tempo, o autor afirma que precisamos de tentar encontrar aí singularidades que possam ser convocadas como “um oráculo, como um feiticeiro a quem perguntamos pelo desconhecido, pelo que não sabemos ou julgamos não saber. Porque este é, apesar de tudo, o tempo das imagens”.

A obra SYRINX (solo) de Inês Tartaruga Água é uma peça escultórica e sonora que consiste numa bolsa de ar e numa série de catorze drones construídos a partir de objetos do quotidiano. Tendo por alicerce a transformação de contornos mágicos de materiais respigados em elementos que simulam tecnologia, estes objetos são transformados num instrumento musical inspirado no órgão vocal dos pássaros (syrinx em inglês).

Por fim, o texto Sonho e Yãkoana: Hipóteses para Pensar o Cinema como Travessia de Mundos de Salomé Lopes Coelho, dividido numa parte I e numa parte II, coloca em relação as visões xamânicas provocadas pela ingestão ritual da planta alucinogénia yãkoana, o sonho e a experiência cinematográfica. O texto reflete sobre a ideia de que o xamã e a câmara podem ser percepcionados como “veículos transfronteiriços de passagem entre mundos (…) [um] ritual do atravessamento – e, por outro lado, são também um gesto que procura resgatar o atravessamento em si mesmo”.

Considerando as diversas perspetivas desenvolvidas nestas contribuições, “Tecnologia e Magia – Potências Mágico-Místicas das Imagens Técnicas” demonstra diferentes afinidades entre a magia-misticismo e a tecnologia, abordando de forma alargada temas como as relações entre espaço, temporalidade, (i)materialidade, abstração, virtualidade e encantamento; as experiências de tipo místico/mágico no contexto da imagem digital, da realidade virtual ou de culturas pós-Internet; a abordagem histórico-arqueológica às relações da magia com as genealogias dos media imersivos e das imagens técnicas, e as suas rearticulações atuais; ou, as relações entre magia-misticismo e tecnologia através do prisma das práticas ativistas e da resiliência social de comunidades marginalizadas.

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