Chegando ao fim deste dossier temático, que completa o número de quarenta editoriais da revista Interact, cabe agora uma nota de encerramento por parte dos editores acerca deste número sobre Regeneração: Arte, Ecologia e Pós-colonialismo.
Inspirados pelas pesquisas que ambos temos vindo a fazer no desenvolvimento das nossas investigações de doutoramento, que trabalham questões ecológicas e pós-coloniais, tornou-se evidente que a extração abusiva de recursos naturais e a crise climática que enfrentamos estão interligadas com a exploração de corpos e minorias, mantendo uma filiação genealógica com heranças coloniais e imperialistas. Com efeito, pensar questões de âmbito ecológico é iminentemente repensar o legado colonial e capitalista vigente, e, à semelhança, pensar o pós-colonialismo implica, claramente, convocar novas mundividências de relação com o planeta e de relacionamento entre humanos e mais-que-humanos. Motivados por criar um espaço de reflexão e diálogo conjunto, decidimos que este número fosse o mais diverso possível, contando por isso com ensaios, entrevistas textuais e visuais, laboratórios e interfaces.
Laila Nuñez escreveu sobre o especulativo e a possibilidade de a literatura estender a sua atenção a novas representatividades e narrativas, sejam elas humanas ou não. Isto é, abrir o espaço para refletir acerca de outras formas de vida, tal como Nuñez indica: “[…] importa conjurar um novo narrar. Este é o principal aspeto distintivo das literaturas mais-que-humanas: cogitam, de facto, uma nova forma de linguagem para dar conta de uma nova perspetiva.” Nesse encadeamento conceptual, convocam-se os ensaios de Henrique Brazão, João Mário Pereira e de Alice Sanches e José Candeias, que pensam novas dinâmicas de vivência naquilo que atualmente denominamos como a época do Antropoceno. O primeiro ensaio parte de uma reflexão sobre o filme In order not to be here (2002) de Deborah Stratman para refletir acerca do conceito de segurança e da sua relação com ideias pós-coloniais e relações de poder e exclusão. O segundo ensaio pensa acerca dos contributos de John Cage e Donna Haraway, para conjurar um novo paradigma educativo, que assenta numa pedagogia mais ecológica e ambientalista. Por fim, o último ensaio tenta pensar as novas possibilidades da experiência estética e de entendimento do conceito de sublime, à luz de conceitos de filosofia e ética ambiental.
Se Laila Nuñez havia lançado o mote de perspetivar novas narrativas, estes autores aceitam o desafio para pensar estes três eixos complementares: as dinâmicas de controlo e subjugação contemporâneas, impostas e perpetuadas pelo regime capitalista global; as possibilidades regenerativas de novos paradigmas educacionais, como um contraponto, ou subversão face ao estado de controlo; por último, as necessidades de formular novos modos de sentir, pensar, e agir, de acordo com o período particular que atravessamos.
Ilda Teresa de Castro escreve uma completa análise dos tempos correntes, na qual articula ideias de ecologia política, com um resumo da história ambiental contemporânea, o desfecho não é o mais positivo, mediante os graves problemas sociais, políticos, económicos e ambientais que assolam o planeta e as sociedades atuais. No entanto, tal como escreve: “O colapso já não é uma ameaça distante, é o nosso presente. A escolha é simples: agir ou assistir à destruição.”
Nessa medida, partilhamos o partido daqueles que tomam ação, e os artistas que convocamos para este editorial representam possibilidades de confrontar e mudar o estado de coisas, são eles: Alves Ludovico, André Vaz, Jubas Barreto e Francisca Dores. Os seus trabalhos variam entre formato, medium e conceito, mas são unificados por uma preocupação comum para com ideias regenerativas. Perspetivam o uso do lixo e o reaproveitamento de desperdícios para repensar ideias de relação entre o planeta Terra e o mundo extraterrestre. Oscilam entre o legado da ancestralidade e africanidade, ou da agricultura regenerativa e a crítica às monoculturas cada vez mais dominantes.
Nesta mesma linha de pensamento, entrevistámos Maíra Zenun, que amplia o campo de reflexão deste dossier ao articular o cinema africano e decolonial com práticas de escrita, pedagogia e resistência cultural. A investigadora e multiartista brasileira fala do FESPACO como espaço simbólico de reconstrução identitária e de regeneração estética, onde o ato de filmar e narrar se torna um gesto político e de reparação histórica. A conversa aborda ainda a escrevivência como metodologia crítica e o papel do Mbongi 67, coletivo que se integra em Queluz, enquanto território de partilha e experimentação.
A entrevista a Raquel Lima, por outro lado, reforça o eixo temático deste número ao cruzar arte, ecologia e memória ancestral. Poeta, performer e investigadora, Raquel fala de ÚLULU, espetáculo que parte de um ritual de São Tomé e Príncipe para refletir sobre pertença, cuidado e regeneração. Através da música, da palavra e do corpo, propõe uma reconexão entre humanos e mais-que-humanos, onde o gesto artístico se torna também um ato simbólico de cura e de continuidade das ligações entre o corpo, a terra e a ancestralidade.
A entrevista a Marta Lança aprofunda igualmente as questões deste número ao refletir sobre os cruzamentos entre arte, ecologia e pós-colonialismo a partir do seu trabalho desenvolvido no Buala, plataforma digital colaborativa que dirige desde 2010. Investigadora e editora, partilha a experiência de construir um arquivo vivo de pensamento crítico e partilha cultural, abordando temas como as relações entre ecologia e colonialismo, o feminismo negro na atualidade e a invisibilidade da história negra em Lisboa. Temas que convergem e se estendem também na entrevista feita por Simone Lima Azevedo a Ana Paula Costa, presidente da Casa do Brasil de Lisboa, onde se discutem questões relativas à migração, discriminação e xenofobia, procurando debater soluções de integração e reconhecimento social em Portugal.
Já a entrevista a Jéssica Burrinha reforça o diálogo entre arte e ecologia. Escultora nascida no Barreiro, Burrinha trabalha com terra e materiais orgânicos, explorando a transformação e a regeneração como princípios criativos. Na conversa, conduzida por Francisca Gigante e filmada por Francisco Teles da Gama, a artista reflete sobre o tempo, a degradação e a mutação das suas esculturas, que se alteram com o ambiente e o passar das estações. As suas obras evocam tanto a fragilidade ecológica quanto as estruturas sociais e pós-coloniais que moldam o mundo contemporâneo, propondo a escultura como espaço de resistência, memória e renovação.
Assim, chegados ao fim deste número, torna-se evidente que as práticas artísticas aqui reunidas convergem na urgência de repensar as relações entre ecologia, colonialismo e criação contemporânea. As entrevistas, obras aqui apresentadas e os ensaios demonstram que a crise ambiental e social que atravessamos não pode ser dissociada das estruturas de poder e exploração herdeiras do colonialismo, e que a arte, enquanto campo de investigação e ação, oferece possibilidades concretas de resistência e reconfiguração das ideologias que minam o presente, que tentam obliterar o passado. Ao abordar temas como a memória, a ancestralidade, o corpo e o território, este dossier reafirma o papel das práticas artísticas e críticas na construção de novas mundividências mais conscientes, solidárias e sustentáveis.


