Os encontros Transpensar tiveram início, presencialmente, no c.e.m., em Lisboa, antes do acontecimento covid19, e espalharam-se pelos lugares onde se confinaram algumas das pessoas ligadas ao c.e.m. – em vários cantos da Europa e América – e outras que se foram juntando online a partir de Março de 2020. As coexistências zoom e os textos partilhados por email, resultantes do lançamento de questões, ou desafios temáticos, começaram em Março de 2020 – transpensar#1 –, e o grupo de textos transpensar#6 data de 11 de Março de 2021. A hiperligação zoom do c.e.m. ficou aberta em permanência como companhia em algumas fases do primeiro confinamento – “está aí alguém?”. A possibilidade de encontro sobrepôs-se às dificuldades da interface. Poderia a presença digital ser sentida como “física”?
Transpensar é um convite aberto ao atravessamento de áreas do pensamento-conhecimento e parte de especialidade nenhuma (ou de todas ao mesmo tempo) para poder falar do que vier. Transpensar não pertence ao c.e.m. mas a qualquer pessoa e a qualquer lugar.
Proponho, aqui, brincar com algumas das minhas respostas¹ aos emails transpensar escritos durante várias fases de confinamento pandémico que colocaram em diálogo à distância, pessoas que normalmente se encontrariam ao vivo no estúdio branco da casa-c.e.m, ou na rua, em quintais, baldios e parques.
O c.e.m. é uma associação cultural dedicada à relação entre pessoas no espaço-tempo, no estúdio, em dança, e na cidade. A súbita paragem pandémica e o trabalho de quem tem investido sobretudo no encontro vivo e de corpo inteiro, preocupou-nos. Transpensar foi uma forma de prolongar as possibilidades de encontro online.
Durante os confinamentos abrandámos a velocidade fisiológica pressionada pelo tempo, quase todos os lugares para onde íamos estavam online. Poder dizer que se “saía de uma reunião a correr para outra” era imaginar que em alguns cliques, mudando apenas as caras no ecrã, se passava de facto de uma mesa-redonda em Coimbra para uma conferência em Faro. O corpo, que também somos, talvez tenha disparado essa velocidade de corrida, mas não pôde experimentar o percurso entre espaços. Pensámos no caminho, em caminhar, e concretamente, em incorporar um movimento de pensamento deslocando-nos, tomando espaços, e constituindo lugares”. (cf. Antunes e Coelho 2021)
Foi neste contexto de “fuga” dentro do mesmo lugar que começámos a ler e a trocar textos por email no grupo de investigação Transpensar. Na altura, preocupava-nos a súbita paragem de um sem-número de associações que existem com e para o encontro ao vivo. Hoje, em Julho de 2022, o pessimismo não desapareceu, a política de apoio sustentado às estruturas ligadas às artes performativas poderá ter um efeito pior do que a pandemia, dada a habitual arte displicente de ignorar o conhecimento gerado e sustentado no terreno (esperemos que não!).
Da Miséria Simbólica (2018), de Bernard Stiegler, foi uma das leituras feitas neste período. Com ela, construímos aqui uma relação de associação de imagens, incorporadas e espelhadas no desenvolvimento da escrita, para ir animando modos de escapar à “miséria simbólica”, jogando ao jogo da vida de um modo que tentamos seja atento e comprometido. O uso de lengalengas de referências, de alguns lugares-comuns e de frases-feitas é pensado como uma espécie de antídoto à seriedade a que o covid nos obrigou. O confinamento acentuou o perigo de colapso de inúmeras estruturas dedicadas às artes (ainda em perigo) e fez emergir redes de entrajuda entre trabalhadores da cultura para resolver questões diárias como: comer, ou habitar, mas disso não iremos falar.
Uso pela primeira vez a palavra “cerzir” para testar uma possível relação entre imagens de ligação, linhas de força, tecidos conjuntivos, ideias e pensamento. Um modo pessoal de reagir às “bolhas” tendo em mente o trabalho de Gilbert Simondon sobre individuação psíquica e colectiva. “Cerzir” permite convocar um imaginário em que se justapõem e ligam tecidos, como quem “remembra”, “relembra”, “volta a juntar os membros” – que acho se adequa à abordagem de Stiegler sobre On Connaît la Chanson – É sempre a mesma cantiga (Resnais 1997). Neste caso, os membros da estética possível de um “nós” que Stiegler refere estar ameaçada. (cf Stiegler, 2018, p. 85).
Parafraseando Bernard Stiegler,
o “dispositivo estético [da socialização] e o sentimento de um nós que só ele pode engendrar tornaram-se extremamente frágeis (…) a partir do momento em que a estética se tornou objecto de uma exploração industrial sistemática que tem como objectivo exclusivo e hegemónico (…) desenvolver os mercados de consumo, e que acabou por transformar o corpo que sente, o corpo sensível, o corpo desejante, num corpo consumidor cujo desejo (…) é conduzido à ruína – pela sua exploração sistemática através das indústrias culturais, do marketing e de tudo o que [alguém] acreditou poder designar por “sociedade de mercado”. (Stiegler, 2018. 43-44, sem ênfases).
A ideia é não alimentar significados definitivos, mas coser referentes, eventualmente dando-lhes a potência fantasmática de convocar mundos, ventrilocar vozes, cantigas.
Conhecemos as canções aqui tocadas? – “nós”, isto é, o público de uma determinada geração, de um contexto social muito específico? Fui ver On Connaît la Chanson com o meu pai ao cinema, ainda nos anos 1990, ele conhecia as canções de facto, eu só algumas. O momento Jane Birkin foi curto, mas “quoi?” emocionante… Trata-se de um “nós” constituído como uma “bolha”? Será que as membranas das “bolhas” são porosas, e se prestam a cerzir outras relações?
O que pode um cliché? Ou “nós” estávamos lá.
Afinal gosto de todas essas canções que outrora considerava tão ridículas, na maior parte dos casos. Ao ressurgirem assim (…) de modo quase milagroso, estas cantigas que julgávamos tão gastas, nós que nos tornámos tão descrentes e cansados, dão-se com a força de uma necessidade poética indiscutível.
Desposamos-lhes as melodias e escutamos-lhes as palavras do mais fundo daquilo que se chamara outrora alegria.
Oração: “que a minha alegria permaneça”. (Idem, p.64)
[Alegria]
«Domingo é dia de transpensar. Ah, espera, mas hoje é “terça-feira! Feira da ladra…” tempo de valsa! Apesar de não passarem os carros que violentamente abanam a casa, hoje é terça.
Transpensar ficou associado ao domingo, ao confinamento, à introspecção, porque ficou associado à ausência de som automóvel na cidade. Hoje é dia de confinamento de novo e nem as ambulâncias se maçam a sirenar, não têm carros para ultrapassar. Doentes há sempre…» (SPC, Dezembro de 2020)
Primeiro repto da Sofia Neuparth a 13 de Abril de 2020 –
Questões:
«O que vês acontecer neste “agora”?»; «Na tua bola de cristal, o que vislumbras acontecer num agora-amanhã?»; «Onde sentes mais dificuldade, neste momento, para acompanhar e energizar o pensar-fazer?».
Respondo:
«1 – Vejo muita gente “em negação” – o que é muito diferente de dizer “negacionismo”, porque muito mais ligado ao modo como a psique funciona. Acho que o “negacionista” – é alguém que nega a existência do Holocausto nazi. Não se confundam as águas, ter uma atitude crítica e céptica pode ser bem distinto de alguém que está aqui, mas “em negação”, que por sua vez é diferente de alguém que nega que tenha acontecido um Holocausto nazi – um negacionista! Não há comparação!
Anti-vacinas? Outra coisa ainda! Hesitar em relação a uma vacina nova é diferente de rejeitar todas as vacinas… Não vale a pena antagonizar antes de distinguir bem as posturas, sujeitas que estão a um excesso de manipulação mediática.
De qualquer forma o “outro” também é esse cujas razões nunca iremos compreender… O vizinho chato de gosto duvidoso? Alguém que dirige as coolunas da sua aparelhagem potente para o hospital à nossa frente, com duas versões do hino nacional, persistentemente, todas as noites! Já conhecemos a canção! Parece-nos que o valentão está sozinho e tem medo…
2 – Vejo o colapso das artes tal como as conhecíamos em 2020… Assim, sem redenção? Quem as salva, então?
3 – Sinto dificuldade em comunicar e de receber comunicação sem ruído, sem excesso de informação. É difícil confiar nas plataformas e nas partilhas online.» (SPC, Abril de 2020, revisto e aumentado em Julho de 2022)
[vou buscar um café]
Desafio da Sofia Neuparth (16 Fev 2021)
«Quando abrimos estes encontros o sonho era, e é, que cada umaum trouxesse ao comum a elasticidade do pensar-fazer que vamos sendo na relação com o acontecer do mundo que está sendo neste agora-agora que se abriu em março passado deixando a boca-escrita falar-escrever livremente entre o sentir quotidiano e a reflexão demorada, com maior ou menor especificidade ou especialização mas sem resgatar territórios… desconfio que até a “especialização” a que cada umaum se dedicou na caminhada da vida não vibra no seu imenso potencial por se dedicar mais a “defender” um determinado campo de conhecimento ou um determinado acesso, ou perspectiva, do que a deixar que a mestria que “ajardinou” se embeba na imensidão do OUTRO movendo-se nesse não-saber como só ela pode. Cada corpo se “especializa” a ir sendo o que vai sendo e nunca poderia fazê-lo tão apuradamente se o(s) outro(s) não se especializassem também em ir-sendo…
Em cada temporada no cem dedicamos um tempo alargado a body-stormar que corpo de corpos é esse que estamos sendo, que estamos criando, que estamos nutrindo… convidamo-nos a escutar as linhas-manchas-fluxos que o entre corpos gera, a tessitura que tem o desejo de aparecer no entre, as características-formas-insistências que podem estar a fazer aparecer essa criatura cem na sua contínua trans-de-formação. este exercício tem me-nos ensinado muito… não se trata de projectar um corpo-sofia e depois tentar fazer acontecer um corpo-sofia que não destoe desse projecto… pois também não se trata de projectar um corpo-cem, um corpo-cidade, um corpo-mundo… e depois tentar fazer acontecer…
Então, gostava de trazer ao transpensar:
– Como temos estado sensíveis à geração de modos de estar-com, em diversas escalas, considerando a implicação de me e nos especializarmos em ir sendo o que vamos sendo embebidos na tal “imensidão do OUTRO”.»
[ups, entorno café!]
Resposta da Sílvia:
«DESAUSTINADA!
Sem fôlego, identifico-me com o texto do Nicolau (Ferreira). Um dos únicos que li, porque chegou atrasado na data, mas mesmo a tempo de eu poder relaxar dos outros textos todos que escrevi esta semana. As palavras que consigo ler sem esforço são: “OUTRO” (porque está em maiúsculas), “especializarmos” (outra palavra grande, mas em comprimento), e “embebidos” (pois, não tendo bebido a sensação de embriaguez, às vezes, aparece… zonza de coisas online). As outras palavras tive que ir traduzindo da leitura para a compreensão, mas está tudo bem, como disseram que iria ficar “tudo bem”. O esgotamento da liberdade para deambular pela cidade não me entristece assim tão directamente porque gosto do estou a fazer. Estou bem. Mas pensando para além do meu privilégio, preocupa-me sobretudo o modo como estarão os “outros”.» (SPC, Fevereiro de 2021)
[a máquina da roupa está ligada, ouve-se a centrifugação e no tambor, às voltas, sente-se o peso dos tecidos molhados]
« – Que corpos co-criamos? que comum co-criamos?
Um corpo é o quê? Lembrei-me de um texto da Erin Manning que traduzi e tive que o ir buscar. “Dançando o Virtual” (Manning, 2016).
Pensemos o corpo como uma ecologia de operações que transpõe a carne para fora da sua matéria e para fora do ambiente das suas múltiplas tomadas de forma. A partir de tal ambiência retenhamos a ideia de técnica. Pensemos a técnica não como um aditivo a um corpo-forma pré-existente, mas como um processo de corporização. Pensemos a técnica como uma in-formante de um corpo em mutação. E depois pensemos nesse corpo como um campo de relações, em vez de uma estabilidade, uma força tomando-forma e não simplesmente uma forma. (…)
Em lugar de pensar o corpo como algo separado da terra, como algo separado da chegada da primavera, veja-se a ecologia joelho-mão-terra, numa plantação de primavera, como uma técnica para afinar a estação» (Manning 2016: 185-186).
Uma tradução difícil, sofrida e com a qual nunca fiquei contente. Duvidei de saber escrever português, mas por causa disso quase decorei o texto. A repetição da complexidade e da tradução têm-me trazido a relação com o encontro de imensidões entre “o que percebemos ser ‘eu’”, ou “aquilo que podemos designar ‘outro’”. Tendo muita dificuldade em lidar com a palavra “corpo”, ajuda-me poder pensar em termos de ecologia de operações, anima-me poder imaginar a “ecologia joelho-mão-terra” na construção de um corpo de primavera, por exemplo.»
« – O que sentimos que possa estar a ser trabalho?» (pergunta a Sofia).
[respondo automaticamente]
«O tempo. A possibilidade de reequacionar modos de lidar com o tempo. Lidar com a poética do espaço-tempo, não é essa uma tarefa de quem dança? Pois resta-nos continuar a fazer durar, desdobrar o tempo. Alongar os dias e as noites em renovadas poéticas de espaço-tempo». (SPC, Fevereiro de 2021)
Numa segunda leitura, percebo que, na altura, li “trabalhado” em lugar de “trabalho”. Tresli. O que poderia ser trabalho? Talvez a “atenção” e foi a atenção que foi difícil de trazer, assim: “A atenção é o trabalho”. Uma ginástica da atenção particular às artes poderá devolver-nos um “nós”? (SPC, Fevereiro de 2021)
Mas dizia a Sofia, então:
«Mais do que nunca sinto que o trabalho é essa obra do comum, dos comuns. Aquilo que nutre o entre. Aquilo que nutre a fáscia, os tecidos conectivos do mundo… os corpos humanos podem talvez aprender com outros corpos… árvores, animais… sobre o que possa ser trabalho… parece-me muito mais uma qualidade do pensar-fazer do que o seu produto… embora o produto transporte essa vibração mais sintonizada com o comum ou com o lucro próprio, a vaidade, a escravidão, a impotência, ou a troca, a venda, a acumulação…
Em tempos, numa das (felizmente) intermináveis conversas sofia-margarida fomos destapando que os gestos que nascem a partir da identificação da falta têm muita dificuldade em brilhar para além do “preencher a lacuna”, “tapar o buraco”… A alegria de pensar-fazer esse tecido que nutre o entre é ela própria geradora de existência.
Parece-me urgente considerar o valor que atribuímos aos pensares-fazeres diversos, pensar o que é que “trabalhamos” e nos alimenta enquanto seres existentes em poesia… alguns caminhos, ou processos, ou procedimentos dessa nutrição do comum, do entre a que chamo trabalho não são “luminosos”… no querido cem muitas vezes tenho-temos que nos demorar horas longas em “tarefas” pouco interessantes que o “mundo do trabalho vigente” exige… sempre que podemos aprendemos com isso…» (Neuparth, Fevereiro de 2021).
[lentamente estendo a roupa na marquise que dá para o hospital]
4 – «Como estamos a exercitar o agarrar-largar? Que paisagens deste não-saber nos parecem mais nítidas, mais turvas, mais estáticas, mais ofuscantes?» (ibidem)
«Actualizar as escolhas de agarrar-largar, afinando os pequenos encontros, seria fantástico. Não tentando controlar absolutamente tudo. Apreciar apenas o momento como paisagem, deixar sedimentar, descobrir um after-taste.
Saborear é uma espécie de “não-saber”/“sim-sabor”, não é?
A primavera por vezes é ofuscante se não formos passo a passo, mas ficar ofuscado pode ser interessante. As paisagens, às vezes, estão em zoom impressionista, outras vezes à nossa frente, sempre a mostrar um lugar mais à direita para o sol se pôr. Mais à esquerda para renascer? E um dia há-de chegar de novo o verão…». (SPC Fevereiro de 2021, revisto e aumentado em Julho de 2022)
[2020 – A rotina de vir à janela às 22h instalou-se quando o vizinho do segundo andar decidiu projectar imagens laser a dançar, nas paredes do hospital de Santa Marta, enquanto fazia soar para todo o bairro duas versões seguidas de “a Portuguesa”. Uma nova rotina surpreendente… uma figura inclassificável… Terá sido militar?]
«Lisboa, Dezembro de 2020
Caras transpensadoras,
Fomos adivinhando, nas leituras de quatro transpensares, em grupo, a potência de se juntarem polifonicamente – ainda não sabemos bem como – as vozes de um contínuo transpensamento. Falta desemparelhar, falta um quinto transpensar.
O desafio de um Transpensar que aqui inicio começa com as seguintes indagações:
– O que diria Cronos a Júpiter de um Natal em confinamento? (sobre o tempo no espaço).
– A que distância temos deixado a nossa perplexidade reflexiva neste período de “novo anormal”, ou de “perfeito anormal”, ou de “velho normal”, ou continuamente igual e diferente ao mesmo tempo? (sobre o espaço que é tempo também)
– E o som das nossas vidas como tem mudado nos últimos 9 meses de gestação? (vai nascer?)
– Sobre escuta, tensegridade, embriologia e energia vital…? sobre dançar, alguém?» (SPC, Dezembro de 2020).
«Quando, em Março, viajei do Rio de Janeiro – onde estava há dez dias pela primeira vez – para me vir confinar em Lisboa, senti que havia um ambiente estranho, mas incrível, algo novo e comum entre as pessoas. Mesmo que fosse tudo mentira, o acontecimento aconteceu, o “comum” reagiu como um todo e fechou-se em casa disposto a…, por exemplo, transpensar? Ou a ver TV, nunca saberemos [eu tive que ver televisão para perceber o “estado da nação” e ligar-me à Ação Cooperativista: para perceber o “estado da arte”]. Ver um mundo de ruas desertas foi surpreendente e assustador ao mesmo tempo. Não era preciso imaginar, vimos as pessoas que dormem na rua a aumentar, a desesperar. O todo que se fechou em casa teve como excepção os sem-casa, os todos na mesma casa, todos no mesmo quarto, no mesmo buraco, no mesmo barco.
O apelo para o voluntariado era constante. Mas se houve quem ganhasse tempo para “arrumar a casa”, a vida, as relações… outros tiveram que fazer tudo o que faziam anteriormente, e ainda preocuparem-se com a falência dos sistemas, certificarem-se de que as pessoas em seu redor mantinham um certo equilíbrio mental, a família e tal… e tudo isso sem sair do lugar.
O hábito do confinamento nos cinco anos de doutoramento, o hábito de trabalhar em casa e à distância, ajudaram-me a aguentar o stress do excesso de trabalho que a pandemia trouxe. Maratona de procrastinação (noutros termos), grupos de leitura, reuniões, aulas, iogas, Klein, tudo online. O som achatado e péssimo das plataformas online, o olhar sempre na mesma direcção (torcicolo), contribuíram para algumas dores de cabeça…
Em 2020, durante os confinamentos, a série de emails “transpensar” trouxe-me algum alento e perplexidade. Tanta prosa a discorrer tão bem! A capacidade de cada uma das contribuições para comunicar que “quem escreve pode não estar a dançar, mas teve a calma para se sentar e escrever contemplando o momento”, foi surpreedente. Uma outra dança! Como se a potência gerada em encontros dançados na casa-cem e nas ruas de Lisboa, se pudesse expandir por ligações virtuais transnacionalmente.
O desejo de partilha reticular foi atribuído ao significante “transpensar”, e uma relação entre a mail art e o coreográfico evidenciou-se, dando espaço para várias genealogias estético-artísticas (caso alguém precise mesmo de dizer “arte”, em lugar de “relação humana”).
Virtuais?! A sensação de “espuma dos dias”, desejo de comunicar, “mensagem na garrafa” atirada ao mar juntaram-se no “transpensar” – transatlântico, transparente, transbordar, transduzir, trans-individuação…
1 – O que diria Cronos a Júpiter de um Natal em confinamento? (sobre o tempo no espaço).
Parafraseando o Bernardo (Bethônico), “Cronos diria a Zeus, ou Saturno diria a Júpiter, ou Obaluaiê diria a Oxalá” que os planetas não acasalam, correm lado a lado em percursos elípticos criando o seu próprio peso político, em lugar de escolher um lado só. Diria que as formigas humanas especulam de menos e demais. Que os tempos de encontro e de co-incidência fazem vibrar ondas infinitas de transindividuação. Podemos tentar estruturá-las mas não controlar os seus resultados. Os planetas mexem e distraem-nos, por momentos, do vírus. Nos acontecimentos que viajam da micro-escala para a macro-escala e retornam, a distância é espácio-temporal. (E “temporal” também é um evento meteorológico, lógico…).
O fenómeno de namoro planetário entre Saturno e Júpiter calha na véspera do aniversário de uma prima que me morreu em 1999, gostava de acreditar que um portal se abre para lhe falar, mas não, nem sei rezar… O tempo tende a querer devorar (contrair) o espaço e este pode responder com expansão.
Observar a contracção e expansão da célula aprende-se onde? No centro em movimento, por exemplo. Assim, a partir de pré-individuações, ou do lastro deixado por outrém, nascem novas individuações, ou o que seja… O Natal é quando conseguirmos pensar em termos de amor. Tão fácil, tão difícil!! » (SPC, Dezembro de 2020, revisto e aumentado em Julho de 2022)
[põe-se o sol por trás do hotel Altis]
2 – A que distância temos deixado a nossa perplexidade reflexiva neste período de “novo anormal”, ou de “perfeito anormal”, ou de “velho normal”, ou de continuamente igual e diferente ao mesmo tempo? (sobre o espaço que é tempo também).
O “perfeito anormal” que vamos sendo não aceita dizer “passeios higiénicos” sem ironia, nem “distância social” sem tropeços que nos fazem cair em abraços inesperados. “Cuidado com a carga viral”, certo! Mas ninguém nos explica como é que a carga anormal do nosso conterráqueo vírus funciona? Aguardamos perplexas sem grande tempo para contemplações. Procrastinamos nuns sítios para dar lugar a outros. E seguimos… Até parecia que tinha acabado! Fomos à praia, comemos gelados, como em qualquer outro verão, vimos a família cautelosamente e depois… upa! De novo, as reuniões online. Intermináveis reuniões de som achatado e caras congeladas nos píxeis. Tudo igual, tudo diferente ao mesmo tempo! Dá para brincar, como sempre.² Se formos jogar a olhar para as câmaras, podemos encenar, sabotar… Mas no espaço da casa, que é espaço de trabalho, começa a ser difícil de permanecer. Distinguir os fins-de-semana, maquilhares-te para sair e encheres as máscaras cirúrgicas de baton. Ver pessoas, sair, sair, sair a dançar. Dançar na rua? As máquinas de dançar estão tão longe… Estúdios e discotecas serão reactivados logo após uma vacina?» (idem)
[ambulância, ambulância, ambulância, ambulância ainda há 1h da manhã]
3 – E o som das nossas vidas como tem mudado nos últimos 9 meses de gestação? (vai nascer?).
Pois, acho que foi isso que aconteceu, o som ganhou uma importância maior. Pudemos distinguir diferentes qualidades de som dentro da cacofonia, dentro da verborreia… a rádio, o marulhar das ondas, os pássaros (incríveis!) ouvem-se sem o ruído dos carros, vento e trovoada… Ambulâncias, ambulâncias, um maluquinho que insiste no hino nacional. Que qualidade parva de querer pertencer… a quê? A Portugal?! O som das vídeo-conferências, telemóveis, do fervedor eléctrico, do micro-ondas, frigorífico… Tudo o que é parte da partilha comum, da comunicação, pode ser potenciado, trabalhado, tensionado, complexificado… bzz, brrum, tinoni… Afecto vibrátil de ondas invisíveis que não são 5G, queremos dar carinho e atenção ao som.
Atenção ao som, vai nascer!!!
[ – Mas era do teu prédio que vinham as projecções para a parede do hospital?! O mesmo vizinho que decorava dois lances de escada com figuras tenebrosas de Halloween?!! Ahahahahah, que cromo!
– Pois, todo um mundo… Mas afinal é esse “o OUTRO” também… e até lhe chamei “maluquinho” num parágrafo anterior… será que é um certo lugar de privilégio que me leva a fazê-lo? A exaustão, a impaciência? Desepero… Não sei…]
4 – Sobre escuta, tensegridade, embriologia e energia vital…? Sobre dançar, alguém?
Dançar enquanto poética salva-vidas. Colete de sobrevivência. Resgate de alguma humanidade em nós imóveis dentro de uma casa. “…só nos resta cantar!” (só nos resta dançar?).
É a voz colocada, convocada com um paninho na boca, mas pronta a dançar os perdigotos nos lábios por aí afora até desencravar a máscara (mais parece uma mordaça, embora nos aqueça o nariz no inverno que chega).
Trans-tensegridade que é simultaneamente sentir, partilhar e propor em comum.
Transvasar… e escapar…
Transpor… e com-posicionar-se…
Transparecer… e aparecer…
Transperformar… e presentificar…
Transaccionar… e operar…
Transagir… e afinar…
Transduzir…
Transacto… actual… aqui.» (idem)
[agradeço a colaboração directa de Sofia Neuparth e indirecta de Bernardo Bethônico, Nicolau Ferreira e Margarida Agostinho entre dezenas de transpensadores].
Referências bibliográficas
Antunes, R. F., & Coelho, S. P. (2021). “Sobre Caminhar em Confinamento”. Revista Lusófona De Estudos Culturais, 8(1), 155–173. https://doi.org/10.21814/rlec.3216
Berardi, F. (2020). Crónicas da psicodeflacção. Lisboa: Tigre de Papel.
Cachopo, J. P. (2020). A torção dos sentidos, pandemia e remediação digital. Lisboa: Sistema Solar.
Deleuze, G. & Guattari, F. (2004/1972). “1837 – Sobre a Lengalenga”, Mil planaltos, capitalismo e esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio e Alvim. Originalmente publicado em 1980.
Manning, E. (2016/2012). “Dançando o Virtual, Interlúdio”. Revista de Comunicação e Linguagens, nº45/46, 185-197. – Movimento e Mobilização Técnica. Lisboa, CECL-ICNOVA, FCSH. Originalmente publicado em 2013.
Stiegler, B. (2018). Da Miséria Simbólica: I. A Era Hiperindustrial. Lisboa: Orfeu Negro.
Vujanovic, A. & Cvejic, B. (2022). Toward a Transindividual Self, a Study in Social Dramaturgy. Oslo: ONAA, e Bruxelas: SARMA.