ecovisões em cenário worldwidewebiano

«Break the pattern which connects the items of learning and you necessarily destroy all quality. […] What pattern connects the crab to the lobster and the orchid to the primrose and all the four of them to me? And me to you? And all the six of us to the amoeba in one direction and to the backward schizophrenic in another? […] What is the pattern which connects all the living creatures?» (Bateson, 1985: 16-17)

 
O botânico, físico e zoólogo sueco Carolus Linnaeus, também conhecido por Carl Linnaeus, Caroli Linnaei ou Carl von Linné (1707-1778), no seu Systema Naturae, per Regna Tria Naturae secundum Classes, Ordines, Genera, Species cum Characteribus, Differentiis, Synonymis, Locis (Lugduni Batavavorum: Haak, 1735), classificou as coisas da Natureza em três reinos: Animalia, Vegetalia e Mineralia. A sua extensa obra, marcada por uma grande paixão pelo estudo das plantas de que são exemplo Genera Plantarum (1737), Classes Plantarum (1738), Philosophia Botanica (1751), Species Plantarum (1753), Genera Morborum (1763) ou Systema Vegetabilium (1774), inclui livros e manuscritos sobre o regno lapideo, o regno animali e o regno vegetabili. O seu Centuria Insectorium Rariorum (1763), como o título indica, é dedicado aos insectos. A décima edição de Systema Naturae (1758), obra em que continuou a trabalhar ao longo dos anos, é o ponto de partida da nomenclatura binomial que para cada organismo determina o nome do género e o nome da espécie, em latim. O sistema de nomeação que desenvolveu, ainda hoje é referência para o conhecimento da biota terrestre e orientação da biodiversidade e sustentabilidade. Porém, passados 259 anos, e perante os graves desequilíbrios emergentes nestes domínios, a questão que se coloca é como pensar a ligação entre estes reinos, espécies e géneros tão distintamente identificados; como visualizar as conexões entre o animal, o vegetal e o mineral.

No contexto de um discurso sobre o Amor em O Banquete, Platão descreve a teoria do semelhante pelo semelhante apelando a que se imagine uma criatura inteira e globular, com as costas e os flancos arredondados, com quatro mãos e igual número de pernas; duas faces iguais sobre o pescoço e uma cabeça onde assentam as faces colocadas em sentido oposto; quatro orelhas, órgãos genitais em número de dois; e tudo o mais que a partir daqui se possa imaginar. Que caminham erectos em qualquer dos dois sentidos e correm às cambalhotas projectando as pernas para o ar e, apoiados nos seus oito membros, se deslocam velozmente em círculo. Esta seria a forma antiga do humano, antes de os deuses a dividirem ao meio, fazendo dois de cada um. Conta que as metades cortadas, com saudades da sua própria metade, se reuniam e enlaçavam e se uma delas morria, a outra procurava, ao acaso, semelhantes com quem se juntar (Platão 2008, 64-75).

Pensando uma confluência entre os reinos de Lineu e a criatura de Platão, imaginemos uma criatura (ou estrutura) nova, integralmente humana e não-humana, compósita animal-vegetal-mineral, numa unidade fundamental em equilíbrio, a forma exacta dessa figura variando consoante a imaginação de cada um e o mundo-próprio daquele que a imagina. Uma vez dividida em três partes, a cada parte separada corresponde um reino sem que se perca a ligação original intersticial com os outros dois. E cada reino se multiplica em n criaturas (estruturas) da mesma natureza, qual multiplicação fractal. Podemos conceber como criatura (ou estrutura) maior o planeta Terra, outras mais pequenas as árvores e as montanhas, ou os seres humanos e as águias, os seixos dos rios; os líquenes nas florestas… O importante é a unidade que cada retém. Sendo cada reino originariamente parte da estrutura tripartida compósita, cada um mantém na memória de si a dos outros dois reinos com que formou um todo. E o mesmo com as criaturas (estruturas) que agrega no seu domínio. Assim, o humano preserva em si o animal próprio do reino animal e, conjuntamente — e não só na memória interior fundamental mas também no organismo — o vegetal e o mineral. Respectivamente, os vegetais retêm em predomínio o vegetal mas também o animal e o mineral. E, reciprocamente, os minerais exibem em destaque o mineral mas contêm em si o animal e o vegetal.

A preservação dessa tripla consciência de si — e do mundo — firmaria a integridade da própria criatura (ou estrutura) e do mundo. Esta tripla composição nem sempre é evidenciada nas criaturas e estruturas separadas da estrutura planetária, embora essoutra mantenha continuamente as três componentes bem visíveis ainda unidas, pelo menos nos contextos geográficos do mundo natural; por isso, ao observarmos as montanhas, reconhecemos a terra, as pedras, os musgos, os fungos, as larvas…

Esta ideia, possivelmente demasiado lúdica para certos escrutínios, não é tão imaginativa quanto parece. No caso humano, a manifestação visível dessa tripla natureza encontra-se, a exemplo, na componente mineral água que o compõe e na componente vegetal oxigénio que o percorre. Sabemos que o corpo humano é cerca de 60% água, entre outros minerais, como o ferro ou o cálcio. O oxigénio alcança percentagem semelhante e é de origem vegetal. Do ponto de vista físico e orgânico, esta visão é facilmente comprovável. Com valores variáveis, os outros animais seguem a mesma evidência. Os campos da botânica e da mineralogia talvez exijam uma observação mais especializada. Contudo, nas plantas, atentemos na singularidade do néctar que é fonte de água e de carbohidratos ou nos formatos e funções das raízes tão similares a neurónios; nos singulares delineamentos das algas marinhas e de água doce. Nos minerais, nas configurações dos fósseis incrustados nas rochas, nos líquenes encontrados em muros e rochedos, no modo como se conjugam em simbiose.

A eminência de catástrofe ambiental destruidora que assombra o Antropoceno aporta o conceito de sombra. A sombra, nos arquétipos junguianos, relacionada com o que cada sujeito reprime e rejeita de si, com aspectos inferiores e menos nobres do comportamento ou carácter, enforma o self negativo, a sombra do ego que quanto mais reprimido maior se torna, podendo devir gigantesco. Usando aqui a analogia, a sombra da espécie humana assume a sua forma — ou uma das suas formas — nestes séculos de exploração das outras espécies e negligência dos recursos naturais; na subjugação do mundo natural a epistemologias centradas na superioridade da razão humana e na avidez do lucro económico. A dimensão exponencial dessa sombra conduz a necessidade de reconhecimento e reconversão. Se procurarmos a origem dos processos que engendraram tais epistemologias e práticas — agora que a sombra se transforma na assombração de uma civilização — encontramos nessa vontade desvairada de domínio da Natureza uma separação, uma cesura, um distanciamento da ideia de uma unidade fundamental que tudo conecta, representada na figura compósita animal-vegetal-mineral como imagem do equilíbrio do mundo terrestre e do próprio sujeito.

Mas o importante deste enunciado é a ideia que introduz de uma unidade e interligação entre os vários reinos do mundo natural em que vivemos, e que inclui os humanos. O tipo de estratégia mental e de ligações que desencadeia pode fazer a diferença como metáfora inteligível e sensível. Além dos processos de empatia que permite imaginar com os outros organismos e com a criatura (estrutura) total, remete para uma identidade partilhada entre as diversas espécies e organismos nas suas géneses tripartidas. Na Antiguidade, sobretudo a partir do século II a.C., uma longa tradição estabelecia ligações entre as forças e os seres da Natureza, nas inter-relações que a partir das respectivas propriedades e virtudes se estabeleciam entre os três reinos.

Citando Bateson, o que temos no pensamento são ideias, «a epistemologia, as teorias da mente e as teorias da evolução parecem ser a mesma coisa», e «a epistemologia é uma denominação de certa forma mais geral que abrange tanto as teorias da evolução quanto as teorias da mente» (Bateson 1990, 36). Migdley sublinha «the shape of our imagination determines the kind of scientific theories we can hold, doesn’t it? […] It was the imaginative pattern that determined the shape of the scientific theories.”» (Migdley 2008). E mais recentemente, Haraway salienta «O que importa é que narrativas contam narrativas, e que conceitos pensam conceitos. Matematicamente, visualmente e narrativamente, é importante pensar que figuras figuram figuras, que sistemas sistematizam sistemas.» (Haraway 2016) Sendo cada vez mais evidente que o que pensamos, imaginamos e concebemos devém determinante no (conhecimento) que praticamos e disseminamos, neste momento histórico parece fundamental decidir quais as ideias e pensamentos que pretendemos prevalecer e perpetuar. E tudo isto deve estar relacionado com respostas a perguntas prementes nestes tempos como: o que conduziu a civilização a este declínio ecológico, e se será ainda possível manter algum optimismo.

A perda da ideia de conexão entre as coisas do mundo e da Natureza é assinalada pelo autor de Mind and Nature: A Necessary Unity, «Most of us have lost that sense of unity of biosphere and humanity which would bind and reassure us all with an affirmation of beauty. Most of us do not today believe that whatever the ups and downs of detail within our limited experience, the larger whole is primarily beautiful.» (Bateson 1985, 27) A sua epistemologia, que parte dos seres vivos e da procura de compreensão da estrutura que liga todas as coisas, descreve essa conexão onde reside toda a qualidade como uma dança entre partes de actuação recíproca, numa estrutura que coincide com a unidade fundamental, unificadora. A perda desse conceito é inseparável da perda de uma visão ecológica do mundo que nos inclui,

«We have lost the core of Christianity. We have lost Shiva, the dancer of Hinduism whose dance at the trivial level is both creation and destruction but in whole is beauty. We have lost Abraxas, the terrible and beautiful god of both day and night in Gnosticism. We have lost totemism, the sense of parallelism between man’s organization and that of the animals and plants. We have lost even the Dying God. We are beginning to play with ideas of ecology, and although we immediately trivialize these ideas into commerce and politics, there is at least an impulse still in the human breast to unify and thereby sanctify the total natural world, of which we are.» (Bateson 1985, 27)

e, na assunção dessa perda enquanto erro epistemológico, recorda que sempre existiram e ainda existem no mundo epistemologias diferentes e contrastantes que confluem no reconhecimento de uma unidade fundamental, facto onde reconhece alguma esperança face à hegemonia da ciência quantitativa: «The uniformity of these views gives hope that perhaps the great authority of quantitative science may be insuficiente to deny an ultimate unifying beauty.» (Bateson 1985, 28)

A prevalência do paradigma mecanicista que regeu a modernidade e remonta à revolução científica do século XVII desvaneceu uma facção científica fortemente desenvolvida no Ocidente latino desde o século XII e à época igualmente respeitável. Concretizada na sua plenitude por Ficino e praticada na sua Academia (1433-1499), esta doutrina «preferia a imagem da simpatia e da antipatia entre as várias substâncias e muitas vezes usou a linguagem do amor numa rede universal de títulos gerados pela Mãe Natureza» (Migdley 2007, 5). Migdley acrescenta que os cientistas, entre os quais Kepler, usavam este método na comparação e compreensão de diferentes tipos de atracção e certamente o teriam aplicado ao fenómeno da electricidade, mas os mecanicistas, incluindo Galileu e mais tarde Newton, rejeitaram a possibilidade de um objecto atrair outro directamente. Assim se manteve até aos nossos dias uma ideologia centrada na ideia da matéria enquanto forma inerte e morta, reforçada pelo paradigma de Descartes; e, sobretudo, a recusa da ideia de uma Natureza participativa, interveniente, nutriente — tendo sido resolvido todo o mistério da Natureza na visão dos animais não-humanos como meros autómatos inconscientes (Migdley 2007) e, por isso, sujeitáveis a qualquer barbárie.

Na verdade, esta vertente de estudos conhecida por «magia natural» e que retoma e transforma ideias de Plotino sobre a magia da Natureza, admite uma explicação natural de tendência científica para fenómenos que até então a «magia antiga», praticada desde os tempos mais recuados, atribuía a deuses e demónios. Esta nova tendência, esboçada no início do século XIII por Guillaume d’Auvergne, nas suas aproximações entre a magia natural e a medicina, é mencionada por Roger Bacon no seu Sur les oeuvres secrètes de l’art et de la nature (1260), que reserva o nome de magia para os contextos anteriores mas «laisse entendre que la “science expérimentale”, l’«art usant de la nature comme d’un instrument”, peut produire des effets bien plus extraordinaires que ceux de la magie.» (Hadot 2004, 123). Em Ficino, o Amor devém a magia primeira que atrai os seres e as substâncias entre si, a simpatia universal na base das atracções que se exercem entre todas as partes do mundo. É no amor recíproco manifesto entre as coisas do mundo natural que reconhece a magia da Natureza. A descoberta dos poderes e virtudes ocultas nos animais e nas plantas, das simpatias e antipatias que existem entre os seres da Natureza, permitia estabelecer uma série de correspondências simpáticas desde os planetas aos metais e às pedras, passando pelos seres vivos «et, en utilisant ces sympathies, d’obtenir des effets surprenants» (Hadot 2004, 126).

O papel determinante desempenhado no saber ocidental até finais do século XVI por esta sabedoria no entrosamento cosmobiológico das Quatro Similitudes − convenientia, aemulatio, analogia e simpatia (versus antipatia) − é assinalável. Mediante a articulação das semelhanças, a Lógica das Similitudes orientava em grande parte a exegese e interpretação dos textos, estabelecia ligações entre os seres animais e vegetais, entre o céu e a terra, desvendava um jogo de simpatias e um movimento comunicante entre as diversas espécies e reinos da Natureza, organizava o jogo dos símbolos, permitia o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, e guiava a arte de as representar. Este saber era construído a partir da observação do mundo natural e das ligações que nele se estabelecem (Foucault 1966). Apesar da dispersão e anulamento a que vai ser votada, a magia naturalis surge ainda em algumas obras do romantismo alemão. Contudo, uma ruptura definitiva «não só com as aspirações da magia mas com os seus métodos» advém com as metodologias mecanicistas e matematização da Natureza prosseguidas por Bacon, Descartes, Galileu e Newton, que circunscrevem o estudo dos fenómenos sensíveis ao rigor da análise do que é mensurável e quantificável (Hadot 2004), propensão prometeica que a partir do século XIX elimina todos os traços da outra escola.

Foucault identifica as grandes descontinuidades no campo epistemológico da cultura ocidental: a primeira em meados do século XVII com o começo da idade clássica, e a segunda no início do século XIX, com o advento da modernidade; a estas, acresce a mudança do sistema das positividades na viragem do século XVIII para o XIX. Descontinuidades que alteraram o modo de ser das coisas e da ordem que as oferece ao saber e introduziram o humano; sendo reconfortante saber que este não é mais do que uma invenção recente, «une figure qui n’a pas deux siècles, un simple pli dans notre savoir, et qu’il disparaîtra dès que celui-ci aura trouvé une forme nouvelle» (Foucault 1966, prefácio), conclui. Tal como Foucault, também Derrida ou Ferry avaliaram esses últimos trezentos anos em que tudo o que existe foi pensado em função da primazia humana e progresso em escalada progressiva, relegando o mundo natural não-humano para segundo plano, como um mau momento cujo término parece difícil vislumbrar, apesar da urgência de outros critérios. Outros nomes revelaram preocupações confluentes ao longo do século passado; de Carson a Stengers, de Eaubonne a Starhawk, de Shiva a Margulis, de Goodall a Macy, de Fontenay a Hermitte, de Adams a Beckert, uma pequena lista de mulheres para contrariar a tendência principal. Mas poderíamos referir Gandhi e Thoureau, Naess e Deval, Shepard e Maturana, a Ecologia Profunda e a Ética da Terra. Ou a proposta de Michel Serres — prosseguindo o Should Trees have Standing? Towards Legal Rights for Natural Objects (1972), de Christopher Stone — de reconversão da teoria do Contrato Social na teoria do Contrato Natural, com a revisão da categorização do humano enquanto único sujeito de direito (Castro, 2015); algumas resoluções judiciais recentes prosseguem nesse sentido, como é o caso da atribuição de direitos e estatuto jurídico de pessoa ao rio neozelandês Whanganui.

Referências que nos levariam também ao início do século XX e a Benjamin quando assinalava uma ligação entre a avidez técnica e económica, e a crise global do mundo natural ou a Jünger, Horkheimer, Heidegger, Marcuse ou Adorno, que assumiram posicionamentos convergentes. Anos mais tarde, Bateson classificaria de epistemologias erradas os modelos de pensamento que regem a contemporaneidade, apontando a desconexão que inscrevem na relação com o vivo e a impossível sustentabilidade que impõem no planeta. E pela mesma época, as abordagens científicas e filosóficas de Prigogine, Varela ou Lovelock, correlatavam perspectivas semelhantes sobre a ingerência humana no mundo mais do que humano (Castro 2015). Propostas mantidas nas margens do Capitalismo Mundial Integrado (Guattari 1989) que exige agora uma tomada de posição ecológica, simultaneamente política, social e cultural, à escala planetária.

Porém, as primeiras décadas de século XXI tornaram evidentes dois cenários. Por um lado, a manipulação dos interesses ambientais sustentada em planos estratégicos dissimulados, como testemunho de uma oligarquia globalizante que tem viabilizado a continuidade das condições do sistema capitalista e dos fluxos de lucro instituídos. Tendo sido já designada como canalização das ideias ecológicas para o domínio comercial e político (Bateson 1985) ou como profissionalização do movimento ambiental (Foreman 1991), de confusão entre ciência e política na rendibilização económica da questão climática (Stengers 2009) ou de risco de mercantilização da Natureza (Solón 2013) em que se pode tornar a economia verde, esta manobra de conveniências explora a imagem e marca «eco» com artifício e embuste. Por outro, a iminente classificação do Antropoceno e o paulatino reconhecimento da crise ambiental vieram coagir um refrear de práticas e discursos e solicitar a associação da ética e da arte aos posicionamentos políticos e científicos em curso, com o crescente interesse pela ecosofia e temáticas ecocríticas a contaminar estes múltiplos territórios, da política à arte, passando pelas ciências humanas e económicas mas sem que mudanças significativas preconizem a viabilização de cenários ecológicos optimistas.

A perspectiva de falência climática com repercussões globais devastadoras que assombra o Antropoceno ou, na designação de Haraway, o Chthuluceno — termo com que a autora pretende sublinhar a inextricável conexão entre o humano e o mais-que-humano ou o outro-que-não-humano nas fundações desta época; uma fluência temporal serpentina da mundificação terrânea no seu passado, presente e futuro — convoca a reconversão apontada por Serres. Esse (re)posicionamento do lugar (topos) do mundo natural vai ao encontro das propostas de reformulação de práticas e epistemologias sugeridas desde meados do século XX pelos movimentos e autores antes mencionados. Sem dúvida que este processo se agudizou nas últimas décadas com a evidência científica das ligações causa-efeito na insustentabilidade planetária. Consequentemente, teóricos que a partir da segunda metade do século passado se debruçaram sobre estes temas adquirem uma pertinência renovada, induzindo a possibilidade de se ir mais além no tempo histórico, ao encontro de eco-visões orientadoras. Haraway soma à autopoiesis a sympoiesis, termo com que designa a capacidade de criar, viver e morrer em conjunto com a terra danificada e com as outras espécies, na senda da construção de futuros menos fatalistas (Haraway 2016). Mas o reconhecimento da Terra como um sistema autopoiético, sugerido no início da década de 1970 na Hipótese Gaia, de James Lovelock e Lynn Margulis, tinha já adiantado uma visão sistémica do mundo em permanente dinâmica e interacção, num procedimento de auto-regulação das espécies e do próprio planeta que era um alerta para este presente. Contudo, aceitar o Sistema Terra como sistema auto-regulado tendo por objectivo a reunião de condições de habitabilidade para as espécies vivas quaisquer que sejam, não colocando a humana como única prioridade, não se coadunava com os interesses e estilos de vida instituídos na modernidade. Os paradigmas cartesiano e antropocêntrico, questionados no conceito de Sistema Terra, prosseguiram ao longo de décadas na negação, apesar da informação recolhida. E o capitalismo — o Capitaloceno — rejubilou e sustentou a hubris até este lugar de crise e iminente condenação ecológica do humano.

Estará o humano condenado? Elisabeth Povinelli em Geontologias e o Imaginário do Carbono (2014) sugere três (novas) figuras de poder geontológico — com o que designa não «apenas a governação da e pela vida mas antes a governação da divisão entre tipos de vida e valores, e entre vida e não-vida» — figuras que emergem nas estratégias e discursos e comunicam algo sobre a actual mudança de poder na formação de poder. São elas o deserto, o animista e o vírus. Configura que a divisão entre vida e não-vida está em dissolução nesta época geológica em que não só os humanos são irrelevantes como são malévolos e perigosos. Pouco depois, no capítulo «Desdramatizar o Humano, Mudar de Forma» (27-40), adianta a necessidade de desdramatizar a morte e a extinção humana perante a iminência de alterações nas qualidades do corpo humano, uma mutação em curso, se não forem tomadas algumas opções decisivas em prol da sustentabilidade e que não parece credível que venham a ser efectivadas.

A questão do humano reenvia-nos para Lineu. Na sua taxonomia inicial (1735), Lineu inscreveu o Homo na ordem dos Antropomorpha (Antropomorfos) que mais tarde, na décima edição (1758), passa a designar como Primates (Primatas) ao lado dos Simia, Lemur e Vespertilio (Morcego). Frequentemente considerado pai da taxonomia, terá sido influenciado na botânica por Nehemiah Grew, na zoologia por John Ray e no sistema de nomeação a que veio dar uma base teórica, por Casper Bauhin. John Ray em 1693 distinguiu os Antropomorpha entre os quadrúpedes, como sendo os «semelhantes ao homem». No mesmo diluimento de fronteiras, Edward Tyson na sua dissertação Orang-Outang sive Homo Sylvestris or the Anatomy of a Pygmie (1699), questionara ser o «pigmeu» uma espécie de «animal intermédio» entre o macaco e o humano, tal como este último entre o pigmeu e «aquele género de criaturas que é mais próximo acima de nós», referindo-se aos anjos. Curiosidade maior, na sua salutar originalidade e actualidade é o comentário que Lineu apresenta numa nota de rodapé de Systema Naturae relativamente à teoria cartesiana dos animais enquanto automata mecânicos, onde escreve sem peias «Cartesius certe non vidit simios» [«certamente, Descartes nunca viu um macaco»] (Agamben 2004, 23).

Segundo Agamben, que sublinha a proximidade entre a classificação do animal humano e do não-humano antes do século XIX e do desenvolvimento das ciências humanas, no que respeita à capacidade da linguagem que se acreditava ser extensiva aos pássaros, o próprio John Locke terá referido como coisa mais ou menos certa, a história do papagaio do príncipe de Nassau que seria capaz de manter uma conversa e de responder a questões como uma criatura razoável — o que nos remete para Koko e Michael há cerca de quatro décadas em observação na Gorilla Foundation, que detêm um vocabulário de cerca de 2000 palavras e comunicam com os humanos em Ameslam (American Sign Language). E o que singulariza Lineu é o seu imperativo de — a partir da décima edição de Systema Naturae — acrescentar sapiens a Homo apenas enquanto tributo à capacidade de este Homo se reconhecer; i. e., o facto de não atribuir ao humano nenhuma identidade específica senão a de poder reconhecer-se (Agamben 2004, 23). Acresce que não só o humano é o animal que deve reconhecer-se como humano para sê-lo, como também é o que devém si mesmo apenas se se eleva acima do humano: na verdade, essa é a única característica que, do ponto de vista da História Natural, o distingue do macaco.

Poderemos, então, concluir com Agamben ser o Homo sapiens um dispositivo — uma máquina ou um artifício irónico — que serve para produzir o reconhecimento do humano? E, se é nesse reconhecer-se e nessa elevação acima do humano que o Homo se torna sapiens, poderemos ir um pouco mais longe e interrogar quantos dos oficialmente declarados desde a nascença Homo sapiens são apenas Homo, antropomorfos, i. e., «semelhantes ao humano» — tal como os macacos? Porquanto, observando o sujeito humano histórico e contemporâneo à luz do imperativo de Lineu, não deixa de ser curioso quanto a elevação e o reconhecimento de si não foram ou são práticas tão generalizadas e promovidas quanto os registos de nascimento. A ser assim, mais antropomorfo do que humano, residirá nessa especificidade a difícil aceitação de um Todo interligado onde o Vivo é uma parte de que faz parte, em iguais circunstâncias de legitimação com as outras espécies? Aparentemente não, uma vez que apenas o Homo tem a necessidade de negação e subjugação da Natureza e do Outro. Mas, aprofundando as premissas anteriores, percebe-se que Homo é o que está entre o animal e o humano e também entre a natureza terrestre e a celeste — um pouco abaixo do humano… — suspenso, numa ausência de natureza própria que, essa sim, poderá consubstanciar a hipótese colocada em forma de interrogação.

Ademais, essa ausência de natureza própria é descrita, três séculos antes da obra de Lineu, na Oratio de Hominis Dignitate, de Pico della Mirandola: «Non ti ho fatto né celeste né terreno, né mortale né immortale, perche di te stesso quasi libero e sovrano arteice ti plasmassi e ti scolpissi nella forma che aversi prescelto. Tu potrai degenerare nelle cose inferior che sono i bruti; tu potrai, secondo il tuo volere, rigenerarti nelle cose superiore che sono divine.» (Pico della Mirandola 1994, 9) Não tendo o humano arquétipo, lugar, ou escalão específico, não tendo sequer uma face e devendo, por isso, escolher moldá-la na forma divina ou na da besta, será essa falta de natureza própria, essa possibilidade de escolha entre o pior e o melhor — na sua hibridez capaz de percorrer todas as dimensões do possível — que se torna crucial repensar nestes tempos antropocénicos, capitalocénicos, chthulucénicos? Talvez sob a ascendência dessa perspectiva e perante a inevitabilidade das novas configurações ecológicas, humanas e não-humanas, de que somos factores decisivos, se entenda mais facilmente a necessidade de questionar e alterar os paradigmas e práticas regentes.

Não sendo mensuráveis as repercussões da cisão imposta pelo pensamento mecanicista à anterior visão do mundo como cosmos organizado = espaço de ligação entre os seres, a sociedade e o cosmos, em interdependência e em positividade recíproca, cumpre registar um pormenor curioso. Se, por um lado, a perda da metáfora da interdependência entre as coisas do mundo num «organismo» comum se objectiva na devastação antropocénica, por outro, não podemos deixar de (atentar na ironia e) interrogar se encontrará eco na recente organização World Wide Web + Internet, com as suas redes globais de ligação entre espaços, sujeitos e conteúdos. Se aí se projecta e transfere uma interdependência outra, de coisas deste mundo, um modelo substitutivo do anterior, entretanto perdido. A ser assim, seria a substituição de um «organismo» sensível, orgânico e macrocósmico, por um «organismo» máquina, de informação em rede, opsígono do Mecanicismo e da Revolução Industrial, com a remissão da Natureza para o território do tecnológico. Resta interrogar se a (sensação de) conexão que este novo modelo suscita e declarada eficácia comunicacional que instaura são (suficientes enquanto) substitutos dessa outra ligação global e que cenários futuros este novo modelo perspectiva. Latour sugere que se esqueça a palavra «natureza» e questiona a eficácia da distinção entre o que é natural e o que não é natural, num mundo em que «as leis da natureza» se transformaram, sobretudo, em leis da economia (Latour 2015, 221). Mas, procurando manter alguma esperança e porque o que pensamos e as ideias que veiculamos têm importância no devir do mundo, sustentamos que se devolva (na escrita e na ideia) à Natureza a maiúscula (como outrora era uso na língua portuguesa) a enfatizar a sua singularidade e a multitude de seres, espaços e ligações que apesar de todas as devastações ainda viabiliza. O nome próprio e a dignidade a que tem direito e a distingue de outras significações. E pensemos o território da funcionalidade, da economia e da política; mas também o da cultura, das relações sociais e do prazer, a partir desse outro onde se processa o bios e as relações profundas entre os elementos; e no seio do qual a destruição a que é sujeito engendra a extinção do destruidor.

Na verdade, nascemos num mundo, vivemos noutro e cumpre-nos preparar o seguinte. Essa poderá ter sido a grande ordem em todos os tempos mas poucos momentos históricos a assinalaram com tamanha urgência e (para os que não desviam o olhar) sobressalto.

 

Bibliografia

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