Tecno-êxtases. Visões desde o invisível

Tecno-êxtases. Visões desde o invisível[1]

Num livro nunca escrito, datado de 1658, em Lérida, Suárez Miranda, no capítulo catorze do Livro IV das suas Viajes de Varones Prudentes, observa:

Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo, estes Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade entregaram-no às Inclemências do sol e dos Invernos. (Borges 1982, p. 117)

Personagem imaginário, Suárez Miranda é o autor fictício de um conto escrito em 1946 por Jorge Luis Borges intitulado Del rigor en la ciencia. Ficção brevíssima, a história evoca o fim de uma era e a entrada nos novos desertos da razão ocidental pressentidos por Nietzsche. O fim de uma era, em que o impulso cartográfico coincidiu com uma nova época da razão, com a exploração do desconhecido. O desconhecido na modernidade ocidental experimenta uma mutação, que o transforma de força primordial que sempre habitou o pensamento em resíduo do passado. O desconhecido converte-se simplesmente naquilo que ainda não é conhecido. Quase contemporânea deste impulso para o mapeamento integral do Orbe em vias de se transformar em Globo, e da obsessão de conquistar a Terra a partir de um hipotético centro de civilização, é a revolução das estrelas. Em março do 1610, Galileu publicou o seu Sidereus Nuncius, “stravagantissima meraviglia”: um tratado de astronomia que apresenta descobertas sem precedentes, possibilitadas pelo aperfeiçoamento técnico do telescópio, um novo instrumento fabricado na Holanda alguns anos, que tinha aumentado a capacidade de observar corpos celestes a distâncias siderais.

O nascimento da ciência ocidental moderna coincidiu com o desenvolvimento de dispositivos ópticos que resultaram na descentralização do universo humano e no fim do geocentrismo. Mas, ao mesmo tempo, esta revolução do centro conduziu a um recentramento paradoxal, que dá à modernidade a sua perspetiva específica. O que se torna central é o posicionamento do sujeito e a sua capacidade de se tornar fonte activa e origem de sentido. Na sequência desta revolução astronómica, a razão iluminista traçou uma cartografia psicopolítica dos limites do ver, uma economia da visibilidade que, graças ao seu poder de visão cada vez maior, analisa e revela o mundo que nos circunda. O Iluminismo, escrevem Adorno e Horkheimer, é “totalitário”[2], no sentido em que a sua razão exige a aquisição de uma visão do mundo inteiro a partir do exterior. Exige a visão global de um sujeito que tem o poder de ver o mundo a partir de outro mundo: porque uma totalidade só pode existir porque há uma fronteira que define a divisão de um determinado espaço em relação ao exterior e porque há uma lei que preserva essa fronteira.

A totalização planetária é facilitada por uma multiplicidade de sistemas interoperáveis constituídos por elementos técnicos, económicos, culturais, biológicos, ecológicos e políticos, que estão constantemente a desintegrar e a reintegrar o planeta. As estruturas epistemológicas planetárias produzem volumes de dados cada vez maiores como resultado de uma dominação cada vez mais íntima do planeta. A visualização de inúmeros fluxos pessoais e monetários está ligada a redes globais de tecnologias de detecção que captam quantidades cada vez maiores de dados. O teórico dos media Marshall McLuhan apercebeu-se desta nova condição numa entrevista dada em 1974, na qual observava que o Sputnik tinha criado um novo ambiente para o planeta. Segundo McLuhan, pela primeira vez, todo o mundo natural estava encerrado num receptáculo fabricado pelo homem. No momento em que a Terra transitou para o interior deste novo artefacto, a Natureza terminou e a Ecologia começou: o pensamento “ecológico” tornou-se inevitável quando o planeta se tornou uma obra de arte.[3]

O encontro entre este poder de visão, a potência de processamento de dados e as tecnologias de controlo unificou ambientes separados numa violência à escala mundial, devido à pressão generalizada e permanente de inúmeros conflitos híbridos. Neste espaço político, já não é possível circunscrever qualquer separação entre o pessoal e o comum: causa e efeito, possibilidade e potencialidade, passado e futuro estão indefinidamente integrados e desintegrados, de forma simultânea e conjunta. No entanto, se o “globo” é uma abstração – produto de uma visão territorial que se transformou numa visão metafísica universalizante – o “planeta”, enquanto sistema alheio a qualquer domesticidade ou familiaridade, pode ser visto como um conjunto múltiplo que reúne entidades não substituíveis. Neste sentido, a planetaridade exprime uma alteridade que não provém de nós, um sistema que nos transcende mas no qual, no entanto, habitamos. Portanto, a planetaridade é um sintoma do colapso da ideia de totalidade e do fim da era moderna da globalidade.[4]

Na era do “Antropoceno”, com toda a ambiguidade que tal termo implica, dimensões que eram antes consideradas separadas parecem agora estar destinadas a um destino comum (ou, pelo menos, a uma colisão inevitável). Uma nova narrativa está inscrita nos sedimentos da terra. Esta história tem por base uma evolução material que já não compreende a origem da humanidade num contexto puramente biológico, mas também num contexto geológico. A colisão de esferas humanas e não humanas – paradoxalmente ligadas por relações incomensuráveis e não pelo sistema de equivalência que caracteriza o intercâmbio capitalista – abre o pensamento a uma escala que escapa a qualquer significado pré-estabelecido.

A tecnologia já não é um sistema à disposição da razão humana para agir sobre o mundo a fim de o modificar ou de procurar soluções na via do progresso, mas é o mundo que habitamos, um fim em si mesmo, onde as coisas, os algoritmos, as máquinas e os sistemas informáticos impregnam e dominam os nossos corpos ao ponto de os tornar parte integrante do universo das matérias-primas, dos equipamentos e da comunicação. A humanidade é hoje o objecto, e não o sujeito, de uma metamorfose que transcende as suas qualidades biológicas e sociais. Estamos a viver uma nova condição em que a tecnologia se torna tecno-mágica, ou seja, uma máquina cosmomórfica de ritos e mitos que geram um novo sujeito tecno-extático. Depois de uma longa era em que a tecnologia era uma ferramenta à disposição do homem, entramos agora num sistema integral e integrado de informação, algoritmos, técnicas, redes e dispositivos em que a capacidade máxima de controlo está associada à perda absoluta de qualquer medida humana, de qualquer limite até agora respeitado.

O tempo em que vivemos parece estar a ser dominado por uma proliferação incontrolável de previsões do futuro. Computadores cada vez mais potentes produzem modelos de previsão baseados na visualização e agregação de dados sobre o nível das marés, a subida da temperatura global e as precipitações. Estes modelos permitem simular operações militares capazes de responder às insurreições de populações extenuadas pelas medidas disciplinares contra as pandemias, bem como às perturbações fronteiriças provocadas pelas migrações em massa. Mas, ao mesmo tempo, as invisibilidades também se multiplicam, proliferam: perante um mundo que parece cada vez mais inacessível às formas anteriores do pensamento humano, a imaginação contemporânea, assombrada por vírus e fantasias de extinção, desafia todas as declinações da fenomenologia em que a experiência humana continua a ser o fenómeno fundamental. Esta inacessibilidade não é simplesmente uma interdição de acesso a algo que, tendo permanecido latente, será um dia iluminado. Tal como a ameaça de extinção, não está destinada a desaparecer como uma sombra ao sol, mas pelo contrário a transformar as possibilidades de existência.

Segundo Walter Benjamin, a relação quotidiana com os dispositivos que ainda nos mantém prisioneiros é a condição necessária para nos podermos libertar da escravidão dos aparatos, quando o sensorium humano se tiver adaptado às novas forças de produção. Para o autor de “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”,  a emancipação, neste sentido, é a deseducação perpétua da servidão. A revolução implicará um novo equilíbrio entre os seres humanos e os aparelhos, criando uma comunidade historicamente nova, nascida da exposição a novos choques estéticos, que amplie o campo de acção a tal ponto que já não possa ser delimitado pelos territórios dos diferentes humanismos.

Se o poder se apresenta hoje tecnicamente distribuído em redes difusas e já não concentrado em palácios e centros de decisão ligados a partidos e a instituições internacionais, o mesmo acontece com a resistência, que por sua vez se torna disseminada e imanente. Cada fluxo, cada canal de transmissão, cada aeroporto, cada centro de dados, cada plataforma de transferência de informação pode tornar-se um agente de insurreição planetária. Um agente que ainda não conhece o seu campo de acção, mas que já sente as suas próprias exigências, ampliadas de forma incomensurável. Um agente de um programa do qual ainda não se encontram marcas nos projectos políticos, mas que pode propagar-se por inúmeros canais, muitas vezes invisíveis, e tornar-se imparável, porque não é localizável.

A multiplicidade das composições planetárias mostra que a vida tem sempre a possibilidade de se organizar sem se confinar. Fragmento entre fragmentos, este agente dessituado revela formas inéditas de resistência e existência através de sucessivas contaminações, hibridações e concatenações. Incorporações para além da carne humana que anunciam o advento de corpos ainda completamente desconhecidos.

Notas

[1]Uma parte destas reflexões apareceu em francês com o título “Nul autre monde n’est pas possible. Fragments pour une écologie politique de la visibilité”, in La Fúria Umana, International and Multilanguage Journal of History and Theory of Cinema, No. 39, 2020.

[2]Theodor W. Adorno et Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, Philosophische Fragmente, Querido Verlag, Amsterdam 1947.

[3]Marshall McLuhan, “At the Moment of Sputnik the Planet Became a Global Theatre in which There Are No Spectators but Only Actors”, in Journal of Communication 24, 1974.

[4]Para uma argumentação mais circunstanciada e uma bibliografia mais exaustiva sobre estas questões, consulte-se Giovanbattista Tusa, “De-limitations. Of Other Earths”, Stasis Vol. 9, No. 1, 2020, pp. 166-183.

Bibliografia

Adorno, Theodor W. e Horkheimer, Max (1947). Dialektik der Aufklärung, Philosophische Fragmente, Querido Verlag, Amsterdam.

Borges, Jorge Luís (1982). “Sobre o Rigor na Ciência”, in História Universal da Infâmia, trad. de José Bento, Assírio e Alvim, Lisboa.

McLuhan, Marshall (1974). “At the Moment of Sputnik, the Planet Became a Global Theatre in which There Are No Spectators but Only Actors”, in Journal of Communication 24.