“Sabes, um minuto aqui custa biliões.”
Uma campainha toca, faz-se silêncio e as pessoas juntam-se à volta da câmara central da Bolsa de Roma onde se anuncia um minuto de silêncio em memória de um corretor de bolsa, fulminado por um ataque cardíaco. Um enxame de telefones invade o grande salão. Alguns corretores impacientes fazem contas ao dinheiro que estão a perder. Outros dão-se ao momento e carregam um ar pesaroso. O minuto termina, os telefones calam-se para mais não serem ouvidos, e a gritaria volta a ecoar, as transações voltam a ser feitas. O fluxo volta a correr.
Esta sequência da bolsa de L’Eclisse (1962), de Michelangelo Antonioni, revela a emergência de uma sociedade em que os fluxos de capital são contínuos e invadem as relações sociais através dos meios de comunicação de massas, que trabalham uma economia libidinal – através da des-subjetivação e da colonização do desejo – para a exploração hiperindustrial até ao último reduto da intimidade. Um processo que avança de forma ininterrupta, excetuando a breve pausa de respeito pela morte de um colega, que aponta para a pressão que este funcionamento das coisas (por via dos mercados) coloca sobre os sujeitos.
Se podemos argumentar pela impotência desta “suspensão” – esta breve interrupção do funcionamento dos mercados não significa o fim do capital –, também podemos entender nela um momento em que a positividade do pensamento unidimensional deixa entrever aquilo que suprime: a negatividade que questiona a ordem do estabelecido. Este ensaio propõe-se a pensar em algo semelhante: a possibilidade de a arte provocar uma suspensão no fluxo libidinal de imagens que sustenta e constrói o consumo e a produção contemporâneos, e que é por estes informado.
A imagem espetacular como produção de isolamento
Nos filmes de Antonioni, as representações de incomunicabilidade, os planos que separam ou fragmentam as personagens, a forma como estas entram e saem de plano em movimentos que desconstroem o espaço coexistem com representações de uma industrialização crescente, com uma natureza desencantada e as crises individuais dos personagens. Sem querer reduzi-los a isso, estes filmes são sintomas da dominação de uma economia de massas nas sociedades europeias e dos efeitos que ela provoca nas subjetividades dos indivíduos.
O grande progresso tecnológico dos séc. XX e XXI serviu para estabelecer um estado de “sobrevivência aumentada”, cujo objetivo não é “conter a privação”, mas diversificar e ampliar as necessidades das sociedades mais desenvolvidas (Debord, 2006: 778-779). A produção de grandes excedentes, de grandes desperdícios e da obsolescência programada tem como projeto social a manutenção das relações de classe e do sistema económico baseado na dominação e controlo. A melhoria das condições de vida obtida com a transição de um modelo disciplinar e fordista para um modelo positivista não pôs termo à exploração. Como nos lembra Byung Chul-Han (2014), o agente (direto) da exploração desloca-se, esta passa a ser autoimposta, mas não desaparece.
Esta transformação do pós-guerra, importada dos Estados Unidos onde havia sido implementada, é fundamental para se perceber o alargamento da participação do indivíduo no sistema industrial – além de trabalhador, passa a ser também consumidor. E é por ter de ser convencido a participar de forma convicta no consumo e na produção, que as imagens se transformam na mediação das relações sociais que caracterizam o espetáculo, fruto e causa do “modo de produção existente”, sendo assim o meio pelo qual se “constitui o modelo presente da vida socialmente dominante” (Debord, 2006: 767). Acompanhando a especialização e alienação industrial, as imagens expandem assim a separação entre a vida imediata e as representações, como negação da vida imediata e a “produção circular de isolamento” (Debord, 2006: 773).
As imagens espetaculares não se limitam a convencer-nos a consumir, a votar neste ou naquele candidato, ou a adotar ou evitar determinado comportamento através de mensagens prescritivas, mas fazem-nos, essencialmente, participar no sistema social tal como está estabelecido. A partir da produção de isolamento, o espetáculo é também o que unifica positivamente a sociedade, eliminando toda a negatividade – toda a suspeição e toda a crítica. “O carácter fundamentalmente tautológico do espetáculo vem do simples facto que os seus meios são ao mesmo tempo o seu fim” (Debord, 2006: 769). É o caso particular da publicidade que não se limita a fazer funcionar o mercado, mas é um fim em si mesma. Compreendida como ilusão, não perde a sua eficácia porque – aproximando-se do mito – a sua função é sobretudo social: é um “código moral” que deve ser respeitado por todos, e que define até as ações de afronta ou de recusa (Baudrillard, 2020: 212-213). “A dominação transfigura-se em administração”, diz Marcuse, e o fluxo de imagens espetaculares administra o fluxo de capitais: “O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem” (Debord, 2006: 775)
O fluxo de imagens na era hiperindustrial
Se já em 60 a “socialização de massa começa[va] em casa e interromp[ia] o desenvolvimento da consciência e da tomada da consciência” (Marcuse, 2011:305), os aparatos digitais contemporâneos fazem-nos participar na sociedade de massas até ao limite do nosso tempo acordado, seja de forma ativa ou passiva, colonizando a nossa intimidade – espaço fundamental para qualquer aspiração verdadeiramente democrática, para a individuação e para a não-sujeição à integração social das necessidades reais do indivíduo – até ao limite. A ubiquidade das imagens nas ruas e nas lojas, nas apps e nos browsers que utilizamos mergulha-nos num fluxo de imagens que apela aos nossos desejos e anseios mais elementares. Vivemos num “mundo 24/7 iluminado, sem sombras”, que se torna assim “a derradeira miragem capitalista da pós-história, de um exorcismo do Outro que é motor da mudança histórica” (Crary, 2018: 17).
À semelhança de várias outras inovações do capitalismo, as redes sociais – que representam uma parte significativa da nossa experiência digital – foram anunciadas como ferramentas democráticas que viriam desestabilizar as hierarquias na produção de informação. Não foi preciso muito tempo para se confirmar que reproduziam as relações sociais estabelecidas. A segmentação, e até polarização, da sociedade e comunidade em bolhas que trocam mensagens opostas faz parte do projeto do pensamento hiperindustrial – um pensamento que é unidimensional. “A realidade do pluralismo torna-se ideológica, ilusória. Tende a aumentar, em vez de reduzir, a manipulação e a coordenação, a promover, em vez de neutralizar, uma integração inevitável” no pensamento unidimensional em que o positivismo absorve todas as formas de crítica à sociedade estabelecida (Marcuse, 2011: 81). Sob o espetáculo do pluralismo, as manifestações concretas de liberdade, democracia e felicidade perdem o seu inalcançável horizonte universal para significarem apenas a sua manifestação concreta presente.
Apesar da diversidade de imagens e informação que circulam no digital, o fluxo tem um sentido e uma dimensão, absorvendo toda a dissensão num “condicionamento estético” que funcionaliza a “dimensão afetiva e estética do indivíduo para fazer dele um consumidor” (Stiegler, 2018: 19-21). É um fluxo de imagens capaz de “controlar os tempos de consciência e de inconsciente dos corpos e das almas que os habitam, ao modular através do controlo dos fluxos esses tempos de consciência e de vida” (Stiegler, 2018: 19) A industrialização da nossa capacidade de construir símbolos em comum – a que Stiegler chama individuação coletiva – resulta numa redução da participação e da experiência. O monopólio dos meios de distribuição constrói algoritmos que respondem a objetivos precisos de produtividade e inflamabilidade social para aumentar o condicionamento e, por essa via, a visibilidade e o tempo de uso. Esta nova fase representa uma “delegação das capacidades de compreensão para automatismos computacionais”, e as redes de ecrãs são mais “agentes de entropia que elementos de hermenêutica” (Stiegler, 2018: 174-176) tornando ainda mais evidente a forma como a visibilidade das imagens depende da sua pulsão erótica – a sua capacidade de despertar reações (gostos, partilhas, visualizações) em quem as vê.
As imagens são arregimentadas para formarem um fluxo libidinal que nos condiciona, domina e isola – integrando-nos completamente na sociedade dada – estimulando o nosso narcisismo mais primário (não esqueçamos que o pai do marketing, Bernays, era sobrinho de Freud). O fluxo é criado por um monopólio de técnicas que respondem perante o capital e são movidas pelo seu funcionamento. E, por sua vez, o fluxo de imagens transforma os nossos fluxos de consciência e de tempo.
O nascimento e a reificação da arte
Na sociedade hiperindustrial as formas de dissensão e crítica são absorvidas pela positividade do que existe. A arte tem um potencial crítico de transformação do presente: pelo facto de a dimensão estética conservar a negatividade expurgada de grande parte das dimensões sociais (Marcuse, 2011: 87-118), na possibilidade da experiência estética (em contraponto com o condicionamento) de “descobrir a alteridade do sentir, o seu devir portador de futuro” (Stiegler, 2018: 21) e pelo seu carácter dissentâneo que opera uma subjetivação política que alarga “a tipografia do possível” (Rancière, 2010: 73).
Contudo, a arte não é imune ao fluxo de imagens: as imagens artísticas circulam pelas mesmas redes, misturadas com imagens de guerra e fome, espetáculo e publicidade. E a afeção que o fluxo provoca em nós não se limita aos momentos em que estamos em rede. A afetação da nossa envolvência deixa-nos como debaixo de um feitiço digital – a forma como experimentamos o mundo imediato sofre a mediação do fluxo. Além disso, a arte que se faz nos dias de hoje existe dentro de um mercado que hiperboliza a especulação e está perfeitamente sintonizada com o fluxo de capital. Este é o ponto focal da crítica de autores como Yves Michaud e Sanguinetti. Apesar da relevância dessa crítica, parte assenta em dois equívocos: tomam a parte visível do sistema de arte contemporânea pelo todo (a precariedade e a indigência são dominantes, o sistema da arte contemporânea é menos “excecional” do que nos levam a crer); confundem a arte contemporânea, as suas formas e signos, com o sistema da arte contemporânea e a sua participação no mercado.
Os grandes artistas do passado que Sanguinetti (2022) louva estavam tão comprometidos com outros tipos de função social ou produtiva como a arte contemporânea está hoje. John Berger (1972) descreveu como as obras de arte europeias serviam o propósito de documentar e reproduzir as riquezas, as obras de generosidade e – no caso das pinturas de género – as virtudes de quem as compra, e a estabilização da paz social em que os pobres são felizes e os mais ricos fonte de esperança para o mundo. A autonomia da arte e a revolução estética são inseparáveis da emergência da burguesia: esta nova e numerosa classe, na afirmação do seu poder moral, garantia aos artistas uma relação de subsistência diferente do mecenato que lhes dava mais liberdade, o que caracterizou um acentuar da dimensão crítica da arte (Rosler, 2010). E, contudo, não se pode dizer que a arte de Velázquez e Goya fosse menor por ter sido criada num contexto de mecenato: para Malevich (1964: 93), a “supremacia do sentir puro” existia para lá das representações, que eram um obstáculo para a experiência estética.
A reificação – seja económica, política, religiosa ou social – reduz a arte e dá-lhe a sua condição histórica. Ainda assim, a forma estética pode conservar a sua dimensão crítica, a sua “força subversiva” que o pensamento unidimensional tende a domesticar e reificar (Marcuse, 2011: 93). Uma “transformação radical deve ter as suas raízes na subjetividade dos indivíduos”, baseando-se sobre a radicalidade da tensão entre a denúncia “da realidade estabelecida” e a evocação de um mundo diferente (Marcuse, 1979: 18-20). A arte desafia o “monopólio da realidade estabelecida” para “definir o que é real”, produzindo assim a “emancipação da sensibilidade” num mundo de indivíduos alienados, comunicando pela alteridade “verdades que não são comunicáveis em nenhuma língua” (Marcuse, 1979: 23). Não é nas suas representações ou no seu discurso interno, mas na sua dimensão estética, nas formas que propõe, no agenciamento da matéria para revelar o universal no concreto, que circula o seu carácter político. Marcuse acredita que toda a obra de arte “digna desse nome será revolucionária”, não por ter a potência de transformar o mundo, mas porque “subverte a perceção e a compreensão do mundo” (Marcuse, 1979: 11).
Afetada pela reificação, toda a arte (“digna desse nome”) conserva o seu gesto inaugural: para Bataille (2015), a arte surgiu como oposição ao trabalho. Por força da necessidade, as primeiras sociedades humanas depararam-se com as contradições e interditos produzidos pela sociedade do trabalho. A arte seria assim uma despesa fundamental que põe em causa a acumulação – que, como apontou Benjamin, leva em última instância à mobilização geral da guerra – para criar uma esfera íntima em que se experienciam as transgressões dos interditos (a inevitabilidade da morte, as pulsões do desejo, o medo da improdutividade) numa experiência estética. Por outras palavras, segundo esta perspetiva, a arte surge como reação negativa à positividade do trabalho.
Suspender o fluxo
Na contemporaneidade, a arte vive presa entre a pulsão do seu gesto fundador e a reificação da sua função social e de mercado. Num contexto em que o condicionamento estético invade todos os domínios e todos os nossos tempos de atenção, a experiência da dimensão estética da obra de arte é limitada na sua potência pela apatia que o excesso de imagens causa.
O maior risco que a arte corre – e esta é a crítica mais pertinente de Sanguinetti (2022) – é o de ser absorvida como inoculação que protege o sistema contra os perigos da dissensão. Conhecemos a forma como a publicidade assimilou as técnicas de montagem das vanguardas europeias e até como Debord foi homenageado por uma Ministra da Cultura francesa como o maior intelectual do século XX. O risco é real. O trabalho dos artistas é garantir que as formas que produzem – e que não são redutíveis à sua capacidade de re-presentar problemas políticos – ultrapassem as suas representações, garantindo assim um grau de virulência que nem o condicionamento estético possa conter. Uma virulência parasitária – Malevich acreditava que as formas estéticas eram infeciosas (Groys, 2009) – capaz de produzir uma re-subjetivação do desejo a partir de um sensível (emancipado e emancipatório) que é partilhado. E se conseguirmos ter experiências estéticas e ver imagens, podemos, talvez, constituir uma nova comunidade de um sentir.
Esta potência cumpre-se na suspensão do fluxo unidimensional e unidirecional de imagens, no potencial afundamento estético numa imagem. Para tal, a prática artística deve recuperar formas que libertem as imagens do condicionamento a que estão sujeitas, já que “a imagem é a dialética em estado de suspensão” (Benjamin apud Guerreiro, 2000:100) e que, por isso, pode operar uma interrupção marcada pelo regresso da negatividade crítica ao pensamento. Face a projetos que situam a arte como ferramenta de transformação do mundo (e pensamos nos saudosistas das vanguardas e na lição amarga do Futurismo), somos mais cautelosos: a arte é impotente, e a sua impotência pode ser radical. A forma concreta que é proposta emerge da contingência infinita e caótica de formas e, ao fazê-lo, a arte deixa-nos ver a fenda entre o que existe e o que poderia existir. É apenas um instante, o fluxo continua a fluir, mas nesse instante em que se redescobre a negatividade, outro mundo torna-se pensável. O desafio está em propor formas que resistam à absorção e à normalização unidimensional, à sua reificação e circulação no meio das outras imagens. E esse é o desafio silencioso de todos os artistas.
Referências bibliográficas
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Groys, B. (2009) Education by Infection. In Madoff, S.H. (eds.). Art Schools (Propositions for the 21st Century). Cambridge, MA: MIT Press. pp. 25-36.
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Stiegler, B. (2018). Da Miséria Simbólica: I. A Era hiperindustrial (trad. L. Lima). Lisboa: Orfeu Negro. Originalmente publicado em 2004.
Stiegler, B. (2018). The neganthropocene (trad. ed. D. Ross). Londres: Open Humanities Press.
O autor é bolseiro de doutoramento (UI/BD/151010/2021) no Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes da Universidade Católica Portuguesa, com uma bolsa financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e o Fundo Social Europeu (FSE).