Metáfora como “o transporte a uma coisa de um nome que designa um outro”.
Aristóteles, Poética
A 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde. Uma semana depois, Portugal entra em estado de emergência por decreto e discurso do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. O primeiro de um conjunto de acontecimentos discursivos (o primeiro e o segundo estado de emergência, ambos com duas renovações cada) até dezembro de 2020 que configura o tempo e o modo da comunicação oficial do poder presidencial sobre a doença.
No presente texto, através da análise de conteúdo destes discursos, mapeamos uma série de premissas básicas na construção destes discursos, relacionadas com o uso das emoções, especificamente do medo como recurso persuasivo, através de metáforas militares e religiosas. A militarização da linguagem parte do Palácio do Eliseu pela declaração do presidente francês – «“Nous sommes en guerre”: le verbatim du discours d’Emmanuel Macron», a 16 de março, antes de chegar ao Palácio de Belém. A partir desta retórica da emergência e da guerra (Meyers, 2008), o presidente português constrói os alicerces comunicacionais e políticos da sua primeira intervenção – «Esta é uma guerra! Quanto mais depressa formos mais depressa salvamos vidas»–, numa estratégia discursiva que toma o controlo da palavra, pelo léxico depreciativo na metaforização e pela repetição de vocábulos bélicos e sagrados. Ao longo do período aqui analisado, essa estratégia é recorrente, em que «um discurso de medo pode ser definido como a comunicação generalizada, a consciência simbólica e a expectativa de que o perigo e o risco são uma característica central do ambiente efetivo, ou o ambiente físico e simbólico como as pessoas definem e experimentam na vida quotidiana» (Pfuhl, Erdwin &. Henry, 1993, p. 53), durante o intervalo pandémico de 2020.
A marcha do medo
As metáforas sobre a COVID-19, geradas num processo dialógico entre autoridades sanitárias e políticas, definiram-na pela sua invisibilidade inimiga resultando numa epidemia discursiva. Como Lakoff e Johnson (1980) demonstraram, os usos metafóricos podem descrever-nos o mundo de maneiras particulares, de modo que passamos a entender o mundo dessa maneira. Um entendimento onde
a mais grosseira das metáforas continua a subsistir no campo da saúde pública, onde a doença é regularmente descrita como invasora da sociedade, e os esforços para diminuir a mortalidade de determinada doença são apresentados como uma luta, uma batalha, uma guerra (Sontag, 2009, p. 105).
Gilman (2021) propõe que talvez tal se deva a uma progressiva confusão entre legitimidade científica e legitimidade política que politiza a ciência e cientifica a política, convertendo o hipotético em certeza e transformando escolhas políticas em decisões técnicas.
Como Susan Sontag (2009) já nos explicara, a propósito da tuberculose, do cancro e da sida, a metáfora da peste é um veículo essencial para as leituras mais pessimistas das prospetivas epidemiológicas. Desde a ficção clássica até ao jornalismo mais recente, o relato padrão da peste é o da inexorabilidade, da inevitabilidade. Quem não está preparado é apanhado de surpresa; quem observa as precauções recomendadas também não escapa (p. 147).
Assistimos a um processo de domesticação social e normalização que, segundo Foucault (1975), é designado por poder disciplinar, ou seja, um conjunto de táticas para exercer o controlo social máximo com o uso mínimo da força, e a salvaguarda desse processo, desde logo no primeiro discurso –«Esta base de Direito dá um quadro geral de intervenção e garante que, mais tarde, acabada a crise, não venha a ser questionado o fundamento jurídico das medidas já tomadas e a tomar».
Mais comentado do que depurado, encontramos, no mapa do discurso presidencial sobre a pandemia, como as palavras quotidianas, organizadas e estruturadas de maneiras particulares, podem tornar-se politicamente implicadas no direcionamento do pensamento sobre questões específicas, e com efeitos reais e devastadores (Wilson, 2001, p. 408) portanto, o comentário «transforma o aleatório do que foi dito – aquilo que surge a partir do discurso e que não havia sido previsto ou pensado antecipadamente – em parte constituinte do próprio discurso. Assim, sempre há a oportunidade de retomar o que foi falado, escrito, gravado, filmado, retratado» (Foucault, 1971).
Replicados em loop mediático ao longo do ano, estes discursos, como mecanismos de enunciação, contêm procedimentos internos tendentes ao controlo e, sobretudo, princípios de classificação, de ordenação, de distribuição, como se tratasse, dessa vez, de submeter outra dimensão do discurso: «a do acontecimento e do acaso» (Foucault, 1971) onde «uma perspetiva de medo está implícita num discurso de medo. Quando o medo é usado dessa maneira, torna-se uma questão de discurso» (van Dijk, 1988).
O que, no caso nacional, partiu de uma conceptualização demasiado especulativa do comportamento dos portugueses na construção do discurso político, e em que o papel e a estrutura da linguagem foram centrais na manipulação para a construção da mensagem política e do efeito político (Wilson, 2001).
Diante da angústia identitária contra a asfixia generalizada do terror que vem pelo ar (Sloterdjik, 2002), é-nos servido um discurso, ainda que revestido do tom dócil e afetivo do ator político, que prega disciplina e autoridade – «Nesta guerra, como em todas as guerras, só há um efetivo inimigo, invisível, insidioso e, por isso, perigoso. Que tem vários nomes. Desânimo. Cansaço. Fadiga do tempo que nunca mais chega ao fim. Temos de lutar, todos os dias, contra ele.»
A fertilização do medo (Altheide & Michalowski, 1999) começa aqui, ensaiando a aquiescência cívica na abertura de uma nova agenda política que precisa do medo dos cidadãos para se fazerem necessários os políticos e cuja aparente necessidade possibilita ações incontestadas (Meyers, 2008) – «Não é uma interrupção da Democracia. É a Democracia a tentar impedir uma interrupção irreparável na vida das pessoas» e onde, cidadãos temerosos concedem, humildemente, os seus poderes.
Ainda que suavizadas pelo carisma mediático do nosso protagonista nacional, «as ideologias políticas autoritárias têm um manifesto interesse em promover o medo, um sentimento de iminência da tomada do poder por elementos estranhos – e para tal as doenças reais constituem um material muito útil» (Sontag, 2009, p. 156).
Esta produção discursiva do medo continua com a renovação do estado de emergência «porque nos ultrapassa na sua origem e no seu fim. É universal e o adversário é insidioso e imprevisível». A sobrevivência da nação, da sociedade civilizada, do próprio mundo estaria em jogo, ao que nos dizem – discurso que constitui um elemento bem conhecido da exigência de repressão (Sontag, 2009, p. 180) e onde «o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que queremos nos apoderar»(Foucault 1971, p. 10) – «daí as medidas extraordinárias do Governo, medidas a que o estado de emergência dá força acrescida (…)».
No entanto, quando o medo é a estrutura dominante para olhar para as questões sociais, outras estruturas e discursos perdem (Wilson, 2001) e enquanto essa dinâmica existir, «a esfera política autêntica é eclipsada, enquanto os cidadãos cederem ao medo manipulado, ignorando as ações realizadas em seu nome e corrompendo a cidadania» (Meyers, 2008).
A marcha do milagre
Apresentando-se de forma sedutora e atrativa, «o discurso posicionou-se, quase inquestionável, ao articular afetos e ciência» (Foucault, 1971) e, depois da metáfora militar, entra em cena a metáfora religiosa – «Se isto é um milagre, como os outros lá fora dizem, então nós, povo português, somos um milagre vivo há quase nove séculos. Se isto é um milagre, o milagre chama-se Portugal». A metaforização militar da doença que suporta o discurso do medo transita, também no discurso insistente dos media, para a religião.
É como se a necessidade religiosa, que a Igreja já não está em condições de satisfazer, procurasse às escuras um outro lugar de consistência e o encontrasse naquilo que é, de facto, a religião do nosso tempo: a ciência (Agamben, 2020). Mas, a voz política não abandonou todas as outras confissões religiosas, que «desde março, têm dado um exemplo de serviço à comunidade, mesmo quando se trata de datas fundamentais para as suas convicções, para as suas tradições», num propósito ecuménico de poder.
Ao mesmo tempo, ensaia ainda arregimentar um espírito guerreiro de unidade nacional – «E os Portugueses, com a experiência de quem já viveu tudo numa História de quase nove séculos, disciplinaram-se, entenderam que o combate era muito duro e muito longo e foram e têm sido exemplares», alimentando o sentimento de lutar contra o inimigo que faz parte da tática de quem manipula com o medo e, apelando à mobilização das massas, anseia pelo controlo das mesmas. No caso português, a exortação atingiu uma entoação épica – «Vamos fazer o que sempre fizemos em quase nove séculos de História. Aguentar pestes, combater guerras, perder e recuperar independências».
Contra a retórica barroca do «discurso do medo» e a favor da depuração nas opções linguísticas para representar o mundo, recorremos a Altheide & Michalowski (1999),
Mas o perigo não produz um ambiente partilhado de medo; podemos lidar com o perigo, podemos ser educados sobre ele, tomar medidas para evitá-lo ou minimizar seu impacto. O perigo não é enigmático. O medo é. O perigo não define um encadeamento cada vez maior de diretos, notícias e reportagens. O medo sim. O perigo pode ser tratado com um evento de cada vez. O medo não pode. Somente identificando e discutindo as características processuais do medo como um significado comunicado podemos obter uma perspetiva sobre a vida contemporânea (p. 501).
O que abre novas discussões políticas é onde nos levou esta perspetiva sobre a interrupção que a nossa vida sofreu. E onde, agora, nos encontramos.
Notas finais
Da comunicação presidencial, saturada e emocional, o que fica claro nestes excertos, e muitos outros dos seis discursos, é que os campos semânticos da doença e da saúde são evocados na tentativa de produzir imagens políticas relevantes. Quase a atingir a exaustão, as seguintes metáforas foram utilizadas, intensivamente, ao longo de pouco mais de sete mil palavras: guerra (9), combate (15), luta (5), batalha (2) e milagre (10). Empregues fora do contexto, ou seja, «neste caso, metaforicamente, tornaram praticamente impossível fixarmos residência no reino da doença incontaminados pelas sinistras metáforas que lhe desenharam a paisagem» (Sontag, 2009), esboçaram a paranoia securitária e alienaram, com ou sem voto, opções eleitorais recentes e compromissos políticos futuros. Reconhecendo os nossos próprios interesses, mais claramente, enquanto cidadãos numa democracia, parafraseando Platão, o medo em si não é o problema, mas sim o medo das coisas erradas.
A propósito da metaforização duma pandemia enquanto recurso discursivo para fins políticos, já Susan Sontag, noutro contexto (a sida nos anos de Reagan), nos alertara para a ameaça da metáfora,
A que eu mais gostaria de ver banida – mais do que nunca desde o aparecimento da sida – é a metáfora militar. A sua transposição, o modelo médico do “interesse público”, é provavelmente mais perigosa e de maior alcance nas suas consequências, pois não só fornece uma justificação convincente para o poder autoritário, como implicitamente sugere a necessidade de uma repressão e violência por parte do Estado (o equivalente da extração cirúrgica ou do controlo químico das partes transgressoras ou “malsãs” do corpo político)” (pp. 187-188).
Para um regresso à vida pré-pandemia, à discussão pública e a uma resistência concertada às estratégias de poder existentes, podemos começar por pequenos passos como o afastamento da metaforização do discurso e «o questionamento de como é que foi feita esta escolha da verdade e também como é que ela foi repetida, reconduzida, deslocada» (Foucault, 1971). No fundo, o medo pode-nos sussurrar ao ouvido, mas não nos pode carregar às costas.
Referências
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Altheide, D. L. & Michalowski, R. S. (1999), «Fear in the News: A Discourse of Control», The Sociological Quarterly, 40:3, 475-503, DOI: 10.1111/j.1533-8525.1999.tb01730.x
Aristóteles (2003, 7.ª Edição). Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.
van Dijk, T. A. (1988), News as Discourse. Hillsdale, NJ, Lawrence Erlbaum.
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Foucault, M. (1975), Vigiar e Punir, Coleção Biblioteca de Teoria Política, Lisboa, Edições 70, Reimpressão 2018.
Gilman, R. (2021), «Lockdown, o ovo da serpente das sociedades de controlo» in Revista Punkto, Edição 31, 30 de Março de 2021, Lisboa. Disponível em: revistapunkto.com/2021/03/lockdown-o-ovo-da-serpente-das.html
«Nous sommes en guerre»: le verbatim du discours d’Emmanuel Macron (2020, 16 de março). Le Monde. Disponível em: lemonde.fr/politique/article/2020/03/16/nous-sommes-en-guerre-retrouvez-le-discours-de-macron-pour-lutter-contre-le-coronavirus_6033314_823448.html
Lakoff, G. and Johnson, M. (1980), Metaphors We Live By. Chicago: University of Chicago Press.
Meyers, P. A. (2008), Civic war and the corruption of the citizen, University of Chicago Press, Chicago.
Pfuhl, E. H., & Stuart, H. (1993), The Deviance Process. Hawthorne, NY: Aldine de Gruyter.
Platão (2017, 15.ª Edição), A República, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Sá, P. (2020, 18 de Março), «Marcelo. “Esta é uma guerra! Quanto mais depressa formos mais depressa salvamos”». Diário de Notícias. Disponível em: dn.pt/poder/marcelo-esta-e-uma-guerra-quanto-mais-depressa-formos-mais-depressa-salvamos-vidas-11951098.html
Sloterdijk, P. (2002), Terror from the air, Tradução de Amy Patton and Steve Corcoran, Semiotext(e), The MIT Press, Cambridge, Massachussets.
Sontag, S. (2009), A Doença como Metáfora e A Sida e as Suas Metáforas. Tradução de José Lima de Illness as Metaphor (1977/8) and AIDS and its Metaphors (1988/9). Lisboa: Quetzal Editores.
Wilson, J. (2001), «Political Discourse». In Schiffrin, Deborah, Tannen, Deborah & Hamilton, Heidi. (Eds.). The Handbook of Discourse Analysis. Oxford: Blackwell, pp. 398-415.
Comunicações do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa.
A – Mensagem do Presidente da República ao País sobre a declaração do estado de emergência, 18 de março de 2020 – presidencia.pt/?idc=22&idi=176060.
B – Mensagem do Presidente da República ao País sobre a renovação do estado de emergência, 2 de abril de 2020 – presidencia.pt/?idc=22&idi=176304
C – Mensagem do Presidente da República ao País sobre a segunda renovação do estado de emergência, 16 de abril de 2020 – presidencia.pt/?idc=22&idi=176632
D – Mensagem do Presidente da República ao País sobre a declaração do segundo estado de emergência, 6 de novembro de 2020 – presidencia.pt/?idc=22&idi=180536
E – Mensagem do Presidente da República ao País sobre a renovação do segundo estado de emergência, 20 de novembro de 2020 – presidencia.pt/?idc=22&idi=180721
F – Mensagem do Presidente da República ao País sobre a segunda renovação do segundo estado de emergência, 4 de dezembro de 2020 – presidencia.pt/?idc=22&idi=181017