Bashô é um dos mais célebres poetas de Haikai, tendo influenciado grandes nomes da poesia mundial e brasileira, tais como Paulo Leminski, Ezra Pound e Maiakovski – sendo inclusive um poeta citado na teoria da montagem cinematográfica de Eisenstein. A partir de uma coleta de material de arquivo iniciada em 2016, feito único e exclusivamente com imagens de câmeras de vigilância online e sites de geolocalização (como Google Maps, Street View e Insecam.org), re-enceno virtualmente, em uma espécie de híbrido entre documentário e ficção (ou falsa-ficção), a viagem de Bashô registrada em seu livro Sendas de Oku – um diário de viagem, escrito no séc. XVI. Nele Bashô narra sua viagem a pé de mais de 2000 km pelos cantos remotos do Japão.
O filme busca investigar, em primeiro lugar, se seria possível traduzir ou agenciar uma experiência semelhante à dos haikais, que alia paradoxalmente duas percepções do tempo conflitantes: a brevidade e a contemplação. São imagens que emergem em relampejo, e ainda assim são capazes de expressar a eternidade em um estado de impermanência, noção central que fundamenta a filosofia zen-budista, da qual Bashô era seguidor. A proposta seria promover um choque entre diferentes percepções de tempo e de ideias de “ocidente” e “oriente”, representando um “Japão” que habita muito mais o nosso imaginário do que propriamente o mundo “real”.
Em segundo lugar, a premissa do filme é pensar sobre a nossa relação com a imagem no contemporâneo, cuja ubiquidade de ecrãs dos mais diversos tamanhos tem se tornado uma experiência dominante. Crio, a partir dos recursos da montagem, um filme que se interroga sobre o seu próprio dispositivo e emula – por meio do clique de hiperlinks – o gesto de viajar, caminhando pelas imagens como um peregrina que trilha seu destino de forma errante, uma deambulação análoga ao ato de “navegar”, no qual somos deixados à deriva ao sabor das ondas das redes.
Assim, a partir do cruzamento de elementos como a fantasmagoria e o realismo, investigo a premissa da indexicalidade da imagem. Me interessava também saber se uma imagem pixelada poderia agenciar um sentimento sublime diante da natureza, mesmo através de uma imagem “pobre”, a princípio sem uma “qualificação estética”. Por último, busquei promover uma desconstrução da separação entre o orgânico e o técnico, onde a experiência com a paisagem, os animais e as plantas poderia ser experimentada esteticamente, via câmeras na internet, em uma contracorrente que separa ontologicamente humanos e máquinas.
Como resposta à situação distópica da COVID-19, em meio a notícias de recrudescimento histórico, obscurantismo, negacionismo, fake news (outra onda virulenta), e pulsão de morte dos governantes brasileiros, busquei fugir da peste mesmo que dentro dela, organizando encontros entre-tempos, aumentando a potência de agir das imagens, multiplicando os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação criativa.
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