Por intermédio da notação musical, os músicos convivem desde há muito com os processos de transferência do conceptual ao simbólico e deste ao fenoménico. A música concreta introduziu o objecto fonográfico enquanto suporte para um novo tipo de escrita musical, intimamente associado às suas características materiais e técnicas, levando ao desenvolvimento de processos de criação e de recepção que lhe são especificamente destinados. Ao teorizar de maneira colossal esta nova prática, Pierre Schaeffer entra em confronto directo e irremediável com o cânone musical secularmente estabelecido na cultura ocidental europeia. Na segunda metade da década de 1970, Schaeffer compõe Le Trièdre Fertile, cujo material sonoro (desenvolvido em colaboração com Bernard Dürr) é, na sua totalidade, de origem sintética. O que podemos aí escutar resulta da intenção de construir uma fixação sonora enquanto representação de processos de geração tecnológica dinâmica.
Com o desenvolvimento das tecnologias computacionais, este tipo de processos foi-se tornando cada vez mais fluente, de acesso generalizado e partilhado pelas comunidades web entretanto constituídas. Num artigo publicado em 2002, James McCartney, o criador da linguagem de programação SuperCollider, apresenta-a como permitindo: “realizar processos sonoros que são diferentes a cada vez que são executados e escrever peças de forma a definirem âmbitos de possibilidades em vez de uma entidade fixa” (McCartney, 2002, p. 61). O repositório de código SuperCollider – http://sccode.org/ – é um sítio dedicado ao som e à música, embora totalmente silencioso, no qual nada se passa para além da leitura como elemento mediador da imaginação sónica, momento seminal do processo de corporização do fenómeno.
Ao permitir a reescrita de código no decurso da sua execução, a programação interactiva atribui uma permanente abertura do texto musical, fazendo implicar a escuta como o factor crítico do próprio processo de escrita. Ou seja, a escuta, eixo operativo do concretismo musical – Schaeffer sugeria “trabalha o teu ouvido como sendo o teu instrumento” (Chion, 1983, p. 12) – assume neste caso uma posição central na mediação entre descrição e fenómeno.
Aos sons gerados por um algoritmo podemos denominar de formas. Assim, a noção de objecto sonoro compreende aqui, necessariamente, a unificação da dimensão concreta do som, ou seja, de uma forma, com a sua descrição abstracta, isto é, do que podemos chamar de objecto per-formativo. Todo o objecto performativo dá lugar a manifestações concretas que não são mais do que instâncias morfológicas singulares – actualizações – da estrutura abstracta que as descreve como possíveis. Os objectos performativos descrevem por isso possibilidades para a caracterização qualitativa das formas sonoras que darão a escutar sendo, por isso, literalmente objectos para-formativos.
Recorrendo à terminologia de asserção cosmológica desenvolvida por Harman na sua “filosofia orientada-aos-objectos” (Harman, 2011), um objecto sonoro compreende uma dimensão sensual (evidenciada pela percepção de qualidades como timbre, intensidade, textura, etc.) que nos remete para a sua dimensão real, isto é, para tudo aquilo que esteja ausente de uma relação directa com um perceptor (elementos como a descrição das suas propriedades físicas ou os cálculos matemáticos que as representam, entre outros). É esta permanente tensão entre uma dimensão real e uma dimensão sensual que atribui à escuta o papel de factor decisivo de mediação deste processo compositivo. A escuta é, por isso, o elemento mediador entre os domínios abstracto e concreto. Neste sentido, o compositor é também um ouvinte, uma vez que a ambiguidade e a incerteza vividas nas situações de performação são “elementos centrais da percepção, acção e música” (Rohrhuber & de Campo, 2004, p. 6).
Mas outro elemento a considerar como parte integrante do processo performático-compositivo é o que podemos chamar de objecto de representação. No processo de construção de um destes objectos e citando uma ideia do compositor Michael Pisaro: “a linha que separa o que é espontaneamente gerado e o que é composto (ou montado) no estúdio é esbatida” (Pisaro, 2009). Há aqui a intenção não de tomar o material gerado como matéria-prima para futura elaboração, mas sim de representar as suas características naturais. De que maneira poderá então, neste momento de fixação, a generatividade computacional estar representada? Não como escuta de um objecto constituído como documentação de um evento mas sim, ao invés, como escuta de um evento em si mesmo, pensado para solicitar a participação do ouvinte, idealmente sugerindo uma hermenêutica que lance luz sobre o código formal que lhe está subjacente. A situação em que se dá a performação coincide já, de facto, com a prática da composição, mas o autor estende esse momento para lá desse espaço-tempo, desenvolvendo-o ulteriormente enquanto representação construída, para lá de uma mera documentação. Nesta descrição, o fotógrafo Jeff Wall alude ao que acabámos de enunciar:
In many of my pictures where you have the feeling that something’s happening you are in fact witnessing the results of a performance. My view is that is more interesting to look at the picture as a representation than to look at the event as an event. A journalist is interested in conveying the event to the viewer/reader. The artist is interested in conveying the representation of the event to the viewer. in http://youtu.be/VICeeNL3lPQ?t=4m44s (dead link!)
Cada performação é um take, um momento de tournage que enuncia possibilidades de representação.
Torna-se então possível identificar dois processos de escrita: a descrição do objecto performativo e a escrita da(s) forma(s) que o representa(m). Como evidencia Curtis Roads (Roads, 2001) as possibilidades de micro-composição sonora proporcionadas pela tecnologia digital actual fizeram evoluir as técnicas de escansão temporal para um nível de detalhe sem precedentes. Esta característica, associada a refinamentos de igual ordem ao nível da transformação tímbrica, com múltiplos cruzamentos processuais, dão lugar a uma literacia já não directamente ligada ao código de programação, mas a um conjunto de outras técnicas igualmente específicas da materialidade digital. O que parece por isso estar aqui em questão é a dimensão energética de um processo que exige a cura simultânea de dois movimentos de escrita, de fixação. Enquanto processo de formalização, o código deverá necessariamente ser o mais claro e objectivo possível. Por outro lado, os detalhes trabalhados na inscrição material do objecto de representação exigem igualmente uma construção aturada e atenta.
Beuys definia os objectos que produzia como souvenirs da sua actividade. Veja-se também o caso de Vera Molnar que continua ainda hoje, desde finais da década de 1940, um percurso de expressão visual guiado por esta energia que dirige teleologicamente o processual algorítmico para diferentes hipóteses de materialização física: http://www.veramolnar.com/. A notificação “O Adobe Flash Player já não é suportado” aqui eventualmente recebida é, sem dúvida, desagradável mas também algo irrelevante.
A identificação analítica dos diferentes estados do processo de composição do objecto (sonoro ou não) computacional – o texto algorítmico, a experiência perceptiva das formas geradas e a sua fixação como representação – enuncia, num sentido mais lato, um propósito de abertura a uma materialidade indeterminada. Tendo como raiz estruturante uma actualização das noções de escrita (e, portanto, leitura), os processos expressivos de mediação digital permitem estabelecer relações de trânsito contínuo e/ou corte entre a descrição algorítmica e os desígnios muitas vezes circunstanciais da sua materialização. O objecto informático, tecnocientífico, exige clareza máxima. O objecto artístico reclama mistério, obscuridade. “O trabalho do artista é sempre o de aprofundar o mistério”, sugeriu o pintor Francis Bacon (Bacon, 1964, citado por Cass, 1988, p. 23).
Bibliografia:
Cass, C. (1988). Grand Illusions: Contemporary Interior Murals. New York: Watson-Guptill Publications.
Chion, M. (1983). Guide des Objets Sonores: Pierre Schaeffer et la Recherche Musicale. Paris: Ed. Buchet/Chastel & INA/GRM.
McCartney, J. (2002). Rethinking the Computer Music Language: SuperCollider. Computer Music Journal, (Vol.26.4, pp. 61-68). The MIT Press.
Pisaro, M. (2009, setembro 09). Wandelweiser. Erstwords Blog. http://erstwords.blogspot.pt/2009/09/wandelweiser.html (acessado a 15/04/2021).
Roads, C. (2001). Microsound. Cambridge, Mass.: The MIT Press.
Rohrhuber, J., & de Campo, A. (2004). Waiting and Uncertainty in Computer Music Networks. Paper presented at the International Computer Music Conference, Miami.