O Fragmento como Fratura

I

A questão do fragmento e da pertinência filosófica das reflexões que ele suscita, rica ao nível do recheio, declina-se de modos e com matizes variados. Efetivamente, existem fragmentos filosóficos e fragmentos não filosóficos? Haverá uma filosofia dos fragmentos em si na medida em que são existência; ou, melhor dizendo, per-sistência, da materialidade do ser no decurso do tempo? Qual a relação entre o fragmento e a filosofia? As questões do conteúdo (de julgar, de avaliar a presença ou a ausência de conteúdo filosófico) não são desimportantes. A hermenêutica do fragmento, justamente, é uma importante tarefa que cabe a cada individualidade pensante. O nosso ensaio abordará o fragmento atendendo a uma categoria distinta que, muitas vezes, é olvidada. Olharemos para o fragmento como uma fratura de uma parte que pertence a uma totalidade, fratura essa que pode, ou não, ser voluntária. O fragmento, tal como nos foi legado desde a antiguidade, constitui não mais do que uma parte de um todo que, de alguma maneira, subsistiu. Por outro lado, a modernidade romântica serve-se do recurso ao fragmento. Qual o sentido profundo deste recurso ao fragmento? Ele constitui uma fratura voluntária. Fratura-se um tema, expondo, numa questão de poucas linhas, o essencial para a reflexão. Podemos, por assim dizer, asserir que, perante um grande tema e um encadeamento explanativo, a fratura voluntária do pensamento obedece, sobretudo, à figura da incompletude que convida à hermenêutica, à reflexão, ao pensamento crítico e individual. Por um lado, temos um uso que atende ao conteúdo deixado em suporte de texto, que assim é deixado, na sua forma sucinta, voluntariamente. Por outro lado, temos um suporte de texto fraturado, involuntariamente, que pertencia a um todo maior.

Dentro dos limites pouco generosos das nossas capacidades, iremos abordar, sumariamente, o tema. Servir-nos-emos dos resultados de modo a tentarmos pensar se faz ou não sentido falar de uma filosofia dos fragmentos que tenha por base a sua riqueza dialética e histórica, e não tanto o seu conteúdo.

II

A filosofia, tomada na sua figura antiga e milenar, em virtude de se realizar concretamente em suporte de texto, ou até mesmo, se quisermos, em suporte artístico, enfrentava, sem o saber, o problema da preservação do seu suporte concreto. Ela mesma torna-se uma experiência da temporalidade, temporalidade esta que não se constitui somente pela sucessão de instantes. A experiência da temporalidade é também a experiência da ação, da cultura e das suas tarefas imediatas, da dialeticidade e da materialidade endógena do próprio ser, que a habita e povoa. O suporte concreto, seja artístico, seja de texto, subsiste, persiste, até perecer ou até se fragmentar graças à sua fragilidade.

A historicidade nas suas manifestações históricas, culturais e bélicas; afigura-se, até certa medida, como uma das condicionantes ao nível do acesso aos textos e às obras. Na medida em que se perde o acesso a um texto, seja parcial, seja total, passamos a conhecê-lo de uma de duas maneiras. Ora pela referência do autor, ou de outrem, a dito texto, ora pela preservação, seja de um fragmento original, seja de uma parte do texto reproduzida ou citada por outrem. Em ambos os casos, o acesso a uma totalidade concreta encontra-se interditada.

A temporalidade do ser, a espacialidade como palco de interação e a dialeticidade do real são vetores que não podemos descurar nesta análise da questão do fragmento sob pena de se olvidar o significado rico de fragmento: ele é uma abertura do passado ao presente, ele constitui parte de um passado herdado sobre o qual se edifica a atualidade. O fragmento é uma riqueza cultural do pensamento humano que subsiste, que nos dá a conhecer, na forma de uma das suas figuras concretas, experimentadas no devir do real, um modo distinto de pensar, de habitar e de agir com o qual podemos aprender.

Esta visão histórica do fragmento assume, antes de mais, a questão da fratura. Esta fratura é atinente a um todo concreto do qual, por qualquer motivo, se preservaram apenas algumas das suas partes. As partes preservadas, que subsistem, ainda que sem grande ligação, por vezes, entre si, forçam a uma compreensão do todo a partir das suas partes. Esta parte fraturada, perante a ausência do todo, assume o papel da totalidade conhecida. O todo no qual se insere e ao qual reclama pertença, o todo que a parte anima e ao qual dá inteligibilidade, permanecerá uma totalidade desconhecida. A figura imediata do fragmento, que conserva em si alguma vitalidade, por consequência, converte-se em plataforma de compreensão. Compreender uma teoria, uma ideia, uma visão do mundo, tendo por base fragmentos é uma tarefa hercúlea e, em certa medida, especulativa. Como é que, partindo de uma das partes, consigo saltar para a compreensão de um todo que me é desconhecido? Em que medida é que este fragmento me possibilita a entrada numa unidade? É sequer possível efetuar tamanho salto se desconheço as relações que esse fragmento estabelece com as restantes partes dentro de um todo ordenado? Qual a hierarquia desse fragmento num corpo de saberes? Constitui o ponto de partida ou o ponto de chegada? Em suma, a hermenêutica do fragmento urge e requer uma minúcia incisiva.

O fragmento, que constitui a fratura de uma parte pertencente a um todo, tem pertinência histórica e cultural. Pensamentos e sabenças fragmentados são capazes de suscitar reflexão. Todavia, a riqueza do fragmento não se localiza apenas no seu conteúdo. O próprio fragmento, na sua figura concreta, mediada, tem de ser alvo do nosso pensar filosófico. A materialidade dialética que ele é, o seu per-sistir, a historicidade que ele representa e na qual se insere, urgem, de igual modo, serem pensadas. Sob este prisma, o fragmento enquanto expressão involuntária, arrancada de um todo a que outrora reclamara pertença, merece ser objeto de reflexão não só pelo conteúdo que carrega no seu seio: ele constitui uma abertura do passado e da sua cultura a um presente em edificação. Seja um fragmento do texto de Heraclito, seja um fragmento de uma peça de olaria, ambos merecem converter-se em conteúdo do pensar filosófico.

III

Nem todos os fragmentos, nem os seus usos, correspondem a fraturas involuntárias que arrancam ao todo uma, ou mais, das suas partes. O Romantismo, entre as suas pelejas culturais, entre os seus filosofemas que abarcam desde as ciências até à educação, reabilitou o uso do fragmento, não como expressão involuntária e inelutável da temporalidade deveniente, mas, sim, como ferramenta crítica da ideia de sistema que era sua coetânea. A sua pequena extensão, a sua formulação críptica, as poucas palavras empregues, o fragmento romântico constitui uma ideia fraturada: a sua explicação, o seu desenvolvimento, em suma, o fechamento do seu horizonte de sentido, encontra-se ausente. Em todo o caso, nem todo o pensamento romântico se ergueu sobre esta base do fragmento. Pensemos, por exemplo, no texto de prosa de Novalis, Die Christenheit oder Europa.

Importa, antes de mais, analisar e, de alguma sorte, surpreender o uso do fragmento por parte dos Românticos vendo, antes de mais, qual a sua forma e o porquê do seu recurso. Vejamos, portanto:

“His [Novalis] adoption of the Romantic fragment, a self-conscious and self-contained short prose form (…) to allow maximum flexibility in working out new and developing ideas is ideally suited to his own quicksilver movement between subjects.”, e ainda, “The Romantic fragment, sometimes brief and aphoristic, sometimes extended to several paragraphs, (…).” (Stoljar, 1997, pp. 2-4).

Uma prosa curta, aforística que, dependendo do ensejo, se pode alongar, mas cuja ideia base é a maior flexibilidade entre temas, entre ideias im-perfeitas, ainda em desenvolvimento. Diremos ainda, este fragmento, uma figura isolada, mas não fechada, é valorizado pela desarticulação que oferece entre os temas. Importa ao fragmento romântico, sobretudo, constituir-se como um finito rico de sentido e de significado que convide a uma hermenêutica por parte do leitor que o desdobre.

A fragmentação passa a ser voluntária, passa a ser uma ferramenta de escrita que, numa questão de poucas linhas, permite condensar e encerrar dentro de si um universo que acicata o pensar e que se oferece para ser desbravado. A importância da desarticulação entre fragmentos, além de relevar para uma maior e mais sumária abrangência, obsta contra a ideia de sistema, de um todo concatenado, ligado entre si, articulado, do qual é impossível dissociar ou cindir um pensamento ou uma ideia. No sistema, as partes pensam-se na sua articulação entre si, em teia, em rede. O sistema enquanto totalidade carece desta interligação das suas partes. Justamente por isso, se intentamos extrair de um sistema uma das suas partes (seja um pensamento ou uma ideia), por um lado, o sistema perde o sentido que aquela parte lhe dá, e por outro, a parte extraída perde parte do seu sentido original. Ela é, originalmente, uma peça de um puzzle. As peças do puzzle, por exemplo, só fazem sentido quando pensadas à luz do todo imediato que elas ocupam. Se as tomarmos por si só, sim, podem ser apelativas de um ponto de vista estético, mas qual a razão de terem aquela forma com aqueles recantos salientes e redondos? Na íntima relação que as partes estabelecem entre si, elas aclaram, quer a si mesmas, quer umas às outras, quer o sistema que formam.

Perante o sistema fechado, inerte, que não acicata nem a autorreflexão nem o pensar próprio, o fragmento emerge como um convite à interpretação e ao pensar crítico. O fragmento torna-se interpelativo. Os fragmentos são pequenos mistérios do ser, condensados em poucas linhas, que visam fazer o outro, o leitor, pensar. O mistério do fragmento involuntário que nos leva à especulação (uma parte fraturada de um todo que nos é desconhecido) é aqui aproveitado, inconscientemente, como fragmento voluntário que não oferta uma sabença ou uma resposta imediata. Nas poucas linhas que possui, o fragmento voluntário, romântico, prende o leitor, convida-o a uma reflexão, a uma hermenêutica, ou seja, não lhe apresenta um sistema fechado sobre si mesmo, perfeito, acabado. O fragmento romântico abre, sim, os olhos do leitor para o grande mistério que tem diante de si a cada instante: o mistério da vida.

O fragmento romântico, disperso e sucinto, encerra em si esse infinito vital que é a experiência do mundo, chama a atenção para ele, perfila como uma resposta ao idealismo do sistema, sendo, este mesmo fragmento, uma expressão cultural da materialidade dialética do próprio ser que habitamos.

IV

O carácter voluntário ou involuntário da fratura, de uma parte que é retirada ao todo, é, a nosso ver, fundamental para se compreender a natureza profunda do fragmento. Antes de mais, é uma expressão intelectual ou artística que assume forma concreta. Se, por um lado, podemos olhar para o fragmento atendendo ao seu conteúdo, enquanto algo de voluntário, enquanto um universo de sentido rico, condensado, que espera pelo leitor que o desdobre, analise, e pense sobre ele criticamente, por outro lado, podemos atender ao carácter involuntário do fragmento, enquanto um todo do qual persiste apenas uma, ou mais, das suas partes. Esta fratura involuntária não é premeditada pelo escritor ou pelo artista. Pode, ou não, ter conteúdo filosófico. O fragmento, quer num caso, quer no outro, pode ser vetusto; des-atual, certamente não é.

Em todo o caso, podemos, assim sendo, falar de uma filosofia dos fragmentos que tenha por base a sua riqueza dialética e histórica, e não tanto o seu conteúdo? Acreditamos que sim, é possível. Aprender a olhar para um fragmento, atendendo, não ao seu conteúdo, mas à historicidade, à dialeticidade, que ele encerra no seu seio, é encarar o sentido profundo do fragmento: um espaço de abertura do passado que propicia a aprendizagem e a reflexão crítica quanto ao presente.

Bibliografia

Stoljar, Margaret Mahony. “Introduction” in NOVALIS, Philosophical Writings, Nova Iorque: State University of New York Press, 1997.