Duma leitura cruzada de Platão, Espinoza e Deleuze sobre o conceito de ideia retenha-se o seguinte: 1. Anterior à substanciação (prefiro-a à forma) está a ideia. 2. Uma ideia distingue-se duma outra pela substanciação que dá a experienciar. 3. Anterior à ideia está o pensamento. Este cria a ideia, mas esta não é o seu fac-símile; da ideia substanciada não é possível desvendar retroativa e logicamente o seu pensamento original. 4. A ideia é invenção do pensamento do qual se emancipa; pensamento e ideia só estão juntos por uma afinidade oportunista que mal se explica. 5. Pensamento, ideia, substanciação, eis a tríade definidora de qualquer projeção sobre o mundo.
A arte (visual) e a sua história não fogem à tríade, não tendo recorrido a outra coisa para se legitimar que não sejam substanciações decorrentes de ideias decorrentes de pensamentos. Os atentados à tríade foram inúmeros. Dos quatro sobre os quais vou aqui falar sumariamente, três foram perpetrados por artistas (Marcel Duchamp, Joseph Beuys e Allan Kaprow) e um por um historiador de arte (Jean-Yves Jouannais).
Sobejamente conhecida, a revolução duchampiana assenta em dois vértices — o ready-made e o anartista — pelos quais também fracassa. Isto porque ao impactar sobre o trabalho artístico, transformando-o numa simples escolha de objetos do quotidiano um tanto ou quanto agenciados, Duchamp não o abole totalmente, não prescindindo da autoridade do artista, elegendo o ready-made por entre uma miríade de objetos todos potencialmente elegíveis. Esta passagem ousada da mão que pinta (esculpe, molda, etc.) ao olho que seleciona criteriosamente deve, por isso, ser considerada apenas como uma simples mudança do tipo de trabalho artístico e não como um abalo estrondoso à tríade. E se, como diz Duchamp parafraseando Da Vinci, a arte é coisa mental, a coisa mental que é a ideia duchampiana é também a sua própria substanciação, sendo que o elo entre ambas é a operância: uma ideia é operante enquanto desembocar numa substanciação mesmo que reduzida à própria ideia. O pensamento cria a ideia, a ideia enrola-se substantivamente sobre si, completando a tríade sem nunca a pôr em causa.
A substanciação de cariz beuysiano é a vida. Uma ideia, desde que explorada nas condições devidas, cria vida, amplificando-a. A revolução beuysiana assenta na noção de criatividade, motor duma necessária e desejada redescoberta da natureza espiritual do Homem pós-holocausto, artista inclusive. É ainda necessário distinguir criatividade e estética, sendo que do uso da primeira não decorre um bem cultural mas uma vida bem performada. Não é intenção de Beuys, portanto, definir um novo quadro de referência para a produção artística, antes um novo quadro de vida alicerçada na potência do ser que é a criatividade, partilhada tanto pelo artista como pelo não-artista, distinção que aliás deixa de fazer sentido. A sobreposição da estética em relação à criatividade dependerá da aceitação de determinadas convenções por parte de quem cria, sendo que a arte é o elemento residual de criatividade erguido segundo tais convenções.
A substanciação de cariz kaprowiano é o jogo. O impacto da filosofia pragmatista de Dewey na prática artística de Kaprow traduz-se na importância atribuída por este à leitura do quotidiano pelo prisma da abertura (conceito ecoano) ao que dele escapa ao entendimento. Dessa abertura ao informe da vida nasce uma capacidade em vivê-la que transcende modelos e normas, em prol do imprevisível e do absurdo. O que une Beuys e Kaprow (mais do que o que os separa) não é tanto que a uma dada criatividade exercida ou não corresponde uma vida ganha ou perdida, antes que a uma qualquer vida não estão acopladas convenções e regras sem falhas. As mesmas desvendam um espaço do jogo no seio do qual o Homo ludens faz a aprendizagem da sua vida. A experimentação lúdica de caminhos não trilhados faz emergir um novo significado de vida e de arte, fôlego e propósitos renovados em ambos.
O conceito de «artista sem obra» de Jouannais é a bandeira sob a qual é agrupado um naipe significativo de motivos de retração de gestos artísticos face à obra de arte, ou de renúncia da substanciação face à ideia julgada inoperante por este ou aquele motivo. Essa retração, deixando a ideia orfã de susbtanciação, só não aponta para um espaço vazio se terceiros se encarregarem de o preencher através de relatos orais ou escritos, atestando assim da visibilidade e, por conseguinte, da legitimidade do gesto em falta enquanto gesto artístico por inteiro. Exemplo disso é a longa interrupção na produção artística de Duchamp (preferindo jogar xadrez) poder ser lida não como silêncio improdutivo ou simples tédio, mas enquanto corolário lógico dum gesto artístico magno, cujo fito é a destituição do trabalho enquanto peça-chave do quadro conceptual da arte visual.
Da súmula destes casos saliente-se o seguinte: 1. A susbtanciação é o rasto da ideia rasto do pensamento. 2. A operância é o processo através do qual a ideia quer comunicar, mais que não seja sobre a sua própria existência e natureza perecível. 3. Enquanto processo em curso a partir duma ideia, e no contexto artístico, a operância é indício do trabalho do artista ou dum perceptor. Posto isto, é possível avançar com uma certeza: não tem havido arte sem operância, o mesmo é dizer, não tem havido arte sem trabalho, mesmo quando a sua natureza parece incerta. Sublinhe-se ainda a capacidade da arte em abraçar todo o tipo de trabalho, as suas inúmeras variações e múltiplos rostos: do enfileirado ao abnegado passando pelo resignado. À noção genérica de arte está, portanto, associada a noção genérica de trabalho, visto como utilitarismo sacrificial da vida humana face ao abismo escatológico.
Pensar os limites da arte é ponderar a possibilidade de um tipo de arte sem trabalho, isto é sem operância das ideias que lhe subjazem. Ideias não concretizadas produzem um tipo de arte que é o da não passagem ao ato, do não fazer e do não saber-fazer acumulado. Quanto ao artista deste tipo de arte, ele não é tanto aquele que se recusa fazer ou procrastina — o que o vincularia ainda a um modo operatório baseado no trabalho mesmo que em contraponto –, antes aquele que faz dom das suas ideias ao éter, dissociando-as, na raiz, dum ímpeto criativo — em prol da arte ou da vida — de qualquer espécie. A inoperância das ideias é deixá-las «morrer na praia». Isto é, se a operância é potenciadora das ideias, gerando substanciações operativas da vida e/ou da arte, a inoperância é, por contraste, impotência em procriá-las. Não produzindo e reproduzindo, a inoperância não deixa rasto. Nessa ausência de registo, esbarra a história da arte. Dessa ausência de registo, erga-se o Homem livre. Livre porque esquecido.
Deixar morrer as ideias na praia, esquecê-las lá e esquecê-las simplesmente. Esquecimento dum desaparecimento sem registo. Esquecimento sem limites, indiferente ao esquecimento. Esquecimento presente libertando espaço para outros esquecimentos. Experienciar o esquecimento é estar predisposto a criar espaço interior para que ecludam ideias tão depressa quanto são esquecidas. Esquecer é aceitar o esquecimento, mas antes, não saber mais.