Atento desde cedo às questões ecológicas, pretendi escrever um poema, em 1985, que abordasse a temática do ambiente e da natureza, cada vez mais maltratados pelos fogos, pelo abate desenfreado de árvores, pela destruição sistemática do habitat de milhares de animais, condenando à morte e ao desaparecimento, a prazo, de algumas das espécies. Estes problemas aconteciam em quase todos os pontos do globo, mas os jornais e as televisões apenas se referiam de uma maneira muito superficial a este assunto, que refletia igualmente uma certa apatia da opinião pública internacional. A verdade é que essa não era realmente uma questão prioritária na altura, atendendo à existência de outros problemas mais prementes não só em Portugal mas também noutros países e, para os políticos, nem sequer era tema que os preocupasse muito.
Concluí que a melhor forma de o fazer seria escrever esse poema com a própria natureza. Até porque não era a primeira vez que utilizava a natureza e os seus elementos como material para a criação poética. Desta vez poderia ir mais longe e «escrever» um poema com as próprias árvores.
Projetei-o com a estrutura de um soneto para que possuísse efetivamente uma forma «poética»: 70 árvores, distribuídas por 14 filas com 5 árvores cada (4 + 4 + 3 + 3), que representavam as duas quadras e os dois tercetos (com um espaço maior a separar cada estrofe), que constituem a estrutura do soneto. O título surgiu de imediato: «Soneto Ecológico».
Para que o soneto tivesse uma maior expressão poética introduzi-lhe a «rima», que seria dada pela espécie de árvore: isto é, as árvores com que terminaria cada fila alternavam, de modo a resultarem numa das rimas mais usuais do soneto tradicional: A, B, A, B (por exemplo, Cedro, Ulmeiro, Cedro, Ulmeiro). E como pelo tipo de «versos» a utilizar o soneto teria uma forma bastante geométrica, (logicamente as árvores ficariam alinhadas no terreno onde fossem plantadas), achei que a «rima» poderia ser dada também pelas árvores com que começava cada «verso», isto é, cada fila de árvores. O soneto teria assim um cariz mais original, considerando que a rima seria observada no princípio e no final de cada verso.
As árvores deviam ser de espécies autóctones e escolhidas de modo a que pudessem ser colocadas próximas umas das outras sem interferirem no crescimento das restantes, e deviam ser de espécies de folha caduca e de folha perene para haver uma renovação sazonal e o soneto se fosse modificando visualmente pela constante alteração das formas, das cores e dos cheiros em relação à folha, flor e fruto, consoante as estações do ano. E também para que houvesse permanentemente algumas árvores com folhas.
Sempre achei estimulante trabalhar as formas tradicionais da poesia com uma linguagem contemporânea, e o soneto foi o género poético que mais me entusiasmou. É um enorme desafio pegar numa estrutura tão rígida na sua forma e na «obrigatoriedade» da rima, e criar um soneto nos mesmos moldes através de uma linguagem contemporânea. Felizmente a poesia visual possibilita uma enorme liberdade criativa e a ligação às artes plásticas, que sempre mantive, permitiu utilizar materiais, técnicas e suportes diversificados na criação dos sonetos.
O «Soneto Ecológico» insere-se num trabalho de experimentação poética relacionada com essa forma literária que tenho desenvolvido desde o início dos anos 80, quando em 1981 escrevi o «Soneto Digital». Desde essa altura já criei mais de uma centena de sonetos visuais com materiais e técnicas diferentes como a colagem, a letter-press, letras de vinil desenhadas e recortadas em computador aplicadas em telas plásticas de grandes dimensões, fotografia, instalação ou até mesmo a performance. Penso que sou, aliás, o único poeta e performer que realizou até hoje performances-soneto, e já executei mais de três dezenas de intervenções com essa estrutura que têm sido apresentadas em festivais, centros culturais e museus de diversos países.
Desde os III Recontres Internationales de Poèsie Contemporaine de Cogolin (França, 1986), passando por espaços como o Museu de Setúbal (1988), o Centro Cultural Santo Domingo (Cidade do México, 1990), a Villa delle Rose / Galleria d’Arte Moderna (Bolonha, 1993), o Tokyo Metropolitan Art Space (Japão, 1997), o Musée D’Art Contemporain (Marselha, 1998), o IVAM; Institut Valencià D’Art Modern (Valencia, 2004), o Hong Kong Arts Centre (China, 2006), ou o Reykjavík Art Museum (Islândia, 2006), entre muitos outros realizados posteriormente. Uma parte dessas performances está registada no livro A Essência dos Sentidos, publicado em 2001.
Desde o início tive consciência da dificuldade em conseguir uma autarquia que disponibilizasse um terreno suficientemente grande (com uma área equivalente à de um campo de futebol), e custeasse as despesas com trabalhadores, aquisição de árvores, e a posterior manutenção desse espaço. Isto em 1985, numa altura em que a democracia em Portugal ainda não estava suficientemente consolidada, com inúmeros problemas sociais por resolver, e com a entrada de Portugal para a União Europeia no início do ano seguinte, assuntos que na altura dominavam as preocupações dos portugueses e, sobretudo, as dos políticos.
Quando em 1987 organizei o 1.º Festival Internacional de Poesia Viva, no Museu Municipal Dr. Santos Rocha, na Figueira da Foz, participei na exposição coletiva do Festival com a maquete do «Soneto Ecológico». A mesma foi depois exposta, no ano seguinte, na Galeria Municipal da Amadora, durante a segunda apresentação do 1.º Festival Internacional de Poesia Viva.
Em 2004, por ocasião do Campeonato Europeu de Futebol (a área que eu necessitava era mesmo a de um campo de futebol…) o Instituto das Artes abriu um concurso intitulado «Arte em Campo» para a apresentação de projetos que tivessem relação com aquela temática, isto num sentido amplo. Como o projeto já existia e se enquadrava no espírito do concurso, resolvi apresentá-lo, acabando inicialmente por ser aprovado.
Só que uma das condições para serem efetivamente apoiados era que fossem concretizados durante o período da realização do evento, o que no caso do «Soneto Ecológico» se tornava praticamente impossível, pela morosidade das aprovações e pela dificuldade da implantação, no terreno, de um projeto com estas características, apesar do empenho do Instituto das Artes, que facilitou alguns contactos, e da apresentação pessoal do «Soneto Ecológico» a autarcas de uma dúzia de cidades de norte a sul do país.
Contudo, a dinâmica estava lançada, e passados alguns meses três das câmaras municipais contactadas mostraram-se interessadas em concretizar o projeto (19 anos depois já havia uma outra consciência ambiental, muitos dos problemas mais prementes dos portugueses estavam a ser resolvidos, e já era plausível do ponto de vista social uma autarquia disponibilizar o espaço necessário, funcionários e árvores, custeando a construção de uma obra desta envergadura).
Num dos casos, o terreno proposto não era o mais adequado pela situação geográfica e pelo enquadramento. Noutro caso, o «Soneto Ecológico» iria situar-se junto a um futuro centro cultural (o que me agradou bastante), mas cuja obra ainda se encontrava em fase de estudos, sendo a sua construção previsível apenas para alguns anos mais tarde.
Finalmente, a Câmara Municipal de Matosinhos propôs-me um terreno contíguo a um novo bairro residencial que tinha ganho um prémio de arquitetura, junto à Rua da Seara, numa zona entre a Av. da República e a A28, perto do centro da cidade, o que aceitei com entusiasmo. Estávamos em Janeiro de 2005 e eu ia, vinte anos depois, poder finalmente concretizar o «Soneto Ecológico».
O Dr. Guilherme Pinto, vereador do Ambiente (mais tarde Presidente da Câmara, falecido recentemente) e grande entusiasta do projeto, decidiu integrá-lo nas atividades do Mês do Ambiente e inaugurar o soneto no Dia da Árvore, que se comemora a 21 de Março. A data tinha toda a lógica, mas faltavam apenas dois meses e o terreno precisava de ser limpo das pedras e dos arbustos, terraplanado, escolhidas e compradas as árvores, fazer todas as medições necessárias e projetar o arranjo paisagístico, para além de resolver questões burocráticas como as aprovações e autorizações que cada uma destas fases necessita.
Uma das dificuldades que se nos apresentava era o de conseguir as árvores necessárias. Não havia tempo para transferir árvores adultas de outros locais conforme era o meu desejo, nem adquiri-las com essas dimensões porque os custos eram demasiado elevados, pelo que a solução encontrada foi utilizar as árvores disponíveis no horto municipal e comprar apenas as imprescindíveis para completar as «rimas».
O soneto seria constituído por dez variedades de árvores num total de 70, às quais previ que se poderiam acrescentar mais 14 árvores para dar uma maior «largura» ao soneto (6 árvores por cada «verso» em vez de 5), se fosse o mais adequado ao espaço onde este se ia inserir. Mas depois de medido o terreno e de estudadas as duas hipóteses, concluiu-se que tal não seria necessário. Foram então selecionadas 70 árvores das seguintes dez espécies: Pinheiro Manso (Pinus pinea), Amieiro (Alnus glutinosa), Ulmeiro (Ulmus minor), Freixo comum (Fraxinus angustifolia), Cipreste (Cupressus sempervirens), Cedro-do-Buçaco (Cupressus lusitanica), Carvalho alvarinho (Quercus robur), Bidoeiro (Betula celtiberica), Sobreiro (Quercus suber), Azevinho (Ilex aquifolium) com uma bordadura de Fotínia (Photinia x fraseri).
Projeto de Estrutura do Soneto Ecológico
Pp | Ulm | Cs | Qr | Qs |
Am | Qs | Fr | Cl | B |
Pp | B | Az | Am | Qs |
Am | Cl | Ulm | Cs | B |
Cs | B | Qs | Am | Pp |
Ulm | Pp | Am | Az | Qr |
Cs | Fr | Qs | B | Pp |
Ulm | Qs | Am | Cl | Qr |
Cl | Fr | Pp | Az | Am |
B | Qs | Ulm | Qr | Cs |
Cl | Qr | Pp | Az | Am |
B | Cl | Qs | Ulm | Cs |
Cl | Fr | Pp | Az | Am |
B | Qs | Ulm | Qr | Cs |
Outra questão a resolver era a da própria plantação. Os funcionários municipais estavam na altura ocupados com as outras atividades previstas para o Mês do Ambiente, e decidiu-se então transformar a plantação das 70 árvores num imenso happening com a colaboração da população local, ação que serviria também para integrar no projeto as pessoas do bairro onde o soneto ia ser construído, originando desde logo um sentimento de pertença e de preservação, atendendo a que seriam essas pessoas a usufruir do parque que iam agora plantar.
Para o happening eram necessárias cerca de 140 pessoas, 2 por cada árvore a plantar. Por o soneto ter 4 estrofes, pensou-se que as árvores correspondentes à primeira quadra fossem plantadas por 40 crianças, as árvores da segunda quadra seriam plantadas por 40 jovens, as do primeiro terceto plantadas por 30 adultos e as do último terceto plantadas por cerca de 30 idosos. E logo surgiu a ideia de este ato coletivo ser efetuado ao som de «As Quatro Estações», de Vivaldi, interpretado por um quarteto e cordas.
Por força das circunstâncias já referidas, as árvores eram todas «jovens», isto é, de pequenas dimensões (entre 2 e 5 metros) e com copas pouco significativas. Para resolver a questão da pequena envergadura das árvores, seriam atados a cada uma cerca de vinte balões de 2 ou 3 tons de verde, para que visualmente ficassem mais «encorpadas» e darem uma ideia do que seria o soneto quando as árvores crescessem.
Ao início da manhã começaram a chegar as pessoas convidadas para o happening, em muitos casos famílias inteiras com os netos, pais e avós. Depois de explicado todo o procedimento, e que a plantação das árvores seria realizada em quatro fases, as pessoas dirigiram-se para as árvores que lhes correspondiam, que estavam deitadas no chão junto a covas previamente abertas nos dias anteriores. Aos primeiros acordes musicais, as crianças (algumas ajudadas pelos pais e por funcionários da câmara) pegaram nas enxadas que se encontravam perto das árvores e começaram a erguê-las e a fixá-las no chão.
A seguir foram os jovens…
Depois os adultos…
E finalmente os mais idosos…
Quando a plantação das árvores do último terceto foi concluída, soltaram-se, em simultâneo, as centenas de balões que estavam presos às copas das árvores, pelo que a plantação do «Soneto Ecológico» terminou num clima de euforia e de festa por parte dos participantes.
Nessa manhã foi «escrito» um soneto com 110 metros de comprimento por 36 metros de largura que é, decerto, o maior soneto do mundo. É um soneto vivo, que respira e se vai modificando visualmente porque está em permanente crescimento e transformação. Para além de uma zona de lazer, é uma obra poética onde se pode literalmente entrar, passear, jogar, descansar, namorar… e é provavelmente uma das maiores obras de land art que já se realizou em Portugal. Ou, neste caso, o mais correto será chamar-lhe uma obra de «Land Poetry».
Sobre a plantação do «Soneto Ecológico», o poeta uruguaio Clemente Padin fez a seguinte referência, na revista virtual Escáner Cultural n.º 73, de Junho de 2005:
«En puridad su obra es una instalación con elementos naturales. Resulta sintomático el compromiso de Fernando Aguiar con lo “natural”, talvez opuesto a lo “virtual” o “digital”, en una rotunda afirmación por el arte con “dimensión humana real”, en un esfuerzo notorio por acercar y llevar la poesía, allí, donde está la gente. En los tiempos presentes, las tecnologías digitales son y serán supuestamente las más usadas en casi todas las ramas de arte, incluyendo la poesía. Pero, al igual que cualquier otra tecnología, no asegura ni anticipa el nivel estético ni la funcionalidad de las creaciones. Sin embargo, el instrumento “interactividad”, que supone el Soneto de Aguiar, parece asegurar la comunicación directa entre el “escritor” y el “lector”: la funcionalidad del poema depende de la participación del “lector” quien, al usufructuar del mismo, le da su sentido, es decir, el sentido que “logre” o “consiga”, de acuerdo a su repertorio de conocimientos y experiencias personales.»,
acrescentando:
«El poema es autorreferencial no sólo por su contenido “ecológico”, puesto que está escrito con árboles; también lo es desde un punto de vista formal: la manera en la que están dispuestos los árboles equivalen a diagramar la estructura del soneto como un metalenguaje que se detiene por encima del texto y le examina críticamente con una suerte de rayos X poniendo en evidencia su forma. Pero lo autorreflexivo no es suficiente para dar fe de la poesía, el texto también nos debe ofrecer la oportunidad de ejercer nuestra libertad a optar por la significación que nuestro intelecto decida de acuerdo a nuestro intransferible repertorio de conocimientos y experiencias personales, es decir, debe ser ambiguo. La ambigüedad se refiere a la transgresión de las normas y códigos de la lengua que hace, entre otras cosas, que un texto pueda ser interpretado de muy diversas maneras. Lo que establece la ambigüedad en este poema es el tiempo, pues nunca se le podrá “leer” de la misma manera puesto que los árboles no cesarán de crecer y el espacio que establecerá los límites de la lectura ya que se trata de un soneto que deberá leerse caminando, en la verdadera acepción del verbo.»
Nos primeiros meses de 2007 concluiu-se o arranjo paisagístico do soneto com a colocação de trevo na «página» onde está plantado, a montagem de vários bancos de jardim e de caixotes de lixo (o soneto é também um parque), na sequência da construção dos passeios que o demarcam e às respetivas estrofes. Procedeu-se também à conclusão do «Recanto da Poesia», um local a cerca de 15 metros acima do soneto, pensado especificamente para se poder ler e escrever, com uma visão privilegiada sobre o «Soneto Ecológico».
No dia 21 de Março de 2007, para comemorar o Dia da Árvore e início da Primavera, o Dia Mundial da Poesia e o segundo Aniversário da plantação do «Soneto Ecológico», foi inaugurado o arranjo paisagístico e a sinalética que contém uma breve explicação sobre o conceito e a estrutura do soneto, com a designação de cada variedade de árvores plantada.
A inauguração foi precedida de uma sessão de leituras intitulada «Da Natureza da Palavra» onde leram os seus poemas Ana Luísa Amaral, Rosa Alice Branco, Casimiro de Brito, José-Alberto Marques, Manuel Portela e Fernando Aguiar.
Dois anos depois o «Soneto Ecológico» ficava assim com a forma definitiva em relação à área envolvente, e prossegue agora o seu crescimento, renovando-se sazonalmente. A ideia é que se desenvolva por muitas dezenas de anos no «Parque do Soneto», e que represente um símbolo, ainda que poético, da luta que tem de ser cada vez mais persistente e intensa pela preservação de todo o ecossistema deste pequeno, frágil, único e extraordinário mundo no qual vivemos.