nota 1
A estranheza face ao desvínculo entre o sujeito contemporâneo e a dimensão cosmobiológica da vida na Terra surgiu-me muito cedo e sempre me acompanhou. Com o passar do tempo, apercebi-me de que o distanciamento promovido por essa separação bloqueia a alteração dos procedimentos que conduzem à progressiva falência dos recursos naturais. E que essa dificuldade canaliza para regulamentos e convenções igualmente distantes, uma gestão do vivo estrategicamente integrada numa mecânica de conveniências económicas e políticas que conduzem a uma total ineficácia matizada de boas intenções.
nota 2
Ao iniciar as minhas pesquisas, visualizei ligações entre a consciência ecológica e a imanência da existência, num fluido transcendente no movimento das coisas que algumas culturas designam como sagrado [trans·cen·den·te 3. Que excede os limites ordinários; sa·gra·do 5. Que é muito puro ou tem qualidades superiores]. Diligenciar esses processos engrena o entendimento da interconexão entre os seres, forças e elementos; a compreensão da interdependência e fragilidade do equilíbrio planetário e a conexão entre o humano e o não-humano no mundo natural. Orienta a ecovisão de grandezas não visíveis e imateriais: o Todo é maior do que a soma das partes.
nota 3
O botânico, físico e zoólogo sueco Carl von Linné (1707-1778), no seu Systema Naturae, per Regna Tria Naturae secundum Classes, Ordines, Genera, Species cum Characteribus, Differentiis, Synonymis, Locis (Lugduni Batavavorum: Haak, 1735), classificou a Natureza em três reinos: Animalia, Vegetalia e Mineralia. Pela ideia de unidade na variedade em equilíbrio do mundo natural, esse foi o nome que escolhi para a plataforma e jornal ecocritico online fundad@s em 2014. animalia vegetalia mineralia = espaço internacional de investigação e divulgação sobre Ecomedia_Ecocinema_Ecocritica, com particular enfoque nos movimentos e mudanças adjacentes ao Antropoceno e relação humano/não-humano. Articula a estrutura de base de dados com a de um jornal, ambos bilingues. A base de dados perspectiva a integração de todas as áreas temáticas relacionadas, providenciando espaço para transmissão de conhecimentos e informação veiculados na comunidade científica, na comunidade artística e na comunidade activista.
Algumas experiências de criação em desenvolvimento do projecto, e a permanente evolução e ajuste da estrutura, transparecem na evolução do formato e imagem do press release.
Número I Número II Número III Número IV
nota 4
Diários de uma Pesquisa (2016, 21 min) é um filme concebido para alunos do Ensino Básico e Secundário e criado em regime de produção low-low-cost, a partir de registos das instalações ecocriticas que realizei nos últimos anos. Integra excertos de filmes e peças eco_arte, com enfoque nos objectivos programáticos: «O que significa ser “pessoa”, “animal” ou “árvore”? Por que é que ao contrário do que seria natural, a civilização insiste em prosseguir comportamentos que são nocivos?»
Estas e outras questões convocam o pensamento sobre estes tempos marcados por uma falência ambiental de abrangência planetária. Construído em «tom artesanal» na expectativa de uma afinidade com o espectador pré-adolescente ou adolescente. Uma versão de montagem foi exibida em 2015 no Ecocinema Festival and Conference, Tinai Ecofilm Festival, Goa; na Fundação Oriente, em Goa e no BBC, no Funchal. A versão final, exibida em 2016 no Museu Geológico de Lisboa; no Centro Cultural Condes de Vinhais; em Flores do Cabo, Pé da Serra, Sintra e na 14ª Edição do CineAmazônia, Festival Latino Americano de Cinema Ambiental, Porto Velho, Rondônia, Brasil.
nota 5
Falta estabelecer a ligação com as escolas e alunos do Ensino Básico e do Ensino Secundário. Como estabelecer essa ligação?
nota 6
Diários de uma Pesquisa integra excertos dos filmes:
e algumas peças ECO_ARTE.
nota 7
As peças ECO_ARTE das séries Homo-Humus (2016); Esculturas de Terra (2013-2016); Herbários_Relicários (2013); Relicários_de_Sementes (2015-2016); e Oxigenários (2015-2016), integram as instalações em diálogo com os filmes.
nota 8
Descartes Nunca Viu Um Macaco (2017, ópera multimedia em 8 Actos, projecto em co-autoria com o músico e compositor Vítor Rua). Título inspirado numa nota de rodapé do mesmo Systema Naturae (1735) de Carl Linnaeus (1707-1778), nota que Giorgio Agamben menciona em L’Aperto: L’uomo e l’animale (2002).
O libretto deste espectáculo de inscrição ecocrítica foca a Natureza, o Vivo e a relação do humano com os outros animais — também aqui diferenciados, como o animot de Derrida em L’animal que donc je suis (2006). A partir de excertos de Eu Animal: Argumentos para um Novo Paradigma (Ilda Teresa de Castro, 2015) e sob a influência destes tempos antropocénicos, Descartes Nunca Viu um Macaco reúne em oito cenas um conjunto singular de personagens. Alguns são seres vivos conhecidos de todos, como a Pulga, a Formiga, a Borboleta, o Macaco e o Humano. Menos conhecidos, o Imperador Asoka, a divindade Pachamama e a Sombra, materialização da Técnica.
nota 9
O imperador Asoka viveu entre 304 a.C. e 232 a.C. Foi imperador da dinastia Maurya que ocupava o presente Paquistão, Afeganistão, Bangladesh e os estados indianos de Assam a leste, Kerala a sul e Andhra a norte. Reinou entre 274 e 232 a.C. Os seus editais estão gravados em grandes rochas espalhadas por mais de trinta locais na Índia, Nepal, Paquistão e Afeganistão, designados copmo Editais de Asoka. Foi um dos mais antigos, se não o mais antigo governante vegetariano de que há registo na História e uma das figuras mais proeminentes, através das suas práticas de governação, na disseminação da percepção do vivo. Providenciou a mais antiga lista de espécies protegidas conhecida. Defendeu o bem-estar para os seres vivos, o não assassínio de seres viventes, a protecção dos animais, a plantação de árvores para benefício de humanos e não-humanos, e a provisão de poços e tratamentos médicos para todas as espécies. Asoka converteu-se ao budismo, ao vegetarianismo e foi seguidor da doutrina da não-violência ahimsa. Suprimiu a prática da caça e restringiu as matanças de animais em todo o seu vasto império. Terá sido o primeiro a proclamar: «Nos meus domínios os seres vivos não serão vítimas de matanças nem de sacrifícios.» (Asoka: The Fourteen Rock Edicts, 1). Esquecido durante cerca de 700 anos, foi encontrado com a tradução da literatura indiana pelos académicos europeus do século XIX, embora só em 1915 tenha sido possível dar início à reconstituição do seu trajecto e história admiráveis (Castro 2015, 44-45).
nota 10
A divindade Pachamama, com quem os índios andinos têm uma forte ligação ancestral é à divindade da Terra, no centro da Vida. Na sua filosofia, os humanos são considerados iguais às outras entidades. Para os andinos, Pachamama é um ser vivo: «Ela é sagrada, fértil e a fonte da vida que alimenta e protege todos os seres vivos. Ela está em permanente equilíbrio, harmonia e comunicação com o cosmos. Ela é constituída por todos os ecossistemas, seres vivos e sua auto-organização.» Pachamama é deusa dos Andes, o antigo império Inca centrado na Cordilheira dos Andes, incluindo grande parte dos actuais Equador e Peru, sul e oeste da Bolívia, noroeste da Argentina, norte do Chile e sul da Colômbia e cujo centro é, na actualidade, a capital do Peru, Cusco, cujo significado em Quechua (língua oficial do império) é «Umbigo do Mundo». Também é designada como Mãe Terra, embora a tradução literal seja «Mãe do Mundo» — nas línguas Aymara e Quechua: mama=mãe e pacha=mundo, posteriormente assumindo o significado de cosmos, universo. A par do culto a Apu Inti — o deus sol — o culto a Pachamama foi sempre representativo da função integrante da religião e da Natureza entre os andinos. Com a conquista espanhola, o culto de Pachamama foi associado ao culto da Virgem Maria pelos conquistadores católicos mas os valores religiosos e culturais originários da cultura própria mantiveram a sua força, não desaparecendo nem os costumes, nem a forma de vida ancestral daqueles lugares (Castro 2015, 188).
nota 11
A Sombra, materialização da Técnica: a ganância e a estupidez humana conduzem à iminência de catástrofe ambiental destruidora que assombra o Antropoceno. Nos arquétipos junguianos, a sombra está relacionada com o que cada sujeito reprime e rejeita de si, com os aspectos menos nobres do comportamento ou carácter, tornando-se a sombra do ego um self negativo. A aceitação e o reconhecimento são as atitudes aconselhadas para lidar com a sombra, pois quanto mais reprimida maior se torna, podendo devir gigantesca e um grande perigo. Por analogia, a sombra da espécie humana assume a sua forma — uma das suas formas — nestes séculos de negligência dos recursos naturais e exploração das outras espécies; na subjugação do mundo natural a epistemologias centradas na superioridade da razão humana e ávidas de lucro económico e similares. A dimensão exponencial dessa sombra conduz a necessidade de reconhecimento e reconversão. Se procurarmos a origem dos processos que engendraram tais epistemologias e práticas consequentes — agora que a sombra se transforma na assombração de uma civilização — encontramos na vontade humana de domínio da Natureza uma separação, uma cesura, um distanciamento da ideia de uma unidade fundamental que tudo conecta. Essa vontade é representada nessa avidez de progresso sem fim à vista, desejado e programado nos últimos séculos, no qual os engendramentos da Técnica são prioridade.
nota 12
Os 8 actos de Descartes Nunca Viu Um Macaco
ABERTURA
Acto 1: os humanos são plantas
Acto 2: o senhor dos animais
Acto 3: uma alforreca ao sol
Acto 4: os processos dos animais
Acto 5: a mosca que voa ao nosso lado
Acto 6: por favor, ouça-me
Acto 7: eu vi-me a mim mesmo na pulga
FINALE
nota 13
Excerto sonoro do Acto 2 de Descartes Nunca Viu Um Macaco